As histórias em quadrinhos têm grande potencial didático, de entretenimento e como objeto de pesquisa e estão longe de ser uma linguagem estritamente infantil e uma arte menor, como muitos imaginam ser.
Gibis, HQs, comics, arte sequencial, narrativa gráfica ou, como prefiro chamar, histórias em quadrinhos… Essa linguagem, muitas vezes associada à leitura infantil e vista com um certo desprezo pela indústria editorial, teve um lugar relativamente recente na história da minha vida.
Não fui uma grande leitora de quadrinhos e gostaria muito de dizer que faço parte do grupo dos alfabetizados com os gibis, mas esse não é o caso. Tornei-me fã de quadrinhos ao acompanhar meu filho, ainda muito pequeno, em meados dos anos 2000, nas leituras de suas primeiras revistas. Era prazeroso vê-lo em gargalhadas com situações e diálogos dos moradores do bairro do Limoeiro… Magali e Cascão eram seus preferidos. Depois, quando começou a vida escolar, aos quatro anos, a rotina era passar na banca de jornal em frente à escola ou perto de casa e sair com pelo menos um gibi, da Turma da Mônica, claro! Meu filho, sim, pode dizer que aprendeu a ler e a escrever com os quadrinhos.
Como professora de Geografia, meu encantamento pela chamada “Nona arte” tornava-se cada vez maior conforme descobria a diversidade de publicações. Foram muitas as vezes em que participaram das minhas aulas personagens famosos e anônimos.
Uma das minhas “assistentes” mais assíduas era a argentina Mafalda, especialmente na discussão de temas de geopolítica. A famosa personagem, que teve seu auge na década de 1970, era preocupada com questões globais de seu tempo, marcado pela Guerra Fria. Não faltavam críticas às desigualdades, às injustiças sociais, às relações entre países. Quarenta anos depois, é triste – mas não surpreendente – notar que muitas das preocupações da Mafalda continuam atuais. E se a menina idealista, à frente do seu tempo, olhasse para o mundo de hoje, não faltariam as velhas e novas questões: aquecimento global, fake news, inteligência artificial, pandemia, redes sociais, intolerâncias, xenofobia, saúde mental… No entanto, assim como na sua época, muito provavelmente ela continuaria com esperanças por um futuro melhor.
Sempre morei e lecionei em São Paulo. Em parte, por causa disso e também pelo indesculpável “sãopauloriocentrismo” (esse termo acabei de inventar, não procurem no dicionário🤭), que marcou a indústria cultural nacional, demorei para conhecer uma turma que, depois, era muito presente nas aulas sobre o semiárido nordestino: a Turma do Xaxado.
O baiano Antonio Cedraz compôs personagens que traziam a realidade da população sertaneja, o que nos permitia discutir questões da fala regional e coloquial, estereótipos, indústria da seca, convivência com o Semiárido e tantos outros temas vistos de forma divertida e crítica.
Minha aproximação com os quadrinhos se estreitou no Mestrado em Geografia Humana. Inspirada pela gibiteca caseira de super-heróis, pelos quais meu marido é aficionado, mergulhei na paisagem urbana de Gotham City (Batman), num exercício didático de uso da ficção para a compreensão de como as configurações espaciais influenciam corpos e mentes: o espaço sendo produzido pela sociedade e a sociedade produzindo o espaço.
O contraste entre as paisagens de Gothan e Metrópolis representam as oposições entre seus cidadãos ilustres, Batman e Superman. Reprodução: Superman e Batman: as duas faces da Justiça.
E foi cursando uma disciplina do professor Waldomiro Vergueiro, na ECA-USP, que ampliei minha visão sobre o potencial das histórias em quadrinhos e o uso na sala de aula nas diversas disciplinas: leitura das versões quadrinizadas de grandes obras literárias, reflexões sobre conceitos complexos da Filosofia e da Física, análise de fatos históricos e tantos outros usos e temáticas. Um tanto deslocada numa turma de aficionados, mas muito animada com um mundo novo que se abriu, lancei para o professor Waldomiro e para os colegas de turma, a ideia de um pequeno e ao mesmo tempo grandioso livro, o Como usar quadrinhos na sala de aula*. Passadas quase duas décadas da primeira edição, a obra permanece uma referência no assunto.
Desde os primeiros quadrinhos que caíram em minhas mãos até os dias de hoje, muita coisa mudou na indústria do entretenimento e na forma que nos divertimos e aprendemos. Mas nesse mundo de nativos digitais em que as telas tomaram lugar de livros e revistas físicos, a linguagem dos quadrinhos continua viva, juntamente com o encantamento de crianças, jovens e adultos.
Fonte: Portal Conteúdo Aberto
Conheça o livro Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Editora Contexto, 2004.
Angela Rama é mestre em Geografia Humana, bacharel e licenciada em Geografia, pela USP. Especialista em ensino de Geografia pela PUC-SP, atuou como professora no Ensino Fundamental e Médio nas redes pública e particular do estado de São Paulo. É colaboradora do NCE/ECA-USP (Núcleo de Educomunicação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo) e trabalha com formação de professores e assessoria pedagógica. Pela Contexto é organizadora do livro de Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula.
Waldomiro Vergueiro é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde coordena o Observatório de Histórias em Quadrinhos e ministra a disciplina Editoração de Histórias em Quadrinhos. Organizou o livro O Tico-Tico: Centenário da primeira revista de quadrinhos do Brasil e é autor do livro La historieta latinoamericana Tomo III: Brasil (Editora La Bañadera del Comic). Pela Contexto é autor do livro Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula e organizador do livro Quadrinhos na Educação.