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Não há vaga | Rubens Marchioni

Fátima estava um pouco – só um pouco – estressada quando voltou do fórum em torno das 14 horas, depois de saber, por meio do advogado, que sua petição for indeferida sine die. O motivo da briga era uma questão trabalhista, envolvendo bullying e assédio moral, com pedido de uma indenização bastante elevada para o faturamento mensal da farmácia. Mas ela não esperava nada muito diferente. Teria de seguir a vida lidando com isso. “Deixa pra lá” – pensou no caminho, enquanto dirigia seu carro de segunda mão por uma avenida repleta de carros, ônibus, motos e dos seus pensamentos, que nem sempre respeitavam a sinalização e trafegavam na contramão de toda lógica.

Sua cabeça, coberta por cabelos negros e ondulados, enfeitados por uma joia que ninguém sabe se era bijuteria, sobre um corpo esguio e pele cor de bronze, estava congestionada – desejou voar, mas não conseguiu. Mais do que isso, na prática, Fátima procurava dirigir a própria vida com a cautela necessária para não causar acidentes nem perder pontos na carteira.

Não há vaga | Rubens Marchioni

Sem pressa, como se tivesse ingerido bebida de segunda linha, a adega ao lado direito da farmácia vendeu uma lata de água tônica e outra de refrigerante – providências de segunda-feira para repor as energias consumidas no final de semana.

Na rua que lembrava um tobogã, os carros andavam muito e depois subiam devagar, enquanto a dona de casa, obesa, empurrava com dificuldade paciente o carrinho cheio de frutas da época, verduras e legumes comprados na feira livre, tudo pago no cartão de crédito.

Com residência fixa, os passarinhos não sabiam de nada disso. Apenas voavam de um canto para outro, sempre cantando, como se fossem aves libertas da Arca de Noé.

Em 42 minutos, contados no relógio, Fátima estacionou o carro vermelho com dez anos de uso em frente à farmácia de manipulação, onde era gerente. Driblou a correnteza deixada pela chuva de verão ainda insistente e sentiu na pele um mormaço que prometia mais água vinda do céu, que naquele momento parecia exausto, de tanta água que havia jogado ao longo da noite.

Deu-se a tragédia: sua vaga, ao lado de uma tulipa negra, protegida por uma caixa de cimento, estava ocupada. Era novamente o carro de Laerte, e ela praticamente não se sentiu nada satisfeita com a invasão repetida. “Bater é pouco, matar é muito, então deixa pra lá” – pensou, antes de pisar no tapete novo em folha junto da porta de ferro, coberta por pichações, com sua bota marrom, calçado feito de couro legítimo e um discreto cano longo. Uma galocha seria mais indicada para a ocasião chuvosa ao extremo? Até poderia ser, mas ela em nada combinaria com a saia xadrez que misturava as corres amarela, violeta, vermelho e azul.  

– Bom dia, pessoal. Tudo bem por aqui?
– Tudo bem, Fátima – respondeu o funcionário do Caixa.
– O Laerte já chegou? – Não era um pedido de informação, estava apenas confirmando o que já sabia. Sua boca abrigava uma sensação meio amarga.
– Chegou, está lá em cima – respondeu uma balconista que fazia a reposição de remédios para todos os males, desde micose nas unhas até calmante para dormir. Enquanto a jovem abaixou a cabeça e voltou sua atenção para tantos rótulos, todos iguais, e inscrições que por vezes a confundia, Fátima subiu; passos miúdos, olhos semicerrados.
– Bom dia, Laerte. Tudo bem por aqui?
– Bom dia, Fátima. Por aqui tudo bem. E aí? – “A corcunda chegou…”, Laerte segredou para si mesmo.
– Meu carro ficou na rua, em frente à farmácia. Será que tem perigo?
– Não, acho que não, acho que não – Laerte respondeu.
– É, minha vaga está ocupada outra vez.
– Sua vaga? Ah, sim, é o meu carro que está lá. Me confundi. Foi mal, foi mal.
– Claro, claro. Tudo bem, daqui a pouco você retira o seu…, não é mesmo?
– Sim, já vou descer. Foi mal, desculpa, foi mal.
– Obrigada, Laerte. – A boca, o tom espremido das palavras e os olhos fixos no Químico não sinalizavam para a paz.

Não demorou mais do que meia hora para que a filha de Fátima chegasse à farmácia onde o clima era um tanto carregado.

– Oi, minha mãe está aí? Ela, tipo, já chegou?
– Chegou, está lá em cima.
– Oi, mãe, estou tipo precisando de uma graninha…
– De novo? O que foi dessa vez, filha?
– Eu sei, mãe, foi mal. Tipo, eu quero trocar a capa e a película do meu celular.
– De novo? Tá certo, já faz quase 20 dias que você trocou, tá mesmo na hora de trocar, né, filha? O que mais você quer trocar? Que tal trocar o desleixo com os estudos? Faz um tempão que eu não vejo você estudando.
– Valeu, mãe, você, tipo, faz um pix pra mim?
– Eu “tipo” vou pensar se “tipo” vou te dar dinheiro “tipo” outra vez pra isso. “Tipo”.
– Valeu, tchau. Fui.

O barulho da escada indiscreta ficou mais alto – por ela trafegaram, em alta velocidade, em sentido contrário, Laerte e Raissa.

– Fátima, foi mal. Sabe que não tinha lugar pra estacionar na rua? Um absurdo! – disse Laerte, forçando uma expressão aborrecida.
– Sei.
– Daqui a pouco eu desço de novo, quem sabe dessa vez eu dou sorte.
– Sei. Eu também não encontrei minha vaga livre. Isso também foi mal, não dei certo. Precisei encontrar um lugar na rua. – As relações entre eles faziam pensar em coisas como Corpo de Bombeiros.
– Encontrei a Raissa na escada. Acho que nem me viu – disse Laerte.
– É, se não é do jeito que ela quer, não é de jeito nenhum. Ela sempre faz o que quer, do jeito que ela quer. Menina chata!

A vida passou, e antes que o tempo fizesse o mesmo, e para não perder tempo, outra vez Laerte antecipou a hora do almoço. Assim se livraria mais cedo do enfadonho trabalho lidando com produtos químicos, profissão que abraçou com um braço apenas, desmotivado – a paixão era suficiente apenas para um beijo na testa, de preferência com olhos abertos. Não suportava um casamento, porque não ia além da condição de fonte de renda obrigatória.

O tempo passou, rígido. A vida passou. A fome insultante e temperamental chegou. Novamente Fátima resistiu e lutou contra ela enquanto pôde. Não queria parar seu trabalho. Era sempre assim, nunca desejava deixá-lo, a menos que alguém muito próximo falecesse ou coisa assim, ou se Jesus Cristo voltasse. Pouco depois, Fátima também saiu para almoçar.

Do cardápio, pinçou um pedaço generoso de salmão que se desmanchava na boca, com salada tropical e suco de laranja, alimento que antes excitou-lhe o olfato e os olhos, alegrou seu paladar e desceu feliz da vida. No final do expediente, Fátima fotografaria algumas janelas coloridas a pouco mais de um quilômetro da sua casa. Era relaxante aquele esporte praticado com assiduidade.

Quando voltou, sua vaga, no estacionamento da farmácia, estava ocupada pelo carro de Laerte, e ela teve de procurar outra, garimpo quase frustrado, para encontrar um espaço a 120 metros dali, colado a uma caçamba e espremido pelo carro de trás.

Durante todo o dia, o carro inconveniente de Laerte continuou no mesmo lugar, estacionado em espaço alheio, como estacionada estava a sua vida profissional, um Químico despreparado num emprego onde talvez não devesse estar.

No final da tarde daquele dia problemático, Laerte tomou a decisão adiada: pediu demissão. O carro da sua vida profissional procuraria outros espaços, agora na área da Engenharia Civil, onde ao menos teria boas razões para ser um profissional com desempenho satisfatório. Ele só não era engenheiro, mas apostava na sua competência.

Fátima ficou onde estava. Mas não se livrou dos pedidos renovados de dinheiro feitos pela filha Raíssa, não se sabe ao certo para que tipo de gasto.

Mas Fátima não podia se livrar da sua menina. Raissa não pediria demissão. E vivia estacionada na conta bancária materna.

A máquina fotográfica sofisticada retratou suas emoções e pensamentos velados, traduzidos pelas formas e cores das janelas distraídas.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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