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Memórias e narrativas

Memórias e narrativas

Mas por que história oral aplicada? Há outra manifestação de história oral que não seja aplicada? O espelho da linguística, da psicologia e da matemática, entre outros ramos das ciências humanas e exatas, propõe reflexões que valorizam a história oral para além dos aspectos teóricos, abstratos, executivos. Mais do que fenômeno simples ou corriqueiro, sem maiores valorizações, a oralidade é assumida em seus extremos práticos e dimensionada como ato propositivo, bem como de inerência pública que ganha foros de relevo. Importa extraí-la de sua aceitação natural e provocar ponderações mensuráveis.

A elevação à categoria de registros, estudos ou reflexões, por sua vez, considera a dimensão popular e dialógica, de aceitação da oralidade além dos quadros acadêmicos. Por certo, a vocação pública impõe dificuldades que, de modo enviesado, têm sido solucionadas na divisão criticável de “história oral acadêmica” versus “história oral popular”. A insatisfação com tais polarizações convida ao reordenamento do debate, imaginando o denominador comum, público e amplo, produtor e receptor, usuário enfim de todo e qualquer esforço do trabalho com entrevistas planejadas. Valorizando a recepção, certa aplicação da história oral se mostra como manifestação democrática possível, e, assim, cumpre papel político desejável. Evidentemente não se trata apenas de dimensionar o público da história oral e o consumo de histórias, mas a colaboração – como um fazer em conjunto – que confere sentido mediador aos investimentos.

A soma de atos que compõem os procedimentos adotados por oralistas, pessoas que trabalham com a história oral enquanto prática geradora de documentos e de registros que se explicam pela comunicação, tende a articular manifestações derivadas da existência de projetos. O desempenho prático da história oral, portanto, começa na elaboração de qualquer plano efetivo do trabalho, com entrevistas planejadas em seu sentido amplo e comunicativo. História oral aplicada é a dimensão prática de reflexões que não existiriam sem a materialização das intenções e sem a vocação comunicativa que podem confluir em análises. A aplicação se inicia na escrita de um plano de trabalho, que, ao contrário de se esgotar no começo, exige desdobramentos que evoluem para sua conclusão transcriativa e a devolução ampla.

História oral aplicada qualifica, assim, a função dos trabalhos feitos com entrevistas características. Porque se reconhece nessa prática a vontade de envolvimento dos segmentos que explicam a história oral, as definições de sua aplicação respondem a outro sentido do termo “aplicada”, isto é, cuidada, cultivada, educada; trata-se de uma história oral disciplinada ainda que escape aos enrijecimentos e imobilidades. Tais sinônimos valorizam, pois, o esforço transformativo da passagem do oral para o escrito: momento decisivo de ápice e síntese do diálogo mediador com a memória de expressão oral. Nada obstante, complementa-se, neste encete, o que tem sido divulgado até o presente como história oral – termo carente de coerência afetiva, mnemônica e/ou sócio-política.

A frase de Borges, constante na epígrafe, remete ao encantamento da experiência filtrada pela memória sempre em busca de seu sentido social. Mesmo traumas, dores pessoais e históricas, incuráveis agruras de outros, relatos extraídos do íntimo, ou, pelo contrário, expressões de interesses triunfantes, narrativas amorosas; tudo, enfim, se dinamiza por meio da comunicação verbal e assim ganha enlevo, dignifica a experiência de registros por modestas que sejam. Isso, aliás, lhes garante destaque central no cultivo de conhecimento, confere vida própria na ordem dos saberes, além do fascínio da combinação de fala/escuta/produção textual. Memória de expressão oral é mais do que reportagem, mais do que geração de novas pautas de debate e muito mais do que diagnóstico social. É sempre sondagem profunda, reflexão sobre o que é retido e reelaborado na intimidade da memória, substância que se projeta no diálogo entre partes interessadas na busca por entendimentos; trata-se de fiações argumentativas que se desenrolam e se tramam para deslinde de argumentos provocados. Tudo na chave da humanização das relações, na busca de compreensão de nossos papéis no mundo. Há algo mais profundo do que o exercício analítico de textos.

O resultado de encontros gravados, solenes pela responsabilidade do registro, diferencia-se das decorrências formatadas com base em documentos preexistentes, escritos, esfriados pela materialidade decorrente e distanciados daqueles produzidos alhures. É sob essa condição que se combinam fatores capazes de dar sentido para a história oral “filha da memória”, condição exprimida por sons articulados na responsabilidade de contatos de pessoas. Importam as falas socialmente prezadas por cidadãos, expressões apresentadas como ativadoras de lembranças em favor de entendimentos dos dilemas ou questões a serem percebidas, consignadas sempre em favor de razões sociais. Nessa escala, a memória verbalizada justifica sua validade como atributo exclusivo dos seres humanos – seres mnemônicos por excelência – em busca de relações sustentáveis, sensíveis. Exclusivo dos viventes, sim, mas de sutil apreensão e entendimento decorrente da fala. Na mesma senda, valoriza-se a bifurcação entre modos de expressão. A memória “por escrito” percorre caminhos próprios e paralelos, distintos da “pronunciada verbalmente”. Não são duas memórias, mas gozam de autonomias expressivas próprias; gêmeas, geradas na mesma maternidade, relacionam-se, mas não se confundem. Memória de expressão oral é matéria diferente da que se expressa por meio da e na escrita, o que torna conveniente não confundir uma modalidade com outra.

Indo além, cabe perguntar: mas, se germinadas nas memórias pessoais e coletivas, como tais marcas de lembranças podem se expressar pela via oral? Quais as diferenças mais evidentes das memórias depois proclamadas por escrito – na solitude individual e no tempo que lhe aprouver, podendo ser revistas, daquelas verbalizadas? E as respostas se prontificam para salientar que pela fala, aquelas disparadas em relatos dialógicos, cumpridos na intenção imediata do registro com interlocutor direto, se caracterizam na intensidade das presenças, no frescor dos contatos, na revelação de subjetivos escondidos nos filtros das lembranças. É pela transcendência do oral em busca de soluções escritas, complementares, que a história imediata se faz matéria e, assim, ganha foros de respeito com desejo de permanência. (continua…)

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Os autores:

José Carlos Sebe B. Meihy é professor titular aposentado do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP). É um dos introdutores da moderna História Oral no Brasil. Criador de uma metodologia própria de condução de História Oral, seus trabalhos são considerados fundamentais por estabelecer elos entre a narrativa acadêmica e o público em geral. Suas pesquisas combinam temas do tempo presente com estudos sobre identidade e memória. Centrando sua atenção na história oral de vida, tem sido convidado para cursos e eventos acadêmicos em diversas partes do mundo. Seus principais trabalhos no campo da relação sociedade-oralidade abordam questões ligadas aos índios Kaiowás, modos de estrangeiros verem o Brasil (brasilianistas), universo dos favelados paulistas da década de 1960 e pontos de vista dos brasileiros que na atualidade deixam o país.

Leandro Seawright é doutor em História Social pela USP. É professor adjunto nos cursos de licenciatura e bacharelado em História da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados (FCH/UFGD), docente do Programa de Pós-Graduação em História (mestrado e doutorado) da mesma instituição, além de coordenador do Núcleo de Estudos em História Oral, Memória e História Pública (HOMP/UFGD). Atuou como pesquisador da Comissão Nacional da Verdade, entre os anos de 2012 e 2014. Ao longo do tempo, dedicou-se à reflexão sobre a memória de expressão oral, a dimensão pública da história oral e, mais recentemente, à instrução da história oral aplicada. Seus estudos confluem com a História do Brasil Republicano, na intersecção entre religião, política, memória e histórias de vida ou narrativas de características testemunhais.