No Brasil, o discurso em favor da educação popular é antigo: precedeu mesmo a proclamação da República. Já em 1882, Rui Barbosa, baseado em exaustivo diagnóstico da realidade brasileira da época, denunciava a vergonhosa precariedade do ensino para o povo no Brasil e apresentava propostas de multiplicação de escolas e de melhoria qualitativa do ensino.
Desde então, e até hoje, diagnósticos, denúncias e propostas de educação popular têm estado sempre presentes no discurso político no país. E também desde então, esse discurso vem sempre inspirado nos ideais democráticos: o objetivo é a igualdade social, e a democratização do ensino é vista como instrumento essencial para a conquista desse objetivo.
Assim, as expressões “igualdade de oportunidades educacionais” e “educação como direito de todos” tornaram-se, no Brasil, lugares-comuns, num repetido discurso em favor da democratização do ensino, discurso que não foi interrompido nem mesmo durante os regimes autoritários e antidemocráticos dos períodos 1937-1945 (Estado Novo) e 1964-1985 (Ditadura Militar).
Ao longo do tempo, esse discurso pela democratização do ensino ora toma uma direção quantitativa, em defesa da ampliação de ofertas educacionais – aumento do número de escolas para as camadas populares, obrigatoriedade e gratuidade da educação básica –, ora se volta para a melhoria qualitativa do ensino – reformas educacionais, reformulações da organização escolar, introdução de novas metodologias de ensino, aperfeiçoamento de professores.
Na verdade, o discurso oficial pela democratização da escola, seja na direção quantitativa, seja na direção qualitativa, procura responder à demanda popular por educação, por acesso à instrução e ao saber. A escola pública não é, como erroneamente se pretende que seja, uma doação do Estado ao povo; ao contrário, ela é uma progressiva e lenta conquista das camadas populares, em sua luta pela democratização do saber, por meio da democratização da escola.
Nessa luta, porém, o povo ainda não é vencedor, continua vencido: não há escola para todos, e a escola que existe é antes contra o povo que para o povo.
Em primeiro lugar: embora a educação básica seja obrigatória dos 4 aos 17 anos, abrangendo a pré-escola, o ensino fundamental e o ensino médio, ainda não há escola para todos, como comprovam dados de 2014, apresentados no Anuário Brasileiro da Educação Básica 2016.
Na pré-escola, o atendimento em 2014 atingia 89% das crianças de 4 e 5 anos, com grande desigualdade em função da renda familiar: mais da metade das crianças matriculadas, 51%, pertenciam a 25% das famílias mais ricas e apenas 22% pertenciam a 25% das famílias mais pobres. Se se considera o atendimento a crianças de 0 a 3 anos em creches, etapa ainda não obrigatória, mas de fundamental importância sobretudo para as camadas populares, a matrícula era, em 2014, de apenas 29% das crianças, e também aqui se revela a desigualdade: quase 100% das crianças das 25% famílias mais ricas estavam em creches, enquanto apenas 86% pertenciam a 25% das famílias mais pobres. Reforça a desigualdade a predominância na educação infantil, considerando creche e pré-escola, de atendimento pela rede privada: 75% das matrículas eram, em 2014, em rede privada, apenas 35% em rede pública, da qual dependem fundamentalmente as camadas populares.
Também no ensino médio a taxa de atendimento de jovens de 15 a 17 anos estava ainda longe da universalização em 2014, não mais que 61% de matrículas. Aqui de novo se constata a desigualdade, uma diferença de 35 pontos percentuais entre a taxa de matrícula dos 25% mais pobres (51%) e a dos 25% mais ricos (86%). Dos jovens de 19 anos, portanto já com 2 anos a mais em relação à idade de conclusão do ensino médio (17 anos), pouco mais da metade (57%) tinham concluído essa etapa, ainda segundo dados de 2014.
Apenas no ensino fundamental o acesso à escola já era quase universal em 2014 – 98% de atendimento a crianças e jovens de 6 a 14 anos, predominantemente pela rede pública: 84% de atendimento, nos anos iniciais, e 86% nos anos finais.
Em segundo lugar, e principalmente: se a escola ainda não atende plenamente as camadas populares, com exceção apenas do ensino fundamental, a escola que existe é antes contra o povo que para o povo.
Assim, segundo o Censo Escolar de 2014, entre os estabelecimentos de educação infantil da rede pública, a que têm acesso as crianças das camadas populares, apenas 14% das creches e 12% das pré-escolas possuíam sala de leitura, apenas 43% das creches e 25% das pré-escolas tinham parque infantil, e tanto creches quanto pré-escolas tinham infraestrutura precária em relação a abastecimento de água, esgoto sanitário, banheiro adequado à educação infantil.
Em relação ao ensino fundamental e médio, tem sido recorrente, ao longo dos anos, e particularmente na rede pública, o fracasso escolar: reprovação e evasão, fluxo irregular, baixo nível de proficiência em alfabetização, em língua portuguesa e em matemática, baixa taxa de conclusão na idade prevista, tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio. Além disso, tal como em creches e pré-escolas, também nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio da rede pública escolas não dispõem de biblioteca, de laboratórios, de quadra de esportes, de infraestrutura adequada e satisfatória. (Ver estatísticas no verbete fracasso escolar, no “Glossário”).
Em síntese, os dados apresentados respondem à pergunta que dá título a este tópico: a escola que temos, particularmente a escola pública que temos, tem atendido precariamente as camadas populares: pesquisas têm demonstrado as relações entre origem social e fracasso na escola e da escola. Ou seja: a escola que seria para o povo é, na verdade, contra o povo. Como tem sido explicada essa contradição?
Uma primeira explicação: a ideologia do dom
“Democracia?” A pergunta é de Mário Quintana. E ele mesmo responde: “É dar, a todos, o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, isso depende de cada um”.
Que todos tenham seu lugar na escola – e a todos terá sido dado o mesmo ponto de partida. Qual será o ponto de chegada – o sucesso ou o fracasso –, isso dependerá de cada um.
Eis aí definida a ideologia do dom, segundo a qual as causas do sucesso ou do fracasso na escola devem ser buscadas nas características dos indivíduos: a escola oferece “igualdade de oportunidades”; o bom aproveitamento dessas oportunidades dependerá do dom – aptidão, inteligência, talento – de cada um.
A ideologia do dom oculta-se sob um discurso do senso comum e também de certas vertentes pedagógicas e psicológicas que assumem a existência de desigualdades naturais, de diferenças individuais, de características inerentes a cada ser humano. Assim se legitimam desigualdades e diferenças até mesmo “cientificamente”, pela mensuração de aptidões intelectuais (aptidão verbal, numérica, espacial etc.), de prontidão para a aprendizagem, de inteligência ou de quociente intelectual (QI) etc., através de testes, escalas, provas, considerados “objetivos”, “neutros”, “científicos”. Essas desigualdades e diferenças individuais, assim legitimadas, explicariam as diferenças de rendimento escolar.
Dessa forma, não seria a escola a responsável pelo fracasso do aluno; a causa estaria na ausência, neste, de condições básicas para a aprendizagem, condições que só ocorreriam na presença de determinadas características indispensáveis ao bom aproveitamento daquilo que a escola oferece. Esta seria responsável, isto sim, pelo “atendimento às diferenças individuais”, ou seja, por tratar desigualmente os desiguais. Passa, assim, a ser “justo” que a escola selecione os “mais capazes” (por exemplo: através de provas de seleção), classifique e hierarquize os alunos (por exemplo: em turmas “fortes” e turmas “fracas”), identifique “bem-dotados” e “superdotados”, e a eles dê atenção especial, e oriente para projetos de “apoio” alunos considerados com “dificuldades de aprendizagem”.
A função da escola, segundo a ideologia do dom, seria, pois, a de adaptar, ajustar os alunos à sociedade, segundo suas aptidões e características individuais. Nessa ideologia, o fracasso do aluno explica-se por sua incapacidade de adaptar-se, de ajustar-se ao que lhe é oferecido. E de tal forma esse conceito está presente na escola e internalizado nos indivíduos que o aluno quase sempre culpa a si mesmo pelo fracasso, raramente pondo em dúvida o direito da escola de reprová-lo ou tratá-lo de forma diferente, ou a justiça dessa reprovação ou desse tratamento diferencial. Assim, para a ideologia do dom, não é a escola que se volta contra o povo; é este que se volta contra a escola, por incapacidade de responder adequadamente às oportunidades que lhe são oferecidas.
Embora a ideologia do dom esteja até hoje muito presente na educação, a cientificidade de seus pressupostos foi irremediavelmente abalada quando se evidenciou, sobretudo a partir da ampliação do acesso das camadas populares à escola, que as “diferenças naturais” não ocorriam, na verdade, apenas entre indivíduos, mas, sobretudo, entre grupos de indivíduos: entre os grupos social e economicamente privilegiados e os grupos desfavorecidos, entre pobres e ricos, entre as camadas privilegiadas e as camadas populares. Por que o fracasso escolar está maciçamente concentrado nos alunos provenientes das camadas populares, socioeconomicamente desfavorecidas? Serão esses alunos menos aptos, menos inteligentes que os alunos provenientes das camadas privilegiadas, socioeconomicamente favorecidas? A busca de resposta para essas questões levou ao surgimento de uma outra ideologia: a ideologia da deficiência cultural.
Uma segunda explicação: a ideologia da deficiência cultural
Surpreendentemente, houve quem tentasse defender, no contexto da ideologia do dom, a ideia de que as diferenças sociais teriam sua origem em diferenças de aptidão, de inteligência: a posição dos indivíduos na hierarquia social estaria determinada por suas características pessoais. Ou seja: os mais dotados, os mais aptos, os mais inteligentes constituiriam, exatamente por serem possuidores dessas características, as classes privilegiadas, socioeconomicamente favorecidas, enquanto os destituídos dessas características, isto é, os menos dotados, menos aptos, menos inteligentes, constituiriam as camadas populares, socioeconomicamente desfavorecidas. Nessa perspectiva, seria natural que os alunos provenientes das camadas populares tivessem maior probabilidade de fracasso na escola: pertenceriam a essas camadas exatamente por serem menos dotados, menos aptos, menos inteligentes. Quando bem-dotados e inteligentes, não fracassariam, e teriam fácil acesso às camadas privilegiadas.
É óbvio que tal concepção não resiste à mais elementar análise social, política ou econômica. Nas sociedades capitalistas, a divisão de classes é resultado não das características dos indivíduos, mas de um sistema econômico em que os meios de produção pertencem, em sua maior parte, a grupos privados que pagam a trabalhadores pela produção de bens. Os donos do capital e, por isso, donos também dos meios de produção, constituem as classes que gozam de condições de vida privilegiadas; grande parte dos grupos que vendem sua força de trabalho aos donos do capital é composta pelas classes social e economicamente desfavorecidas, ou seja, pelas camadas populares.
As desigualdades sociais têm, pois, origens econômicas, e nada têm a ver com desigualdades naturais ou desigualdades de dom, aptidão ou inteligência.
Permanece, assim, a questão: Por que o fracasso escolar atinge predominantemente os alunos provenientes das camadas populares? Se a ideologia do dom fosse a explicação, fracassariam também, em igual proporção, alunos provenientes das classes privilegiadas.
Diante de tal impasse, uma segunda explicação tem sido proposta: as desigualdades sociais é que seriam responsáveis pelas diferenças de rendimento dos alunos na escola. Segundo essa concepção, as condições de vida de que gozam as classes privilegiadas e, em consequência, as formas de socialização da criança no contexto dessas condições permitem o desenvolvimento, desde a primeira infância, de características – hábitos, atitudes, conhecimentos, habilidades, interesses – que lhe dão a possibilidade de ter sucesso na escola. Ao contrário, as condições de vida das camadas populares e as formas de socialização da criança no contexto dessas condições não favoreceriam o desenvolvimento dessas características, e assim seriam responsáveis pelas “dificuldades de aprendizagem” dos alunos delas provenientes.
Os que propõem essa explicação para o fracasso escolar das crianças e jovens das camadas populares não consideram a estrutura social responsável pelas desigualdades e discriminações entre grupos socioeconomicamente privilegiados e grupos socioeconomicamente desfavorecidos; esses grupos não são vistos como antagônicos, muito menos como o resultado de relações sociais assimétricas. Ao contrário, os partidários dessa explicação defendem uma “superioridade” do contexto cultural das classes privilegiadas, em confronto com a “pobreza cultural” do contexto em que vivem as camadas populares. Assim, o que propõem como explicação para o fracasso, na escola, dos alunos provenientes das camadas populares é que esses alunos apresentariam desvantagens, ou “déficits”, resultantes de “deficiência cultural”, “carência cultural” ou “privação cultural”; o meio em que vivem seria pobre não só do ponto de vista econômico – daí a privação alimentar, a subnutrição, que teriam consequências sobre a capacidade de aprendizagem –, mas também do ponto de vista cultural: um meio pobre em estímulos sensórios, perceptivos e sociais, em oportunidades de contato com objetos culturais e experiências variadas, pobre em situações de interação e comunicação. Como consequência, a criança proveniente desse meio apresentaria deficiências afetivas, cognitivas e linguísticas, responsáveis por sua incapacidade de aprender e por seu fracasso escolar. Portanto, as causas desse fracasso estariam no contexto cultural de que o aluno provém, em seu meio social e familiar, que fariam dele um “carente”, um “deficiente”. Tal como na ideologia do dom, aqui também o “erro”, responsável pelo fracasso, estaria no aluno: segundo a ideologia do dom, ele seria portador de desvantagens intelectuais (dom, aptidão, inteligência); segundo a ideologia da deficiência cultural, ele seria portador de déficits socioculturais. Para esta última ideologia, a análise do fracasso escolar das camadas populares e a busca de soluções para ele ocorrem no quadro de uma verdadeira “patologia social”, em que as “doenças” do contexto cultural em que vivem essas camadas devem ser “tratadas” pela escola, cuja função seria “compensar” as deficiências do aluno, resultantes de sua “deficiência”, “carência” ou “privação” culturais.
Entretanto, do ponto de vista das ciências sociais e antropológicas, as noções de “deficiência cultural”, “carência cultural”, “privação cultural” são inaceitáveis: não há culturas superiores e inferiores, mais complexas e menos complexas, ricas e pobres; há culturas diferentes, e qualquer comparação que pretenda atribuir valor positivo ou negativo a essas diferenças é cientificamente infundada. Para essa ideologia das diferenças culturais, outra é a explicação para o fracasso, na escola, dos alunos pertencentes às camadas populares.
Uma terceira explicação: a ideologia das diferenças culturais
Os termos deficiência, privação, carência remetem ao sentido de falha, falta, ausência; as expressões deficiência cultural, privação cultural, carência cultural significam, pois, basicamente, falta ou ausência de cultura. Por isso são cientificamente indefensáveis: não há grupo social a que possa faltar cultura, já que este termo, em seu sentido antropológico, significa precisamente a maneira pela qual um grupo social se identifica como grupo, através de comportamentos, valores, costumes, tradições, comuns e partilhados. Negar a existência de cultura em determinado grupo é negar a existência do próprio grupo.
Não é, pois, adequado qualificar grupos sociais como “culturalmente deficientes”, ou “privados de cultura”, ou “carentes de cultura”, como faz a ideologia da deficiência cultural. O que se deve reconhecer é que há uma diversidade de “culturas”, diferentes umas das outras, mas todas igualmente estruturadas, coerentes, complexas. Qualquer hierarquização de culturas seria cientificamente incorreta.
O conceito de cultura assim entendido não oferece problemas quando usado em relação a grupos sociais homogêneos, com língua e costumes próprios que os diferenciem clara e indiscutivelmente de outros grupos (exemplo: populações primitivas isoladas). Quando se trata, porém, das sociedades modernas, predominantemente industriais e urbanas, o termo cultura, no singular, torna-se quase inútil: são sociedades em que convivem vários grupos, cada um deles em diferentes condições materiais de existência e, consequentemente, com estilos próprios de vida, ou seja, cada um com características culturais próprias: pode-se dizer que são culturas, no plural. Não são, naturalmente, grupos isolados e independentes; articulam-se uns com os outros em relações de interdependência, convivência em determinados espaços e momentos, participação em atividades comuns; não são, na verdade, propriamente culturas, mas subculturas.
É significativo verificar que os conceitos de “deficiência cultural”, “privação cultural”, “carência cultural” tenham surgido exatamente em países em que essas características de pluralismo cultural se somam à organização capitalista da sociedade. Ora, nessas sociedades, os padrões culturais dos grupos privilegiados, justamente e apenas porque são os padrões desses grupos, passam a constituir a cultura socialmente privilegiada e considerada “superior”, a única “legítima”. Os padrões culturais das classes desfavorecidas são considerados uma “subcultura” avaliada em comparação com a cultura dominante, isto é, com os padrões idealizados de cultura, que constituem a cultura dos grupos social e economicamente privilegiados. É assim que a diferença se transforma em deficiência, em privação, em carência. Trata-se, na verdade, de uma atitude etnocêntrica, para a qual ser diferente das classes favorecidas é ser inferior.
A escola, quando inserida em sociedades capitalistas, assume e valoriza a cultura das classes favorecidas; assim, o aluno proveniente das camadas populares encontra nela padrões culturais que não são os seus, e que são apresentados como “certos”, enquanto os seus próprios padrões são ou ignorados como inexistentes, ou desprezados como “errados”. Seu comportamento é avaliado em relação a um “modelo”, que é o comportamento das classes favorecidas; os testes e as provas a que é submetido são culturalmente preconceituosos, construídos a partir de pressupostos etnocêntricos, que supõem familiaridade com conceitos e informações próprios do universo cultural das classes favorecidas. Esse aluno sofre, dessa forma, um processo de marginalização cultural e fracassa, não por deficiências intelectuais ou culturais, como sugerem a ideologia do dom e a ideologia da deficiência cultural, mas porque é diferente, como afirma a ideologia das diferenças culturais. Nesse caso, a responsabilidade pelo fracasso escolar dos alunos provenientes das camadas populares cabe à escola, que trata de forma discriminativa a diversidade cultural, transformando diferenças em deficiências.
O papel da linguagem
Na apresentação até aqui feita das diversas explicações para o fracasso escolar, no contexto de diferentes ideologias, evitou-se mencionar o importante papel que a linguagem desempenha nessas explicações e nessas ideologias: este é o objetivo específico deste livro. Desde já, porém, é necessário destacar que as relações entre linguagem e cultura constituem a questão fundamental, nuclear, tanto na ideologia da deficiência cultural quanto na ideologia das diferenças culturais; em consequência, desempenham um papel central nas explicações do fracasso escolar, no quadro de cada uma dessas ideologias.
Pode-se dizer que a ideologia da deficiência cultural tem sua origem e seu mais importante argumento no conceito de “deficiência linguística”; chegou-se mesmo a sugerir a existência de uma “teoria da deficiência linguística”, que explicaria o fracasso escolar das camadas populares.
Por outro lado, a ideologia das diferenças culturais tem seu principal suporte em estudos de Sociolinguística sobre a linguagem das camadas populares, que a pesquisa mostra ser diferente da linguagem socialmente prestigiada, mas não inferior nem deficiente; são esses estudos que constituem o principal fundamento da contestação da ideologia da deficiência cultural e linguística.
O papel central atribuído à linguagem numa e noutra ideologia explica-se por sua fundamental importância no contexto cultural: a linguagem é, ao mesmo tempo, o principal produto da cultura, e é o principal instrumento para sua transmissão. Por isso, o confronto ou comparação entre culturas – que é, em essência, o que está presente tanto na ideologia da deficiência cultural quanto na ideologia das diferenças culturais – é, básica e primordialmente, um confronto ou comparação entre os usos da língua numa ou noutra cultura.
Em consequência, nesse quadro de confrontos culturais, a linguagem é também o fator de maior relevância nas explicações do fracasso escolar das camadas populares. É o uso da língua na escola que evidencia mais claramente as diferenças entre grupos sociais e que gera discriminações e fracasso: o uso, pelos alunos provenientes das camadas populares, de variantes linguísticas social e escolarmente estigmatizadas provoca preconceitos linguísticos e leva a dificuldades de aprendizagem, já que a escola usa e quer ver usada a variante socialmente prestigiada.
Este livro, como se disse na Introdução, pretende analisar e criticar as relações entre linguagem e escola, tendo como principal foco de interesse a compreensão do problema do ensino da língua materna aos alunos pertencentes às camadas populares. O próximo capítulo, “Deficiência linguística?”, apresenta e discute o conceito de “deficiência linguística”, mostrando sua origem e seus efeitos sobre a educação e a escola. A este se segue o capítulo “Diferença não é deficiência”, uma contestação do conceito de deficiência linguística com base em estudos e pesquisas de Sociolinguística que comprovam a existência de variedades linguísticas, mas negam a deficiência ou inferioridade de uma variedade em relação a outras. No capítulo que se segue a esses dois, “Na escola, diferença é deficiência”, os conceitos de “deficiência linguística” e de “diferenças linguísticas” são apresentados na perspectiva de uma Sociologia da Linguagem, que aponta a estrutura de sociedades capitalistas como responsável pela transformação, na escola, de diferenças em deficiências, por razões político-ideológicas. Finalmente, o último capítulo retoma e critica as funções que à escola têm sido atribuídas, no quadro dos conceitos de “deficiência” e de “diferenças”, e procura apontar caminhos para que possam ser encontradas respostas às perguntas: Como podem ser trabalhadas as relações entre linguagem, educação e classe social, numa escola que pretenda estar realmente a serviço das camadas populares? Que papel têm essas relações na definição de metodologias adequadas ao ensino da língua materna?
Se aprofunde nessas questões no livro “Linguagem e Escola: uma perspectiva social“, de Magda Soares – publicado pela Editora Contexto
*Magda Soares é professora titular emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação da UFMG. Graduada em Letras, doutora e livre-docente em Educação, dedicou sua vida universitária a leituras, pesquisas, docência, publicações marcadas pela reflexão sobre o ensino para crianças. Vem atuando como voluntária na rede pública de um município mineiro, desenvolvendo, ao lado de gestores e professores, um projeto de alfabetização e letramento na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental. É autora dos livros Alfabetização e letramento e Alfabetização: a questão dos métodos, também publicados pela Contexto.