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O Afeganistão não é só hoje | Jaime Pinsky

Sejamos claros. Conquistar o mundo, sob a ótica de setores fundamentalistas de certas religiões, é apenas fazer com que a Verdade chegue a todos os seres humanos. Para esses homens e mulheres o proselitismo, a conquista de um novo fiel, é uma missão. Para esses religiosos a verdade é algo revelado, algo bem distinto das verdades racionalmente estabelecidas e cientificamente demonstráveis. Enquanto a verdade científica é, necessariamente, dinâmica, mutável e sujeita a demonstração, a verdade dos fundamentalistas prescinde de qualquer evidência e nunca muda, uma vez que é estabelecida diretamente pelo Ser Supremo. Tendo esse caráter como poderia ser questionada?

O Afeganistão não é só hoje | Jaime Pinsky

Um bom fiel não deve apenas seguir a filosofia e aceitar as práticas, os rituais e a estrutura de poder de sua religião. Seu papel é, também, fazer com que o mundo melhore, com que cresça o número de fieis daquela que considera a “verdadeira” crença. Isto leva os seguidores de uma religião estabelecida a tentam converter, por bem, se possível, ou por mal, se necessário, o maior número de pessoas. A única solução para frear o ímpeto dos donos de verdades espirituais é limitar seu poder. Quanto mais poder as religiões concentrarem, mais tratarão de impor sua ditadura que não é apenas espiritual, uma vez que, frequentemente, religiões se metem em assuntos relativos à sexualidade alheia, problemas de saúde pública e privada,  regimes alimentares, apreciação estética sobre o que deve ou não passar nos cinemas e na TV, acordos de união entre dois cidadãos maiores de idade e por aí afora. Em alguns lugares, religiões desempenham o papel de consultores de moda feminina, salvadores da pureza (também das mulheres), guardiões do que consideram bons costumes (com cartilhas datadas de mais de 13 séculos!), consultores de turismo (alguns lugares tem que ser visitados, outros não devem), e, em alguns países conhecidos, em conselheiros e mentores políticos de dirigentes nacionais…

Quando uma religião tem amplitude territorialmente limitada ela, obviamente, tende a prejudicar menos gente. Mesmo porque, religiões tribais tendem a ser egoístas com seu deus ou seus deuses, querem que eles os protejam, e somente a eles. Uma luta entre grupos tribais ou entre clãs é uma luta sobre quem tem o deus mais poderoso. Veja-se o judaísmo, por exemplo: é uma religião que, no começo, preocupava-se com a unificação de doze tribos, há mais ou menos três mil anos. Ela nunca teve ambições expansionistas, uma vez que, explicitamente, privilegiava os descendentes de Abrahão. Em todos os escritos do cânone judaico fica claro que todos os povos são iguais diante de Deus, mas os hebreus são, digamos, mais iguais. Essa atitude era bastante comum na Antiguidade, quando predominavam as divindades locais. Não acontecia de os dois lados em um combate rezarem pedindo ajuda ao mesmo Deus… Assim, o judaísmo, mesmo trazendo mensagens universais de justiça social – como fica claro nas palavras dos profetas Isaias e Amós – nunca foi uma religião com ambições universais.

Já o cristianismo é diferente. É verdade que não há informação de que Jesus tenha abandonando o judaísmo (pelo contrário, sabe-se até que ele comemorou o seu bar mitzvá (cerimonia judaica de iniciação, correspondente nas tribos a ritos de passagem da infância à idade adulta). Contudo, o cristianismo ganhou cores mais definidas com Paulo, grande estrategista, que deslocou o epicentro da religião para fora do Oriente Médio. Ele percebe o mundo romano como espaço ideal para a pregação de uma ideologia de gente sofrida e marginalizada, adapta e altera comemorações judaicas para que se aproxime do que era conhecido no mundo greco-romano e abole práticas difíceis de serem aceitas (é o caso da circuncisão, frequentemente confundida, com castração). De religião dos pobres e sofridos, o cristianismo logo avança para ser a crença oficial do Império e a mesma violência que os primeiros cristãos haviam sofrido anos antes volta-se agora contra “infiéis” de todas as fés… A destruição  da Biblioteca de Alexandria por cristãos encolerizados com ensinamentos não canônicos em livros “ímpios” é só um exemplo do que uma religião com poder político pode realizar…

A penetração do islamismo na Ásia Central e os massacres a que populações locais de cultura mongol foram submetidas é descrita por historiadores especializados em estudos sobre a rota da seda. A submissão de homens, mulheres e crianças negras na África e sua transformação em escravos vendidos a traficantes que os repassariam a fazendeiros nas Américas é episódio muito conhecido – e nem um pouco edificante – da história.

O Afeganistão já existe há muito tempo.


Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.