O projeto apresentado pelo governo estadual de São Paulo vai na contramão do seu apregoado liberalismo, de sua suposta visão democrática
Nosso sistema educacional não tem oferecido muitos motivos de orgulho para os brasileiros. Nossos resultados em rankings internacionais e a perda de qualidade, a pretexto da universalização, são fatos conhecidos. É necessário, ainda, registrar certo marasmo da máquina pública educacional, algo facilmente percebido por todos os que já tentaram colaborar no aperfeiçoamento do sistema educacional e tiveram de enfrentar marasmo, mávontade e burocracia sem fim. Ideias novas, olhares diferentes e quebra de rotina parecemameaças para muitos ocupantes de cargos de relevo nessa máquina emperrada. Dogmas e acomodação se unem para manter o mesmo, por pior que pareça.
Diante dessa realidade, poderia parecer que a reação à decisão do governo de São Paulo deabrir mão da verba do Ministério da Educação (MEC) para a compra de livros e a decretaçãodo fi m do livro didático impresso em papel não passam de reação do marasmo contra odinamismo, da mesmice contra o novo. Só que não. Desta vez, temos algumas coisas muito sérias e até assustadoras aparecendo no horizonte, e é necessário falar sobre elas com clareza.
No fim das contas, ficamos com a impressão de que, no frenesi de apresentar novidades – ehaveria muitas para serem apresentadas com o objetivo de melhorar a educação em nosso Estado –, o governo estadual está errando o alvo pelo simples motivo de desconhecer oassunto. Na melhor das hipóteses.
O governo fez um movimento só, mas está atacando em duas frentes: liquida com o livroimpresso em papel e acaba com a possibilidade da escolha do livro pelo professor. Vou tratardas duas.
Por mais que tenha jeito de coisa moderninha, já há um consenso científico contrário à ideiade que o digital substitui o impresso em todas as situações, em todos os tipos de texto. Nada contra o digital, desde que bem utilizado. Eu mesmo tenho um aparelho leve que carrega bom número de livros e não deixo de levá-lo comigo quando viajo e não posso transportar todos oslivros físicos que lerei durante o período em que estiver fora. Também leio mensagens nocelular, embora me recuse a estabelecer relação de dependência com ele. Mas sou um adulto, e estamos falando de crianças e adolescentes em fase de formação. E aí, prezado governador, temos de ouvir quem sabe, não quem simplesmente quer inovar.
Uma das mais importantes e respeitadas especialistas, a americana Maryanne Wolf, em seu livro O cérebro no mundo digital, deixa isso bem claro, particularmente quando demonstra quea leitura em papel permite maiores concentração e aproveitamento, menos interferência de fatores externos e, com isso, provoca um desenvolvimento cerebral mais intenso, duradouro e consequente. Se o objetivo dos educadores e administradores do setor de educação for – como deveria ser – a formação de gente qualificada, capaz de pensar por si própria, a partir deum repertório sólido de informações, o texto escrito e impresso em papel é fundamental. Nada contra o uso de material digital mais tarde, nada contra a utilização de material digital complementar, mas não como material exclusivo, particularmente no período de formação. De resto, é uma falsa novidade. Até quem fez isso há algum tempo já voltou atrás.
No entanto, a meu ver, este não é sequer o problema mais grave. O projeto apresentado pelo governo estadual vai na contramão do seu apregoado liberalismo, de sua suposta visão democrática. Vai, inclusive, na contramão de algo que o governador Tarcísio de Freitas gostade alardear, principalmente quando quer mostrar seu distanciamento com relação aos demais políticos: a prioridade que dá à competência.
O projeto prevê a aplicação de um conceito perigoso, o da existência da verdade única, uma vez que sugere existir um grupo de sábios, donos da Verdade (essa mesma, com V maiúsculo), que produziriam um assustador livro único, que substituiria todos os livros escritos e publicados por todas as editoras especializadas existentes no Brasil (a propósito, não estou ligado a nenhuma editora de livros didáticos). Assustador, sim. Se o governo federal falar em livro único, os liberais protestarão. Livro único existiu na União Soviética stalinista. Livro único, queridos liberais, era o que circulava na Alemanha nazista. Livro único cheira a pregação ideológica.
No sistema atual, o Ministério da Educação banca os livros escolhidos por cada professor, em cada escola de cada um dos Estados do País (e esperamos que não mude de rumo). É muito razoável que o professor seja a pessoa mais indicada para escolher o livro mais adequado para seus alunos. Ele sabe os alunos que tem na classe, o potencial de cada um deles, o universo em que vivem, suas referências culturais. Ou devo entender que o senhor secretário de Educação, que teve sucesso como empresário, sabe melhor do que o professor qual o livro que este deve utilizar com seus alunos?
Fonte: artigo publicado no Jornal Estado de S. Paulo
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.