Por Christian Plantin e Rubens Damasceno-Morais*
A gênese do Dicionário de Argumentação
O Dicionário de argumentação – uma introdução aos estudos nocionais da argumentação (daqui para frente DA), de autoria de Christian Plantin, foi originalmente publicado em francês em 2016 (Lyon, ENS Éditions). Sua tradução para o português e para o espanhol está em pleno processo de execução, como veremos na última seção deste artigo, e sua tradução para o inglês, Dictionary of argumentation — An introduction to Argumentation Studies, ocorreu em 2018 (Londres, College Publications). Até onde sabemos, não existe até o momento outros dicionários especificamente consagrados à argumentação no mundo. O presente dicionário traz 314 verbetes principais (ou entradas) e 66 verbetes secundários, perfazendo total de 380 entradas lexicais.
Um verbete principal define e comenta um conceito específico ou, dependendo da ocorrência, uma família de conceitos estreitamente relacionados. Nesse sentido, a definição proposta é ilustrada por exemplos explicativos esquemáticos e, ainda, por casos autênticos retirados de textos diversos e de interações diversas que fazem parte do dia a dia. Um verbete secundário remete a uma entrada principal em que um determinado conceito é mais detalhadamente definido. O papel da entrada secundária é destinado a facilitar a recuperação de informações. Nesse sentido, o sistema de remissão ali engendrado integra os verbetes e permite reforçar a coerência conceitual do conjunto do dicionário.
Todos os 314 verbetes principais (e não se pode deixar de lado os secundários) são, em realidade, conceitos e, efetivamente, um conceito é uma ferramenta de trabalho. Por essa razão o Dicionário que se traz à luz foi concebido na perspectiva de se tornar uma introdução aos estudos da argumentação, como o subtítulo indica, isto é, uma ajuda à análise e reflexão para os estudantes; um estímulo para a produção de argumentos.
O Dicionário foi escrito a partir da experiência adquirida em uma série de seminários realizados com um público internacional. Tais seminários reuniram estudantes, professores e pesquisadores de diversos campos e disciplinas, todos engajados em pesquisas em argumentação. A esse grupo também pertencem pessoas que de alguma forma trabalhavam com a argumentação ou tinham interesse pela área. Muitos dos integrantes desse público presente nos seminários de argumentação eram professores de teorias da argumentação ou estavam comprometidos com a melhora das competências argumentativas dos alunos seja num nível elementar, seja num nível mais avançado. Esse grupo, bastante eclético, era proveniente de meios teóricos específicos e diversos, o que possibilitou debates extremamente ricos, visto que se pôde ter acesso a corpora extremamente diversificados ao longo dos encontros. Nesse sentido, o grupo tinha um único objetivo: discutir diferentes perspectivas para melhor compreender o tema que unia a todos ali, isto é, os meandros dos estudos em argumentação. Importante destacar que o Dicionário não foi escrito tomando por base uma perspectiva teórica única, pois, sabemos, o território da argumentação traz diversas abordagens teóricas que diferem bastante umas das outras. Em realidade, o objetivo do DA foi apresentar ao público definições, além de confrontar criticamente tais definições, na iminência de apresentar ao público instrumentos úteis para se instigar o debate acerca de preceitos, temas, ideias ligadas ao vasto universo dos estudos da argumentação. E desse modo foi concebido o material sobre o qual discorreremos mais em detalhes nas próximas seções, nas possibilidades de limite de extensão desta chamada para publicação.

DA: uma ferramenta para a sala de aula
Os verbetes do DA são conceitos-chave da linguagem utilizada no estudo da argumentação. As noções apresentadas não são definidas numa perspectiva enciclopédica nem tampouco em uma perspectiva histórica, mas com fins pedagógicos, práticos, com o intuito de ilustrarem situações correntes do dia-a-dia no que se refere ao uso de argumentos, da argumentação enfim. Nesse sentido, no DA, um conceito manifesta-se, primeiramente, como uma ferramenta para a compreensão e análise de dados ligados ao domínio da argumentação, permitindo a reflexão acerca de fenômenos argumentativos suficientemente próximos para serem agrupados em um mesmo verbete.
Argumentar é uma missão complexa que mobiliza, seja integral ou paralelamente, um trabalho enunciativo e um trabalho interacional. Nesse sentido, a primeira virtude da argumentação é dar voz ao conflito. A partir disso, temos que saber que argumentar pressupõe:
- Saber reconhecer uma situação argumentativa assim que nos deparamos com uma, seja em nossa vida cotidiana, seja estampada em uma manchete de jornal;
- Reconhecer o que está em jogo em uma interação argumentativa;
- Identificar as posições assumidas pelos envolvidos na argumentação, independentemente de se tratar efetivamente de uma posição ou de um ponto de vista reivindicado no conflito. Essa posição também pode ser assumida por alguém que pretende se informar acerca do conflito em jogo, adotando, neste caso, a posição de terceiro interessado, sem que se tome partido por nenhum dos polos envolvidos na discussão. Ainda nesse último caso, isto é, do terceiro envolvido, será necessário elaborar um posicionamento próprio de modo a não ser prontamente refutado pelos polos antagonistas já envolvidos na discussão. Reciprocamente, será necessário escutar as posições dos polos antagonistas, no sentido de bem compreender o que se está a debater, com o intuito de perceber qual questão argumentativa veio à tona e por que se está a debater um determinado assunto. E, nesse momento, alcança-se efetivamente o cerne da interação argumentativa, isto é, a sua chama: trata-se de reconhecer e de praticar as concessões e, sobretudo, de negociar os argumentos e aceitar o questionamento da sua própria posição no seio daquela discussão. Essas atitudes são indicadoras de que o compromisso com a questão em debate se faz necessário.
Quanto ao trabalho de análise mais refinado da argumentação, isso demandará um exercício permanente de análise dos posicionamentos do outro, além da consciência de nossas próprias estratégias de fala. Essas atividades “meta”, as quais, com a prática, acabam por se tornar atividades reflexas, fazem parte do exercício de metalinguagem da argumentação cuja prática é inerente à dinamicidade da argumentação. Nesse sentido, o DA, na forma como apresentado, é uma ferramenta destinada a reforçar práticas argumentativas, reflexivas e que têm um papel fundamental no desenvolvimento da capacidade argumentativa inerente ao exercício de uma língua natural. Não ao acaso, o Dicionário, por escolha metodológica, apresenta certos verbetes integrados e que fazem parte de uma mesma família, tal como acontece com os verbetes: “baliza argumentativa” (DA, p. 374: Balisage de l’argumentation)3, “marcadores de argumento e de conclusão” (DA, p. 375: marqueurs d’argument et de conclusion) ou os “morfemas argumentativos” (DA, p. 298: morphèmes argumentatifs) para facilitar esse exercício. A esse respeito, o DA pode auxiliar os professores que, no labor com a língua, tenham em seu programa o ensino prático da argumentação, justamente por causa dessa integração lexical, orgânica, que não olha um verbete de forma estanque, mas pertencente a um conjunto que, visto em sua integralidade, forma uma sinfonia, organicamente.
*A versão completa deste artigo foi originalmente publicada na revista Entrepalavras (vol. 11), de Fortaleza, em agosto de 2021.
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