– Mãe, vou pegar um pouco de sol.
– Vai sozinha? – disse a mulher, olhando de lado e apertando os olhos. – Veja lá, veja lá!
– Sim, claro que vou sozinha. Por que a pergunta?
– Nada não, só curiosidade, só curiosidade, esquece.
– Sei, só curiosidade, né?
A ambulância passou voando, enquanto Milena saboreava açaí como numa liturgia, sob um chapéu claro feito de material orgânico.
A areia quente castigava os pés de Milena, que tentavam fugir para dentro de um chinelo com tiras estreitas como o pensamento dos ignorantes.
Ela estava muito animada naquele dia. A noite havia sido das melhores, sem qualquer pesadelo; o sono pesado e a experiência de leveza era inevitável. Pisava no chão, na calçada generosa, mas era como se caminhasse entre nuvens, levada pelo vento. Só não esperava ser recebida pela areia com desejo de se tornar incandescente. Mas isso era do jogo; Milena não estava preocupada.
Sob um guarda sol, uma garrafa de cerveja refletia sem cautela os raios do sol, que não veio a esse mundo passar férias – sua produtividade, naquele momento, era das melhores.
Como disse no parágrafo anterior, o sol estava mesmo disposto a agir. Mas o brilho da determinação ou teimosia de Milena lutava para não ser comprometido por nada disso, não havia de ser um solzinho metido a besta que o ofuscaria. Dava até para desconfiar.
Dez minutos depois de se instalar sob seu guarda sol, com listras vermelhas e azuis à moda francesa, Luigi se aproximou, por trás, e tentou assustá-la.
Não deu certo. Milena já sabia que ele estava por aí e que amava a vida na praia e os banhos demorados de mar, onde tornava mais densa a pele morena conquistada a duras penas na piscina do seu prédio, sempre com uma densidade geográfica abusiva. Fora isso, que é apenas um detalhe, Luigi não era unanimidade entre os membros da família de Milena. Não se sabe ao certo, mas havia uma séria rejeição em torno do seu nome. Se a eleição para novo membro da família fosse naquele dia o pobre coitado amargaria uma derrota escandalosa. Sim, claro que havia outros candidatos, aquele que nunca teve coragem de se declarar no páreo em busca de votos.
– Ficou surpresa de me ver?
– Não, seu bobo. Eu sabia que você estava por aqui. Relaxa.
– Sabia como, se eu não falei nada?
– Tem coisas que não precisa falar. Eu já te conheço. Sei onde me esconder de você nessa época do ano. Por exemplo, na sua casa, acertei?
– Sim, mas só dessa vez.
– Só dessa vez… nesta semana – Milena disse quase gargalhando.
– Olha lá. Não estou gostando nada do jeito desses dois caras que vem vindo pra cá – disse Luigi.
– Tudo bem, não esquenta.
– É bom a gente ficar atento. Já tenho alguma experiência nisso.
Os dois rapazes se aproximaram, apenas se aproximaram, e era como se fizessem uma breve radiografia do casal. Milena e Luigi olharam, piscando pausadamente, com os olhos semicerrados. Os visitantes indesejados se afastaram. Foram embora. Talvez pensassem em voltar. Talvez não.
O casal sentiu que merecia uma boa recompensa pelo afastamento dos dois suspeitos. E foram para o restaurante. Para começar, tomaram uma caipirinha de lima da Pérsia.
– Eu quero um camarão na moranga – disse Luigi –, incluindo uma garrafa de vinho chileno.
– Por falar em vinho, seu trabalho é horrível, não é mesmo? Passa o dia experimentando vinho e ainda ganha pra isso… – disse Milena.
Luigi fez que sim, esperando que o garçom, muito bem vestido – porque o estilo sofisticado do restaurante, encravado num bairro de classe média, exigia –, se retirasse. Luigi esperava que ele tivesse ouvido a observação.
– Onde está a Milena? – disse o pai.
– Está na praia, onde mais? Aquela desmiolada… Acho que vem almoçar.
Em casa, como de costume, o casal almoçou um almoço trivial.
Milena e Luigi teriam voltado para a praia. Mas a caipirinha e a abundância dos pratos se uniram para forjar uma preguiça da melhor qualidade, mantendo-os ali mesmo por mais algum tempo. Em seguida, foram ao shopping e comeram uma torta mousse de limão e tomaram um café expresso amargo.
Despediram-se como se despedem os amantes. Cada um voltou para a casa onde se hospedavam – a de Milena ficava bem mais perto da praia e apenas três quadras de uma doceria. Sorte dela, que por isso não precisava tirar o carro da garagem do prédio, onde os espaços eram de todos e de ninguém.
No caminho de volta, Milena passou pelo supermercado para comprar um pacote de bolacha, geleia, pão de forma e leite condensado para uma experiência gastronômica sem promessas, algo que jamais entraria na lista dos que foram agraciados com o Michelin. O celular e os cartões do banco passeavam quase saltando do bolso traseiro.
Por acaso, um dos rapazes da praia também estava lá – ele era um investidor em telefonia móvel e compras de alto valor, mas com baixo custo. Não usava cesta nem carrinho. Tinha nas mãos um saco plástico com muito tempo de uso e contendo um volume tão desconhecido quanto suspeito. Olhava de maneira estranha as pessoas que circulavam pelos corredores, tentando dar a impressão de que apenas conferia os preços. Tudo estava muito caro. Para ele, nenhum problema quanto a isso. Comprava tudo no cartão.
Milena passou logo no Caixa, pagou logo a sua conta e foi logo embora daquele lugar para chegar logo em casa. Naquele dia ela fez tudo muito rápido, uma cena densa, feita apenas de ações concretas e pouco pensamento para não atrapalhar. Na calçada, longe dali, ligou para Luigi.
– Lembra aqueles dois sujeitos mal-encarados? – disse Milena.
– Sim, lembro. O que aconteceu? – disse Luigi.
– Hoje não é meu dia. Você acredita que um deles estava no supermercado?
– Nenhum confronto, espero…
– Não, relaxa, mas a atitude do sujeito era muito suspeita, sabe? Tudo bem, deixa pra lá.
– Como assim, “deixa pra lá”? Nos vemos amanhã? Na praia?
– Pode ser. A gente se vê por lá. Beijo. Tchau.
Embaixo do chuveiro, Milena ensaiou fragmentos da música “Perfect”, que não lhe saía da cabeça e da língua, enquanto se lembrava de uma história, material escondido no passado, que sempre desejava voltar para criar novos pensamentos e sensações inexplicadas. “Entra, a casa é sua”, dizia para essas lembranças de outro romance que nasceu com prazo de validade vencido. Os pais tentavam não imaginar o que estaria por trás de tanta cantoria em banhos demorados e felizes.
Milena sentou-se à mesa, na cozinha, para tomar um café preguiçoso e jogar conversa fora com a mãe.
– A praia estava boa, filha? Você foi sozinha? Não parece… – a mãe perguntou.
– Não sei se parece, mas fui sozinha, mãe. Por que a pergunta de novo?
– Nada não, coisa boba de mãe. É, eu confio em você. – “Bem que eu gostaria de confiar”, pensou e calou.
– Sei. Imagina se eu conto o que aconteceu de verdade!
– “De verdade”? Quer dizer que está mentindo? Com essa idade? E por que não conta?
– Contar o que, mãe? Por acaso algum dia eu pude me abrir com você?
Silêncio. Não aconteceu nada. Ninguém perguntou nada. Nada de nada.
O pai deMilena entrou com um velho amigo; mãe e filha foram salvas. Mas não haveria qualquer sinal de amnésia. Trégua é apenas trégua, não promete nada além disso. A mãe acabava de fazer um recuo estratégico.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao