Quando perguntam pela nossa profissão, o que respondemos? Dizemos que somos professoras de Português. Isso não chega a ser mentira, porque parte do nosso trabalho envolve lidar com questões relacionadas à compreensão e à produção de textos em nossa língua, mas essa também não é a pura verdade. Damos aulas de Linguística Aplicada (LA) e desenvolvemos pesquisas nessa área. À mesma pergunta, também não costumamos responder que somos linguistas. Isso porque a maioria das pessoas talvez não saiba o que é a linguística e menos ainda o que faz uma linguista. Quando não há tempo para explicações, aparece uma nuvenzinha de incômodo no ar.
Quando dizemos que somos professoras de Português, os interlocutores costumam comentar coisas assim: “Português é uma língua muito difícil” ou “Brasileiro não sabe falar e escrever. Fala e escreve tudo errado”. Esses comentários nos deixam aflitas. Algumas vezes, buscamos maneiras breves de explicar a complexidade dessas questões, mas ficamos sempre com a sensação de que temos de conversar muito sobre elas com as pessoas.
Precisamos mudar nossa forma de pensar sobre a língua materna, arejando a discussão com temas que são relevantes e que têm impacto direto no nosso convívio social. As noções de letramento, gêneros textuais ou multiletramentos, por exemplo, são fundamentais para darmos menos ênfase ao ensino classificatório e normativo que geralmente ainda encontramos nas aulas de Português. Quanta gente passou anos classificando os termos de uma oração e dando nome aos períodos e às figuras de linguagem! E quem ainda está cheio de dúvidas se o certo é assim ou assado? Esse costuma ser o foco do ensino de língua materna, que é, na verdade, uma forma bem reducionista de se pensar a língua e as linguagens. Essa abordagem costuma reforçar o preconceito linguístico, isto é, se uma pessoa não fala ou escreve da maneira considerada correta, de certa forma, é tratada como uma pessoa pior; se alguém não teve uma boa escolarização, não merece um bom emprego, não merece ter qualidade de vida, entre outros absurdos que costumam ser usados como argumentos para reforçar as diferenças sociais.
A ideia de letramento nos faz pensar nos usos da língua e das linguagens. Não há apenas uma forma de dizer algo, mas formas e gêneros diferentes. Cada um deles pode se encaixar melhor em determinada situação. Não é uma questão de certo ou errado, mas de adequação, de uso, de objetivo e de nuance.
A forma como nós, linguistas aplicadas, pensamos a linguagem tem influência direta nas formas como trabalhamos a língua portuguesa em contexto de ensino e aprendizagem. E devemos nos perguntar: o que é ensinar português, hoje? Será que devemos manter cegamente a tradição ou pode ser melhor repensar nossa abordagem, trazendo contribuições de pesquisas, de estudos, de transformações nas tecnologias de produção e de recepção de textos? Entre essas transformações, vamos precisar tocar na questão das tecnologias digitais. Hoje, elas nos permitem compor textos em diversas linguagens (podemos pensar em textos multimodais) e usar recursos como a hipertextualidade, só para dar dois exemplos. Precisamos considerar também métodos para desenvolver habilidades relacionadas à produção e à compreensão dos textos, além de promover o pensamento crítico das pessoas, a fim de fazer com que elas se envolvam nas atividades que propomos de maneira reflexiva, dinâmica e autônoma.
Nota-se que as questões que preocupam os linguistas aplicados têm forte relação com problemas sociais. A alfabetização e o letramento, afinal, são temas essenciais para o desenvolvimento de uma sociedade. Não seria o preconceito linguístico uma dinâmica de exclusão social? Como podemos acolher as pessoas por meio de políticas linguísticas? Qual é a relação entre a linguagem e as pautas identitárias? Deu para perceber como são intensas e intrínsecas as relações entre a Linguística Aplicada e a sociedade?
É isso que buscamos fazer neste livro. Explicamos o que é Linguística Aplicada, uma área consolidada dos Estudos Linguísticos, e contamos um pouco da sua história. Além disso, abordamos noções importantes para a área, como as de texto, textualidade, retextualização, gêneros e tipos textuais, além de discutir o ensino de língua portuguesa, letramento(s), multiletramentos, entre outras. Não poderíamos deixar de discutir também o tema das tecnologias digitais e seu impacto nos textos, nas publicações e, de maneira geral, na educação.
Este livro foi escrito para familiarizar as pessoas com a LA, sejam elas alunos de graduação em Letras, Pedagogia e áreas afins, professores ou quem simplesmente tem curiosidade de conhecer essa área e suas questões. A LA tem proposto e provocado muitas reflexões sobre as línguas, as linguagens, os letramentos, e tem mostrado a que veio, propondo novas formas de ação no mundo social. Fica aqui o nosso convite para a leitura e o diálogo.
Ana Elisa Ribeiro é professora titular do Departamento de Linguagem e Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), onde atua no ensino médio, no curso de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens. É doutora em Linguística Aplicada e mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais, com alguns estágios pós-doutorais. É pesquisadora do CNPq e autora de diversos livros nos temas dos letramentos e da multimodalidade.
Carla Viana Coscarelli é professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem mestrado e doutorado em Estudos Linguísticos pela UFMG. Fez pós-doutorado em Ciências Cognitivas pela University of California, San Diego, e em Educação pela University of Rhode Island. É coordenadora do Projeto de Extensão Redigir UFMG e desenvolve pesquisas sobre a leitura em ambientes digitais e letramento digital.