Mais de uma década e meia se passou desde que escrevi O cérebro leitor. Este livro foi escrito como uma apologia às extraordinárias maneiras pelas quais a leitura e a alfabetização alteraram o cérebro humano e, no processo, a trajetória do indivíduo, da sociedade e, em última análise, do desenvolvimento intelectual do ser humano. O mundo mudou inexoravelmente desde que escrevi o prefácio original dessa obra, cujas primeiras palavras são proféticas:
Vivi toda minha vida a serviço das palavras: na busca dos esconderijos utilizados por elas, nos recônditos contorcidos do cérebro, ao estudar suas camadas de significado e forma, ensinando seus segredos aos mais jovens. Nestas páginas, convido o leitor a refletir sobre a qualidade profundamente criativa que existe no ato da leitura. Nada no nosso desenvolvimento intelectual deve ser minimizado neste momento da história, uma vez que a transição para uma cultura digital teve seu ritmo acelerado na atualidade.
Eu não tinha ideia de que a transição para uma cultura digital ocorreria tão rapidamente e de que haveria uma mudança radical na forma como lemos, como pensamos e como interagimos uns com os outros. Naquele momento, eu esperava, de forma não muito diferente das percepções do filósofo Walter Ong sobre a transição de uma cultura oral para uma cultura letrada, que investigássemos cuidadosamente como cada novo meio transformaria nossa consciência, na transição que enfrentaríamos de uma cultura letrada para uma cultura digital. Como será possível perceber no último capítulo deste livro, estava preocupada com a possibilidade de ignorarmos as diferenças na forma como cada meio poderia afetar nossa capacidade de processar informações, consolidá-las na memória e empregá-las com sabedoria.
As advertências que levantei inicialmente aqui são, doravante, nossa realidade. Minha principal preocupação, no passado como agora, é a seguinte: se não compreendermos as significativas contribuições e as necessidades de um cérebro que realiza leituras profundas, poderemos perdê-lo – algo que trará consequências para todos os membros de uma sociedade democrática. O requisito mais importante – e um leitmotiv deste livro – é o papel crítico que o tempo desempenha na forma como o cérebro leitor processa a informação, ao transformá-la em conhecimento, e na utilização desse conhecimento cumulativo como base para o discernimento e a reflexão. Sem que haja tempo suficiente alocado para cada aspecto de tal processo, os seres humanos serão limitados. No entanto, é exatamente essa exigência que falta nas nossas vidas atuais; dessa forma, em um bom exemplo, o Brasil se tornou mais um dos países saturados de telefones celulares do mundo.
Uma analogia pode ser encontrada na obra do filósofo coreano Byung-Chul Han, autor de vários livros que falam sobre a experiência do tempo em um meio digital, de como ele foi acelerando a ponto de não estarmos preparados para processar e consolidar nossas experiências, passando de um evento para outro. A consequência é que experimentamos – se é que chegamos a experimentar algo intervalos de tempo cada vez menores entre os acontecimentos, insuficientes quer para a consolidação, quer para a reflexão a respeito daquilo que vivemos. Perdemos, nos termos de Byung-Chul Han, a capacidade de permanecer, algo muito semelhante ao que está ocorrendo, nos dias de hoje, com o cérebro leitor. Diante da infinidade de informações fornecidas diariamente por nossas telas digitais, passamos de uma explosão informativa para outra. Apenas arranhamos a superfície dessa informação. E ao fazê-lo, não conseguimos dar aos circuitos do nosso cérebro leitor tempo suficiente para se dedicar aos processos que chamo de “leitura profunda” – empatia pelos outros, pensamento crítico e inferência, além da função contemplativa.
Ao rolarmos a tela, observar palavras e navegar, ignoramos a profundidade que está abaixo da superfície das palavras e dos pensamentos. Nesse processo, encurtamos o tempo necessário para compreender a complexidade de um argumento, apreciar as perspectivas dos outros, avaliar a verdade daquilo que está escrito e perceber a beleza das tentativas dos autores de transmitir seus melhores pensamentos. Os milissegundos empregados pelo cérebro para considerar a complexidade do pensamento, o discernimento da verdade, a empatia pelas perspectivas dos outros e a reflexão pessoal podem fazer a diferença: entre uma pessoa que consegue pensar profundamente e agir com ponderação e alguém que processará informações de forma cada vez mais descuidada, movendo-se com rapidez crescente de um fragmento informacional para outro.
Neste livro, você encontrará a extraordinária beleza do processo de leitura em toda a sua complexidade, nas contribuições para a vida do indivíduo e da sociedade. Somente quando comecei esta apresentação para a edição brasileira é que percebi algo: este livro, escrito por mim anos atrás, fornece um modelo daquilo que nunca desejaríamos perder em termos de desenvolvimento humano – intelectualmente, socialmente, emocionalmente e eticamente. Meu trabalho posterior, particularmente O cérebro no mundo digital, fornece um alerta mais direto a respeito do que se ganha e do que se perde, nos termos da leitura, em diferentes meios de uma cultura digital. Cérebro leitor, por sua vez, fornece uma base para compreender o ato de ler como um exemplo do design mais complexo do cérebro humano, de como ele nos permite, nas palavras de Proust há um século, uma ultrapassagem, ir “além da sabedoria do autor, descobrir a nossa”.
Se eu pudesse dar uma sugestão ao leitor, seria para ler este livro antes de O cérebro no mundo digital. Juntos, fornecem um panorama sobre como a leitura mudou a história da nossa espécie; sobre como alguns indivíduos, dotados de organizações cerebrais diferenciadas (como na dislexia) forneceram uma visão inesperada a respeito daquilo que a leitura exige; e como tal conhecimento cumulativo nos obriga a preservar as contribuições complexas, realizadas pelas formas mais profundas de leitura, enquanto, simultaneamente, expandimos nossas capacidades digitais. Não há pensamento binário em nenhum desses livros. Quando tempo e motivo são fornecidos, o cérebro humano nos prepara para múltiplas maneiras de pensar, se não formos surpreendidos pelas tentações dos atalhos temporais. Dessa forma, a busca histórica, essencial, pela verdade e pela sabedoria poderá prosseguir.
Espero que, com a publicação deste livro para leitores brasileiros, educadores, pais e formuladores de políticas públicas no Brasil compreendam como o conhecimento do cérebro leitor pode ajudar o professor a ensinar cada criança a se tornar plenamente alfabetizada. Meu objetivo é que a mensagem atemporal deste livro, que aborda a leitura, traga uma nova urgência para você, leitor, sobre a importância essencial da construção de leitores profundos, criticamente analíticos e empáticos para a próxima geração do Brasil, que, tal como meus descendentes, serão os novos cidadãos do nosso mundo partilhado.
Maryanne Wolf é neurocientista, pesquisadora, professora e defensora de crianças e do letramento ao redor do mundo. Ela é diretora do Center for Dyslexia, Diverse Learners, and Social Justice na UCLA Graduate School of Education and Information Studies. Foi titular da cátedra John DiBiaggio of Citizenship and Public Service e diretora do Center for Reading and Language Research no Eliot-Pearson Department of Child Study and Human Development da Universidade Tufts. Autora de mais de 170 publicações científicas, pela Editora Contexto publicou também O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era e O cérebro leitor.