A expressão “segurança” e seus infindáveis sufixos nos acompanham em todas as áreas de vida. No dia a dia, no telejornal ou no debate público, a segurança ganha forma como segurança jurídica, segurança econômica, energética ou propriamente como segurança política, relativa à sustentação de um determinado regime político ou forma de governo. Como se denota das linhas anteriores, segurança é um termo polissêmico, utilizado em diversas áreas, o que torna necessário nos debruçarmos sobre o(s) seu(s) significado(s).
Por isso, o objeto desta obra nos impele a uma delimitação inicial. Mesmo considerando as múltiplas feições do fenômeno, nos cabe aqui apresentar ao leitor os debates teóricos, conceituais e temáticos de um subcampo das Relações Internacionais denominado Segurança Internacional, também conhecido como Estudos de Segurança. Temas clássicos no pensamento político desde Tucídides, a paz e a guerra foram também objeto de reflexão de pensadores modernos como Maquiavel, Hobbes, Jomini e Clausewitz. Mas foi sob o calor da Segunda Guerra Mundial e durante a segunda metade do século XX que o campo dos Estudos de Segurança ganhou corpo, se expandiu e se institucionalizou, inicialmente em universidades norte-americanas e europeias.
O pano de fundo da Guerra Fria exerceu marcada influência no campo, sobretudo nos anos 1950 e 1960, ao conferir centralidade a questões militares, como a corrida armamentista inclusive no campo nuclear, e às preocupações geopolíticas e estratégicas das grandes potências. Por conta disso, e paradoxalmente, apesar da existência de um campo acadêmico voltado a se debruçar acerca da Segurança Internacional desde os anos 1940, foi apenas a partir de meados dos anos 1970 que o debate acerca do conceito de segurança de fato ganhou impulso.

No presente capítulo, seguimos a orientação de Paul D. Williams sobre como estudar a Segurança Internacional. De acordo com Willians (2008), quatro perguntas compõem o núcleo do que podemos entender por segurança. São elas: 1) O que é segurança? 2) Segurança de quem? 3) O que conta como uma questão de segurança? 4) Como se pode alcançar a segurança? O próprio autor nos faz saber que essas questões basilares são em si um recorte. A depender da posição teórica e epistemológica do investigador, novas questões poderão ser adicionadas, da mesma forma que outras poderão ser excluídas. Entretanto, apesar da diversidade teórica e das bases filosóficas desse grande campo de estudo, essas quatro questões estarão presentes na construção intelectual daquilo que se entende por segurança. Por essa razão, este capítulo se delineia seguindo a lógica e a progressão dessas questões basilares para que possamos compreender a segurança e, por consequência, a segurança internacional.
Como parte inicial do esforço de compreender e estudar a segurança, cabe, antes de tudo, definir o que entendemos por esse fenômeno. Entretanto, ao nos perguntarmos “o que é segurança?”, somos necessariamente chamados a abordar questões de ordem epistemológica, ontológica e de método. Como demonstra Williams (2008), essa primeira pergunta implica buscar respostas sobre (a) como saber o que é segurança; (b) qual a relação desse fenômeno com mundo que nos cerca; e (c) quais métodos temos à disposição para estudá-lo. No entanto, o próprio Williams argumenta que a resposta à primeira questão não deve ser buscada apenas no plano teórico, mas também considerando os problemas e as soluções políticas do mundo real. No mesmo sentido, outros, como Buzan e Hansen (2009), afirmam que a resposta para a questão em tela envolve fatores como o contexto histórico, o grau de institucionalização do campo, a evolução tecnológica, entre outros. Em resumo, devemos entender a segurança como um fenômeno essencialmente multidimensional, cujo estudo envolve uma intensa e necessária atenção a considerações teóricas e a aspectos empíricos (factuais).
Em nosso esforço de compreender o que é a segurança, cumpre diferenciar a segurança como condição existencial, ou seja, a situação real de que goza um referente (seja este um indivíduo, um grupo ou o próprio Estado), e segurança como desígnio, um objetivo a ser perseguido e, em um ponto, alcançado. Na primeira ocorrência, nos deparamos com a segurança em sentido absoluto: no caso, a condição de segurança implica que (a) o referente se vê livre de ameaças, (b) não se encontra exposto a riscos e (c) não possui vulnerabilidades que coloquem em questão sua própria integridade e sua capacidade de perseguir e alcançar seus interesses.
Isso nos leva a nos debruçarmos sobre esses três aspectos. A ameaça se relaciona a uma intenção hostil de um agente (indivíduo, grupo, Estado), ou seja, à intenção de dificultar, prejudicar, infligir danos e, no limite, aniquilar um outro agente. O risco, por sua vez, se relaciona à probabilidade maior ou menor de ocorrência de algo que não decorre da vontade de ninguém, mas que, mesmo assim, dificulta, prejudica, causa danos ou aniquila um agente. A exposição de coletividades, as mais variadas, a cataclismas naturais ilustra bem esse aspecto. A vulnerabilidade, finalmente, tem a ver com a falta de condições e recursos adequados e suficientes por parte de um agente para se contrapor, de modo adequado e efetivo, a ameaças infligidas por terceiros e para mitigar toda série de riscos.
Obviamente, nenhum agente ou ator está inteiramente livre de ameaças, integralmente imune a riscos e/ou invulnerável a quaisquer formas de vicissitudes. Isso nos levaria a pensar que a segurança como condição e em seu sentido absoluto é inatingível, e por ser assim, não haveria por que se prender a essa concepção. No entanto, essa é uma conclusão equivocada. No plano do conhecimento, abstrações como concepções absolutas, situações ideais e mesmo as utopias possuem grande valor heurístico, isto é, são instrumentais para a adequada compreensão, análise, avaliação, formulação de diagnósticos e elaboração de proposições sobre os mais variados aspectos de uma realidade. Não devem, portanto, ser descartadas por parecerem desconectadas da realidade precisamente por serem indispensáveis para conhecê-la, compreendê-la, explicá-la, avaliá-la e transformá-la. São ferramentas de imensa utilidade, tanto para os cientistas como para os formuladores e operadores de política.
Para Baldwin (1997), segurança pode ser percebida como (a) a ausência de ameaças a valores adquiridos; ou (b) como a baixa probabilidade de dano a esses valores. Na prática, Baldwin (1997) nos apresenta duas formas distintas de conceituação de “segurança”. O ponto de partida da definição está na caracterização da segurança como a ausência de ameaças a valores adquiridos. Com a modificação executada por Baldwin, temos a prevalência do entendimento de que segurança consiste na baixa probabilidade de dano a valores adquiridos. Ou seja, não existe segurança em um sentido absoluto, mas, sim, graus ou níveis de segurança. Um exemplo dessa perspectiva é a forma como o Departamento de Defesa publiciza o status de prontidão e alerta de ameaças em seu DEFCON (Defense Readiness Condition). Variando em uma escala de 1 a 5, o nível 5 representa o menos severo, enquanto o nível 1 sinaliza a eclosão de uma guerra nuclear.
Citando Ken Booth, Williams (2008) inicia a resposta ao que é segurança com uma diferenciação inicial: sobrevivência não é equivalente à segurança. Partindo da ideia de que segurança normalmente é associada à mitigação de ameaças a valores social e historicamente constituídos, em particular quando estas colocam em perigo a sobrevivência de um referente de segurança, Booth entende que a segurança difere da mera sobrevivência, dado que abrange outros “valores” que não apenas a existência/sobrevivência em si. Em princípio, a segurança tem na sobrevivência uma condição necessária, mas não suficiente. Outros valores, tais como poder, força, riqueza, prestígio, podem ser percebidos como meios ou fins da segurança, por exemplo.
Esse entendimento reflete a prevalência da tradição realista e de suas diversas teorias nos Estudos de Segurança Internacional. Tal predomínio foi particularmente marcante naquilo que ficou conhecido durante a Guerra Fria como a “Era de Ouro dos Estudos Estratégicos”. Ocorrida entre as décadas de 1950 e 1960, a referida “Era de Ouro” marcou não apenas a institucionalização dos Estudos de Segurança, em especial dos Estudos Estratégicos, como também foi caracterizada pela crescente participação de pesquisadores civis em universidades, fundações e governos orientados a contribuir para o desenvolvimento de respostas aos problemas de segurança da Guerra Fria. Nesse período, surgiram burocracias civis atreladas à Defesa, houve estímulos para o financiamento para pesquisas e a criação de Think Tanks, bem como uma interação maior entre pesquisadores civis e profissionais militares. Entre os frutos dessa Era se destacam o desenvolvimento de teorias sobre dissuasão nuclear e a proliferação de estudos sobre desenho e estrutura das Forças Armadas, orçamento e gerenciamento de crises.
Claramente identificada com a tradição realista, essa revolução intelectual nos primórdios da Guerra Fria levou o mainstream dos Estudos de Segurança da época a se debruçar sobre quatro aspectos ilustrativos de sua perspectiva: o Estado, a estratégia, a ciência e o status quo. Ainda sob o calor dos acontecimentos da recém-terminada Segunda Guerra Mundial, acadêmicos e estadistas compreendiam que a segurança se referia fundamentalmente à segurança do Estado e de que esta era essencial para a própria segurança de seus cidadãos. Apesar de a tradição realista nas Relações Internacionais possuir uma notável diversidade (clássico, neorrealista defensivo, neorrealista ofensivo, neoclássico, realismo contingente etc.), normalmente a concepção de segurança é estadocêntrica, enfatizando sobremaneira os instrumentos de poder nacional para a consecução da própria segurança, estes normalmente vinculados ao poder militar nacional. No contexto de anarquia, a segurança existencial é o mais alto dos fins perseguidos pelos Estados. A segurança, nesse sentido, é tanto um fim quanto condição para que estes possam perseguir outros objetivos, como poder e riqueza.
Estabelecia-se, assim, uma notável convergência entre três postulados: o Estado como referente da segurança; o poder militar como instrumento privilegiado; e a política de defesa como ação para alcançar os objetivos de segurança de uma comunidade política. Por essa razão, a ênfase no desenvolvimento de estratégias tornou-se importante em duas direções: para alcançar a melhor alocação de recursos escassos em determinada ação, a fim de lograr um objetivo, ou para iluminar a melhor forma de utilizar os meios disponíveis para a realização de um determinado fim. Tanto a administração e condução de assuntos de Estado (statecraft) como a estratégia (Grande Estratégia ou Estratégia Militar) deveriam ser ancoradas na ciência não apenas como método, mas acompanhada de uma perspectiva epistemológica: o positivismo da revolução behaviorista. À medida que pesquisadores civis adentravam a seara dos temas militares e de segurança, ferramentais de matemática, lógica, química e física eram percebidas como fundamentais para o desenvolvimento estratégico. Como exemplo, um dos pioneiros da teoria da dissuasão (nuclear), Thomas Schelling era um economista. A construção envolvendo um referente primordial (o Estado), um meio (a estratégia) e o método científico estava a serviço de objetivos políticos clássicos da Guerra Fria: (i) a preservação do status quo, entendido como a manutenção do equilíbrio de poder no sistema internacional; (ii) a preservação das áreas de influência em um quadro de rivalidade sistêmica marcado pelo conflito bipolar entre EUA e URSS. Contudo, apesar de a segurança no realismo estar normalmente associada ao poder militar e econômico, outras dimensões também se mostrariam relevantes, tais como: política, ambiental, societária, entre outras.
O realismo, ao assumir o Estado como referente primordial, termina consagrando a um só tempo a sobrevivência do próprio Estado e a preservação de sua independência e da integridade territorial como valores e objetivos maiores no plano da segurança. Porém, o escopo da segurança pode ser ampliado de modo a que valores como bem-estar econômico e autonomia passem a integrar o rol dos valores aos quais a segurança se refere. Esse alargamento do conceito de segurança pode parecer inicialmente estranho. Entretanto, distintas estratégias de segurança nacional – como a dos EUA e da Rússia – se reportam a temas que transcendem e muito a seara tradicional da segurança militar.
Esse alargamento do conceito coloca em questão os limites da abordagem realista à segurança. Por exemplo, para os autores vinculados a estudiosos da Escola de Copenhague, sobre a qual abordaremos em seguida, segurança é um conceito tipicamente negligenciado. Atribuem a ausência de debate explícito sobre o fenômeno em si, por escolha ontológica ou epistemológica, à prevalência da tradição realista nessa área. Conforme se observa, as características que identificam os estudos de Segurança Internacional em seu primeiro momento, marcadamente identificados como Estudos Estratégicos, são fortemente dependentes de onde, quando e para quem esse esforço intelectual foi desenvolvido. O desenvolvimento de teorias de segurança e a reflexão sobre as implicações normativas destas revelavam preocupações e prioridades de quem normalmente as financiava. Assim, uma parte significativa do mundo se via alijada dessa reflexão e não possuía papel ativo na elaboração de suas próprias interpretações da realidade da Segurança Internacional, vendo-se inerte em uma terra de ninguém, mas que era disputada pelas superpotências da época.
Em resposta a esse tipo de desafios, outras perspectivas surgiram no âmbito dos estudos de Segurança Internacional. Primeiramente, e em oposição à tradição realista, os Estudos da Paz que associariam a segurança à prevenção e à superação da guerra e à promoção da paz, trazendo consigo uma agenda que seria particularmente importante na promoção do debate sobre os riscos e as consequências indesejáveis da estratégia nuclear, o surgimento de novos referentes de segurança para além dos Estados, a promoção e a proteção dos direitos civis como objeto da segurança nacional e internacional, dentre outros tópicos. Ao mesmo tempo, por sua vez, despontariam perspectivas e autores como Mohammed Ayoob, voltados para a condição de segurança de Estados e espaços tidos como marginais no contexto da Guerra Fria, introduzindo assim as preocupações e os desafios de segurança do então chamado Terceiro Mundo na agenda dos estudos de segurança.
É possível depreender do que foi exposto até aqui que o debate sobre o que é segurança, de modo geral, e sobre a segurança internacional, em particular, segue aberto. Partiu e evoluiu sob o signo da Guerra Fria e da primazia do pensamento realista que privilegiou interesses, valores e objetivos precipuamente voltados para a sobrevivência, a preservação da integridade territorial e da independência dos Estados, passando a incorporar gradualmente preocupações relativas ao bem-estar econômico e social das populações, inclusive do Terceiro Mundo, até encampar a promoção da paz, o surgimento de novos referentes para a segurança para além dos Estados e a promoção e proteção de direitos dos indivíduos. Assiste-se ao alargamento do escopo do conceito de segurança e, com isso, do próprio debate sobre como promovê-la no plano político.
Nesse sentido, é de fundamental importância ressaltar que o debate sobre o que é segurança não é meramente conceitual. Uma das grandes contribuições do debate conceitual é precisamente evidenciar sua natureza intrinsecamente política. Afinal, as respostas para o que significa segurança possuem repercussões também de ordem prática para distintos povos ou países em determinado período da história. Dependendo de como se responde a “o que é segurança”, haverá também diferentes possibilidades sobre como se dará o esforço distributivo de recursos na política. Dado o caráter prático do debate sobre segurança internacional, o debate conceitual pode ser mobilizado para objetivos políticos, moldando assim a própria realidade de segurança a que objetiva garantir.
A segunda pergunta basilar é “segurança de quem?”. Apesar do caráter aberto do conceito, dificultando a existência de uma única definição, é comum observar que a segurança é em geral analisada sob um prisma relacional. Segurança existe no âmbito da interação entre um referente e uma ameaça a um determinado valor. Tradicionalmente, os Estados são percebidos como os principais referentes da segurança internacional. A segurança do Estado ou a segurança nacional foi, por muito tempo, percebida como similar à segurança de toda a coletividade. Entretanto, de indivíduos ao sistema internacional, um amplo conjunto de referentes, além dos próprios Estados, é possível no que concerne à segurança.
Como coloca Baldwin (1997), a escolha sobre o referente de segurança depende da pergunta e de como a fazemos. Por esse motivo, a ampliação e o aprofundamento do conceito de segurança são mister para apreender a complexidade e as implicações políticas acerca de como definimos segurança e a quem ela se dirige. Desde o final da Guerra Fria, observou-se o deslocamento do Estado como referente de segurança em favor dos indivíduos e das sociedades. O debate intelectual e político sobre a segurança no plano internacional, tradicionalmente centrado no Estado, deslocou-se para os níveis societário e humano (Buzan e Hansen, 2009), questionando a premissa de que a segurança dos Estados equivalia à segurança das sociedades e dos indivíduos. Isso porque se tornavam patentes as dificuldades e, em muitos casos, o fracasso dos próprios Estados em assegurar condições mínimas de segurança às populações em seus respectivos territórios, uma de suas funções primordiais. A exposição de indivíduos a diversas formas de violência armada sob a conivência ou a incapacidade dos respectivos governos de contê-las e de protegê-los instou o debate sobre as eventuais respostas da comunidade internacional frente a calamidades humanitárias, como foram os conflitos na Bósnia (1992-1995) e o genocídio em Ruanda (1994). A profusão de guerras civis e conflitos étnicos no imediato pós-Guerra Fria concorreu diretamente para a necessidade de repensar o paradigma realista da segurança internacional.
Em decorrência, também se repensaram novas formulações conceituais sobre segurança usualmente atreladas a novos referentes – em particular os indivíduos, fazendo emergir a segurança humana – ou a temas, como meio ambiente, energia, alimentação, saúde, dentre outros. Isso levou a que a segurança fosse igualmente adjetivada (segurança ambiental, energética, alimentar, de saúde etc.), dando conta da crescente diversidade de referentes e das agendas de segurança e dos enlaces entre elas. Por isso, ganhou força o sentido de que a segurança deve ser compreendida em perspectiva multidimensional.
A diversificação de referentes, espaços e agendas da segurança refletia uma realidade muito mais complexa e desafiadora, tanto do ponto de vista político quanto intelectual. Por consequência, se ampliaram e acirraram os debates políticos e teóricos em torno da compreensão de fenômenos e processos ligados à segurança internacional. Assim, o debate público se torna mais complexo, na medida em que distintas perspectivas e agendas securitárias se chocam e devem ser traduzidas politicamente em decisões, ações e alocação de recursos. Dessa forma, a própria definição de segurança termina se associando a um processo de convencimento e de escolhas com importantes impactos distributivos e redistributivos nas sociedades, de modo geral. Por essa razão, responder “o que é segurança” e “segurança para quem” deixa de ser uma questão de apelo estritamente teórico-conceitual e assume uma conotação irremediavelmente política. Isso se dá por força do imperativo de que os agentes públicos e as sociedades em geral estabeleçam suas prioridades e objetivos no plano da segurança e discutam as opções para assignarem recursos, considerando uma gama mais diversa de referentes, de espaços e agendas, assim como de ameaças, de riscos e de crescentes margens de vulnerabilidade a serem confrontados.
As crescentes dificuldades de delimitar conceitualmente o fenômeno da segurança levaram alguns autores a questionarem e até mesmo negarem a possibilidade de uma adequada conceituação para segurança. Os autores da assim chamada Escola de Copenhague, como Barry Buzan e Hansen, pontuam cinco razões para o ceticismo acerca do conceito de segurança. A primeira delas decorre da dificuldade inerente ao próprio conceito. Afinal, como estabelecer, em definitivo, o que é segurança? Como esse conceito viaja no tempo e no espaço? Uma segunda razão consiste na sobreposição dos conceitos de poder e segurança. Conforme visto anteriormente, os Estudos de Segurança Internacional, como campo, tiveram forte vinculação com a tradição realista em sua origem. Autores considerados representativos do realismo clássico, como Carr, Morgenthau e Aron, reconheceram e consagraram a vinculação entre poder e segurança, o que viria a ser contestado, posteriormente, por outras correntes teóricas. Um terceiro motivo para a negação em questão tem raiz no fato de que como o conceito de segurança era dado, não haveria interesse em uma reflexão explícita acerca dele. Isso se soma ao quarto motivo, tocante a uma atenção maior aos novos desenvolvimentos tecnológicos e a seus impactos para dinâmicas de segurança (por exemplo, novos vetores de entrega para armas nucleares) do que dedicar esforços para uma reflexão introspectiva acerca da episteme da segurança. Por fim, Buzan e Hansen (2009) consideram que a ambiguidade do conceito de segurança “nacional” é politicamente útil. Por exemplo, em decorrência dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, surgiram nos EUA inovações legais, como o Ato Patriótico. Percebido pelo governo Bush Jr. como um meio para melhor proteger a sociedade americana, foi acusado por críticos de rasgar valores da Constituição do país, como o direito à privacidade e outras liberdades civis.
Afinal, o que conta como um tema ou problema de segurança? Como já visto, o conceito de segurança abarcava tradicionalmente aspectos de interesse dos Estados, como a sobrevivência (existencial), a independência política e a integridade territorial. No último meio século, outros valores foram adicionados a esse rol, tais como autonomia, bem-estar e equidade econômica e social, dignidade humana, equilíbrio ambiental, sustentabilidade do desenvolvimento, democracia, dentre vários outros. e psicológico. Com o alargamento do conjunto de referentes e da agenda da segurança internacional, também os desígnios de segurança dos indivíduos e de outros referentes passaram a ganhar relevância. Com isso, se impunha a necessidade de novas formulações capazes de atualizar e expandir o debate também no plano teórico e conceitual.
Como foi visto, a demonstrar que o conceito de segurança é importante e deve ser objeto de reflexão sistemática, a literatura conceitual contribui para lançar luzes sobre as implicações políticas dos conceitos em áreas como liberdades civis e orçamento público. Algumas questões e dilemas também se impunham: em que medida a segurança nacional ou da própria comunidade internacional justifica a supressão de liberdades individuais? Em que circunstâncias é aceitável que vultosos recursos públicos sejam destinados para as Forças Armadas, quando poderiam ser alocados para o atendimento de outras necessidades, por exemplo, nos âmbitos da saúde e da educação? A definição do conceito de segurança é fundamental para a disputa e alocação de recursos, em especial o orçamento. Ao apelarem à “segurança”, atores políticos buscam mobilizar apoio e atenção para seus objetivos, buscando assim influenciar o jogo distributivo e a alocação de recursos por parte do Estado. Entretanto, em sociedades complexas e plurais, a própria definição de segurança é objeto de debate e contestação. Por esse motivo, uma segunda contribuição do debate conceitual sobre segurança foi trazer à tona a necessidade de se levar em consideração os chamados setores de segurança.
Contribuição exemplar da Escola de Copenhague, a abordagem setorial de segurança nos ajuda a pensá-la a partir de distintos referentes, níveis de análise e desafios específicos. Surgida nos anos 1980, a Escola de Copenhague trouxe consigo a tarefa de ampliar o escopo da segurança internacional para além da tradicional ênfase nos Estados e nos temas militares. Ao fazê-lo, a referida Escola propôs cinco grandes setores de segurança, quais sejam: o militar, o político, o econômico, o societário e, por fim, o ambiental. O primeiro setor, o militar, confunde-se com a área dos Estudos Estratégicos, concentrado na questão das capacidades militares, das dinâmicas ofensivas e defensivas, dos armamentos e das percepções e doutrinas sobre o emprego da força. O setor político diz respeito à questão da estabilidade organizacional dos Estados, de seus sistemas de governo, sua legitimidade e ideologia. O setor econômico traz em si a questão do acesso a recursos voltados a objetivos, como a promoção do poder nacional e da prosperidade econômica. O setor societário enfatiza desafios tradicionalmente subjetivos, como cultura, língua e identidade nacional. Finalmente, o setor ambiental enfatiza o problema de manutenção da vida e sua sustentação diante dos desafios da ação humana, e de seus impactos sobre o meio ambiente e clima.
Assim, e por princípio, quaisquer temas atinentes a essas áreas podem suscitar e ser convertidos em objeto de preocupações de segurança desde a ótica de distintos referentes. Trata-se, portanto, de um processo no qual diferentes atores (indivíduos, organizações, Estados, dentre outros) procuram fazer com que suas respectivas preocupações e prioridades em termos de segurança encontrem acolhida, prevaleçam ou sejam assumidas como prioritárias na construção e definição das políticas de segurança de uma coletividade maior. Conforme explanam os autores da Escola de Copenhague, o percurso que leva o tema segurança a ser considerado como tal no seio de uma coletividade consiste no processo de securitização. Tal processo envolve a capacidade de um determinado grupo de comunicar, convencer e mobilizar recursos para que o que é considerado relevante ou prioritário como preocupação de segurança seja politicamente assumido como tal pela coletividade maior a que integra. Como em todo agrupamento político, há um componente de desigualdade que lhe é inerente. Assim, as desigualdades presentes em qualquer sociedade, e também no sistema internacional, afetam a capacidade de certos grupos ou países terem ou não sucesso na definição de segurança, de segurança para quem e, em última instância, do que deve ser prioridade na agenda.
Assim, e em larga medida, uma parte substantivamente importante da política internacional voltada para a segurança está conformada pelos intentos de parte de diferentes indivíduos, movimentos sociais, agrupamentos políticos, comunidades epistêmicas, Estados, organismos internacionais governamentais e não governamentais e corporações, inclusive as transnacionais, de exercerem influência na construção das pautas políticas e na definição das iniciativas e ações dela decorrentes em favor de seus respectivos interesses e objetivos no plano da segurança. Dentro desse processo, a definição dos temas a serem “securitizados” dependerá da capacidade de tais grupos de mobilização política e de fazer prevalecer aqueles que consideram prioritários. O processo de securitização de um tema envolve, simultaneamente, portanto, conflitos, disputas e barganhas, mas envolve também uma dimensão de cooperação e de ação coletiva. É precisamente em razão do processo contínuo de securitização de um amplo espectro de temas que a agenda da segurança internacional se expandiu notavelmente desde o fim da Guerra Fria, tornando maiores e mais complexos os desafios neste campo, e mais diverso e profundo o debate teórico sobre a segurança internacional.
Por fim, após indagar o que é a segurança, a quem ela se dirige e o que é um tema/objeto de segurança, cabe questionar como alcançar a segurança. Autores como Baldwin (1997) apresentam três parâmetros básicos para essa questão, sendo eles: 1) Com que meios?; 2) A que custo?; 3) Por quanto tempo? Primeiramente, a depender da definição dada para segurança, seus referentes e seu destinatário, as respostas tendem a ser diferentes. Para situações em que a segurança é um conceito estadocêntrico vinculado ao poder material, o caminho para alcançar a segurança passa notavelmente pelo desenvolvimento de capacidades militares, percebidas como uma forma de maximizar poder. Porém, na atualidade, não se poderia discutir “segurança para quem?” sem mencionar o imperativo ambiental. As perspectivas ecológicas e ambientais ganham cada vez mais premência nos debates sobre segurança internacional, constituindo-se atualmente na fronteira dos processos de ampliação e aprofundamento do que se entende por segurança internacional. Por sua vez, para perspectivas tradicionais de segurança, a forma de alcançá-la poderá estar mais ligada a um profundo processo de construção estatal, desenvolvimento econômico e autonomia, questões tão prementes para os países em descolonização durante a Guerra Fria. Para casos em que regimes autocráticos eram derrubados, a forma de se alcançar a segurança passava pela estabilidade da democracia, por exemplo.
Uma segunda questão acerca dessa operacionalização da segurança é a que custo. A definição daquilo que é segurança e daquilo que é essencial é fundamental no jogo distributivo. Definir algo como problema de segurança tende a colocá-lo sob uma áurea de prioridade, ou mesmo de urgência, o que implica mobilizar recursos humanos, materiais e financeiros disponíveis para seu adequado atendimento. Isso, por sua vez, traz consigo a questão de caráter simultaneamente político e econômico que é a alocação de recursos usualmente limitados para o atendimento das necessidades neste e em outros campos de políticas públicas. Fica patente, portanto, a existência de um estreito vínculo entre a política (a esfera para a qual convergem as demandas de segurança e na qual são forjadas e tomadas as decisões alocativas em última instância), a economia (campo do qual provêm os recursos para o atendimento daquelas necessidades) e o campo da segurança (onde estão os atores responsáveis pela implementação das políticas e pelo provimento da segurança ao Estado e à sociedade em seu conjunto). Há que se tomar em conta, portanto, de um lado, necessidades, demandas e prioridades dos Estados e das sociedades em termos de segurança e, de outro, as possibilidades de suprimento de recursos adequados ou suficientes para o atendimento daquelas. Nesse sentido, é importante chamar a atenção desde já para a importância dos gastos dos Estados com sua própria segurança, os quais se desdobram em gastos militares (estes mais facilmente identificáveis, porque mais concentrados) e nos gastos direcionados a todas as demais instâncias que integram o aparato de segurança voltado para a atuação no plano internacional. Portanto, a questão crucial de quanto os Estados e as sociedades estão dispostos a gastar em sua própria segurança depende de um conjunto de variáveis que transcendem a própria esfera da segurança e da própria política externa dos países, e que são de natureza política e econômica.
Uma outra questão se refere ao tempo. Por quanto tempo se deve sustentar uma determinada política de segurança? Conforme nos aponta Baldwin (1997), uma política de segurança é condicionada pelo objetivo (valor que quer assegurar) e pelo tempo que persiste uma determinada ameaça. Contudo, os Estados têm que lidar com políticas de curto e longo prazo. Às vezes, essas políticas entram em conflito. Um exemplo é a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América, documento basilar assinado pelo presidente dos EUA que estabelece a avaliação estratégica do ambiente internacional, os objetivos do país no campo da segurança e ameaças que se apresentam ao país. Normalmente apontando tendências de longo prazo, o documento sustenta o compromisso permanente com a defesa dos valores americanos, entre os quais aqueles afeitos à sua segurança. Como sabido, os EUA possuem estratégias de dissuasão apoiadas fortemente em seu aparato nuclear. Objetivando desencorajar uma ação ofensiva por parte de seus inimigos, essa postura estratégica é também de longo prazo, apesar de ser mais intensa em períodos de crise, como o fora na crise dos mísseis em 1962. Conflitos ativos, como o da península coreana e entre Índia e Paquistão (Caxemira), demonstram que certos problemas de segurança podem se desdobrar por décadas a fio, envolvendo mobilização militar, de meios e alocação de recursos orçamentários que poderiam ser importantes para outras áreas, como saúde, educação ou saneamento básico. À questão dos muitos desafios de segurança no plano internacional apontarem para perspectivas de longo prazo se sobrepõem, de um lado, a avaliação da efetividade de uma determinada política na consecução dos objetivos pretendidos no curto e no médio prazo e, de outro lado, as considerações de ordem econômica necessárias para sustentá-la por períodos maiores de tempo, e a existência de opções factíveis e críveis à política em curso.
Por fim, pode-se indagar: quanto de segurança é suficiente? Existirá segurança em absoluto? Baldwin (1997) nos aponta que a concepção dicotômica entre seguro-inseguro pode ser mais bem colocada sob o prisma de qual nível ou grau de segurança se espera alcançar. Isso se materializa na questão sobre o quanto de segurança é suficiente. Apesar de parecer abstrata, essa questão ganhou corpo diante do dilema de segurança e sua respectiva corrida armamentista no contexto da Guerra Fria, como explicado na sequência. Ambas ocorrem como resultado de um paradoxo, ilustrado pela sequência de eventos a seguir:
- Na busca por aumentar sua segurança, um Estado aumenta e/ou incrementa suas capacidades militares.
- No entanto, outros Estados podem interpretar essa conduta como parte da preparação de uma ofensiva contra eles.
- Motivados mais pelo medo do que por ganhos, se engajam em um esforço semelhante, incorrendo na mudança quantitativa e qualitativa de suas capacidades militares.
- O primeiro Estado a começar o movimento terá uma redução marginal de sua segurança, o que o moverá a aumentar ainda mais as suas capacidades militares, impactando novamente no comportamento de seus pares (Jervis, 1999).
Tanto os EUA como a URSS buscaram aumentar e melhorar os seus arsenais nucleares e sistemas de entrega de forma a poder lograr vantagem contra o seu oponente em caso de primeiro ou segundo ataque com armas nucleares. Entretanto, ao chegarem a um determinado quantitativo de meios, somada a diversidade de sistemas de entrega (tríade nuclear), atingiu-se a situação de “equilíbrio” caracterizada como Destruição Mútua Assegurada, na sigla em inglês MAD. Note-se que no exemplo exposto se associa segurança a poder (militar). Portanto, o quanto de segurança é necessário é uma questão que passa pela percepção e pelo dimensionamento das ameaças e dos riscos considerados, e também das vulnerabilidades que acometem os Estados e, por extensão, suas respectivas sociedades.
A título de balanço parcial, é possível afirmar que o debate acerca do conceito de segurança, impulsionado durante os anos 1980 e 1990, foi fundamental para a maior conscientização acerca de como definimos segurança internacional, como ameaças são construídas e como ocorre o convencimento nas sociedades e nos governos, de forma a que se justifiquem a alocação de recursos para o enfrentamento de ameaças ou desafios percebidos. A evolução desse debate se deu não apenas sob os ares da Guerra Fria e das ameaças existenciais que o conflito geopolítico suscitava, então, aos diversos povos. Questões como a autodeterminação dos povos, o desenvolvimento e subdesenvolvimento e a paz se somaram ao temário já consagrado dos estudos de segurança.
Além do contexto histórico, os debates apresentados ocorreram em sintonia com um vultoso processo de discussão teórica e epistemológica no âmbito das Ciências Sociais e nas Relações Internacionais. Desde o debate “Neo-Neo” entre realistas e liberais até o advento do construtivismo nas RI e das opções teóricas (e metateóricas) pós-positivistas, se deu a evolução dos estudos de Segurança Internacional. Contudo, nem todos consideraram que a profusão de debates teóricos e epistemológicos foi necessariamente benéfica para o estudo da segurança e suas implicações para políticas públicas. Para Baldwin, as propostas de ressignificação do conceito de segurança misturavam argumentos normativos e empíricos. Esse mesmo autor desenvolve um amplo argumento no qual conclui que boa parte do debate conceitual se concentrou mais em redefinir agendas políticas do que necessariamente discutir e reconstruir de modo conceitual o que significa segurança.

Além de trazer maior diversidade aos estudos de segurança, o diálogo, nem sempre tranquilo, entre realistas, liberais, construtivistas e teóricos críticos, entre outros, foi importante para impulsionar os estudos de segurança e contribuir para o seu avanço. Um dos primeiros ganhos desse processo foi colocar a concepção de segurança em perspectiva, vindo a erigir uma literatura conceitual de forma a mitigar o subdesenvolvimento do conceito de segurança. Durante a “Era de Ouro” dos Estudos Estratégicos, o conceito de segurança era tomado como dado, fixo e fortemente atrelado à segurança do Estado, conforme visto previamente. Entretanto, a depender do ponto de vista (individual, coletivo ou do Estado), o que pode ser segurança para um poderá não o ser para outro. Isso se dá porque segurança se refere a valores de um determinado referente. Soberania, integridade territorial, liberdades civis, igualdade jurídica e equidade podem ser identificadas como valores para os quais se almeja a segurança. Isso pode variar, de país para país, de região para região ou de tempos em tempos. Por essa razão, o debate acerca do conceito de segurança é importante para demonstrar a sua complexidade contextual, mas também porque nos educa a buscar como identificar a segurança de quem, quando e em relação a que ou quem.
Alcides Costa Vaz é professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Augusto Teixeira Júnior é professor associado do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenador do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI).