Ensinar literatura pode ser e é um ato de reexistência na escola contemporânea.
Cynthia Agra de Brito Neves (IEL/Unicamp)
Ao ser convidada para escrever a apresentação deste livro fui logo provocada pelo título Literatura na escola. Pensei em se tratar de mais uma obra que alardeia a crise no ensino de literatura e propõe didáticas que dificilmente emplacam nas escolas. Ledo engano. O livro, escrito por Marcel Alvaro de Amorim, Diego Domingues, Débora Ventura Klayn Nascimento e Tiago Cavalcante da Silva, atualiza as discussões teóricas em torno do ensinar e do aprender literatura, retomando conceitos importantes da área para os (re)definir, ampliando-os e explicando-os para os estudiosos das Letras, Linguística Aplicada e Educação. Ousado e inovador, o livro propõe ainda atividades concretas de práticas de letramentos literários de reexistência na escola, reinventado, ética e esteticamente, a literatura, o educador, o educando, a educação literária e libertadora, por excelência.
O primeiro capítulo desmi(s)tifica, de pronto, a ideia de que ler literatura é um ato démodé, e critica como tem se configurado o ensino, historiográfico e beletrista, de literatura nas escolas: estudo cronológico de autores e obras canônicas de séculos passados encaixotados em movimentos literários. Ao contrário, a literatura é viva e onipresente, por isso ela é e pode ser – como nos versos de Arnaldo Antunes – estudada na escola contemporânea sob a ênfase em três aspectos: sócio-histórico-cultural, artístico e linguístico – defendem os autores. E há condições para tudo isso, otimizam, quando sugerem, por exemplo, a interleitura literária de O cortiço, de Aluísio Azevedo, Quarto de despejo, de Carolina de Jesus, e Cidade de Deus, de Paulo Lins: uma espécie de aperitivo antes de tantas outras sugestões didáticas propostas ao longo de todo livro, principalmente no seu capítulo final.
Já o segundo capítulo nos convida para um passeio pelos documentos oficiais que regem o ensino de língua portuguesa e literaturas na educação básica, em busca do que os Parâmetros Curriculares Nacionais, as Orientações Curriculares Nacionais e a Base Nacional Comum Curricular (não) dizem sobre literatura, leitura, leitura literária, textos literários e letramento literário. Neles, constatam os autores, há ausências e imprecisões teóricas, sobretudo no primeiro e no último documentos, já que o segundo se preocupa em delinear alguns desses conceitos caros à literatura e seu ensino. A Base, documento mais recente, decepciona: idealiza um professor cumpridor de ordens, aposta em quantidade (de gêneros textuais que devem ser trabalhados em salas de aula, com destaque os digitais) e não em qualidade (não explica “como” nem “por quê”, mas prescreve uma lista de habilidades e competências a serem alcançadas).
Além da pesquisa realizada nos documentos oficiais, os autores analisam, ainda no segundo capítulo, os primeiros volumes de duas coleções de livros didáticos, do ensino médio e do ensino fundamental, aprovadas pelo Plano Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) de 2018 e 2020, respectivamente. Os autores elogiam os exemplos de textos literários e de atividades de leitura literária que encontram nesses materiais, e assim concordam que os professores da educação básica se guiem por esses livros didáticos selecionados pelo PNLD e indicados às escolas. Tais pesquisas – dos documentos oficiais e dos livros didáticos – levam os autores a revisitarem teóricos como Antonio Candido, Angela Kleiman, o Círculo de Bakhtin, Daniel Penac, Magda Soares, Marisa Lajolo, Neide Rezende, Paulo Freire, Roland Barthes, Tzvetan Todorov, com a finalidade de (re)pensarem e (re)definirem conceitos subjacentes (ou não) aos documentos e materiais didáticos analisados. A partir disso, defendem que:
temos a leitura literária como aquela em que, diante do texto (social, política, cultural e historicamente situado), o leitor (igualmente situado) consegue reconstruir elementos que abrangem as dimensões cognitiva, ética e, também, estética de sua existência em sociedade. Vale destacar que essas dimensões são construídas de forma contextualizada, de modo que relações de poder macro e microssociais interferem em cada uma delas. Em outras palavras, a leitura literária decorre, assim como outros tipos de leitura, de uma integração sócio e historicamente situada, mas tem como diferencial o alcance da dimensão estética na pessoa.
O terceiro capítulo, por sua vez, preocupa-se com a questão dos letramentos e multiletramentos com vistas aos letramentos literários: nosso alumbramento! Os autores discutem, então, nacional e internacionalmente, o conceito de letramento, convocando autores como Mary Kato, Leda Tfouni e Angela Kleiman para definir letramento(s) como práticas sociais de leitura e escrita, e Brian Street para recuperar os modelos autônomo e ideológico de letramento, os quais são reaproveitados por Magda Soares para adjetivar leitura literária. A pedagogia dos multiletramentos do Grupo Nova Londres e os Novos Estudos dos Letramentos também fazem parte desse percurso teórico que os autores trilham até desembocarem, no final deste capítulo, no conceito de letramento literário propriamente dito e suas práticas na/da escola. Os autores resgatam o termo das Orientações Curriculares Nacionais e discutem como letramento literário é (re)definido por Rildo Cosson e Graça Paulino. Em seguida, apresentam o que entendem(os) por letramentos literários. Eis o novo conceito:
entendemos letramentos literários como movimentos contínuos, responsivos e ideológicos de apropriação do texto literário como construção de sentidos sobre os textos, sobre nós mesmos e sobre a sociedade, o que envolve: 1) a compreensão do texto literário como um tecido em construção ou texto infinito, com significados sempre em debate, abertos a questionamentos e contestações; 2) a possibilidade de construção contínua de atitudes responsivas – sempre ideologicamente guiadas – na integração com textos literários em diferentes contextos; e 3) um movimento exotópico de encontro com o outro e consigo mesmo, de alteridade, pelo estético, numa perspectiva humanizante do ser humano coisificado.
O quarto capítulo é revolucionário: desestabiliza o cânone literário e a cultura hegemônica para potencializar vozes de resistência historicamente silenciadas das práticas escolares. É a vez dos negros, indígenas, mulheres, pobres, favelados, nordestinos, pessoas LGBTQIA+ e tantos outros sujeitos oprimidos e subalternizados invadirem as escolas para oficialmente existirem nos currículos, nos materiais didáticos, nas avaliações de ensino. Para isso, os autores aprofundam o conceito de letramentos de reexistência definido por Ana Lúcia Silva Souza e nos presenteiam com exemplos concretos (propostas possíveis e necessárias!) de práticas de letramentos literários como espaços de reexistência na escola. Há propostas envolvendo leitura de literaturas periféricas, de produção de textos, de oficinas, de eventos, enfim, atividades didáticas que, definitivamente, ressignificam a literatura, seu ensino e sua aprendizagem na educação básica. Nas palavras dos autores:
ensinar e aprender devem ser um ato político de intervenção na realidade, e as práticas de letramentos literários não podem se desenvolver a despeito da vida, das questões sociais que latejam no mundo. Literatura, nesse sentido, é a vida se vivendo em nós; é, em nosso ponto de vista, um espaço estético de reinvenção e desestabilização de dogmas e verdades construídas; é um lugar de (des)aprender quem somos e, portanto, um ponto de partida para a inauguração de múltiplas formas de enxergar o mundo e questionar o que nos foi sempre entregue como certo e indubitável.
Literatura na escola comprova, portanto, que a literatura é, pode ser, pode ser, pode ser, é, pode ser – ecoam mais uma vez os versos de Arnaldo Antunes musicados pelos Titãs – ensinada e aprendida na escola contemporânea. Em tempos sombrios em que autoritarismo e negacionismo andam a nos espreitar, letramentos literários de reexistência tornam-se cada vez mais urgentes. Precisamos formar, desde a educação básica, jovens estudantes conscientes, sujeitos políticos engajados na luta pela democracia, pela educação pública, gratuita e de qualidade, pela ciência, pela vida. E este livro nos encoraja sobremaneira para essa luta, por isso constará, com toda certeza, nas referências de leituras obrigatórias nos meus programas de cursos de graduação em Letras e de pós-graduação em Linguística Aplicada na Unicamp.
Autores da obra:
Marcel Alvaro de Amorim é mestre e doutor em Linguística Aplicada pela UFRJ. Durante o doutorado, foi pesquisador visitante no Programa Modernity and Cultural Transfer da Aarhus Universitet, Dinamarca.
Diego Domingues é mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutor em Linguística Aplicada pela UFRJ. Atualmente, é professor no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.
Débora Ventura Klayn é mestra em Letras e doutora em Linguística Aplicada pela UFRJ. É pesquisadora do grupo de pesquisas Práticas de Letramento na Ensinagem de Línguas e Literaturas (PLELL).
Tiago Cavalcante da Silva é mestre e doutor em Linguística Aplicada pela UFRJ. Atualmente, é professor do Departamento de Português e Literaturas de Língua Portuguesa do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.