Fechar

LGBT+ na luta | Luiz Mott

Durante mais de dois mil anos, em todo o mundo cristão, a homossexualidade foi tratada como “o mais torpe, sujo e desonesto pecado” – ou tão simplesmente como “o mau pecado”. Era considerada tabu tão abominável que passou a ser chamada de “pecado nefando”, isto é, cujo nome não podia ser pronunciado, já que sua simples menção atiçava de tal modo a ira do Deus dos Exércitos que descarregava sobre a Terra terríveis calamidades: terremotos, secas, pestes e inundações. Até recentemente houve Igrejas que atribuíram a aids e a covid ao castigo divino contra as paradas gays… E para execrar do orbe terrestre perversão sexual tão horrenda, reis, bispos e inquisidores proclamaram leis draconianas e castigaram o amor entre dois machos ou duas fêmeas com o mesmo rigor dos crimes mais hediondos, tipo regicídio e traição nacional. No Antigo Regime a prática do homoerotismo, mesmo que realizada secretamente entre adultos com consentimento recíproco, era mais punível do que estuprar a própria mãe. Assim, a cruz e a espada se uniram para, através da pedagogia do ódio e do medo, senão erradicar, quando menos dificultar e proscrever do convívio social os “filhos da dissidência” inculpados na prática do abominável e nefando pecado-crime de sodomia.

LGBT+ na luta | Luiz Mott
Leia um trecho aqui

Na nossa tradição luso-brasileira, já em 1535, quando da divisão da Terra de Santa Cruz em capitanias hereditárias, trouxeram os capitães-mores alvarás outorgando-lhes poderes para prender, processar e executar a pena de morte aos sodomitas sem ter de consultar as demoradas autorizações del Rei. Em 1613, quando da fundação de São Luiz do Maranhão, os capuchinhos franceses, após condenação sumária, estraçalharam na boca de um canhão o corpo de um indígena tupinambá, para limpar a terra do abominável pecado praticado pelos “tibira”, nome tupi para sodomita.

Nesse continuum milenar de homofobia cultural e estrutural, a publicação de volumoso livro sobre a história dos hoje chamados LGBT+ representa ato heroico fundamental de resistência política a tantos séculos de perseguição, ocultamento e cancelamento de uma tribo calculada em 10% da humanidade, cujos membros continuam ainda criminalizados e condenados à pena de morte em dezenas de países muçulmanos e africanos, sendo entre nós expulsos de casa quando a família descobre tratar-se de uma “bicha, sapatão ou traveca”. Realidade crudelíssima que faz do Brasil o campeão mundial de assassinatos e suicídios de LGBT+, onde pais e mães repetem de norte a sul do país essa absurda pena de morte homofóbica: “Prefiro um filho morto do que viado!” – frase dita publicamente pelo abominável ex-presidente da República que, juntamente com seus filhos, se vangloriava de ser homofóbico.

Em boa hora a Editora Contexto colabora para quebrar esse execrando complô do silêncio contra “o amor que não ousava dizer o nome” ao traduzir e publicar uma obra de síntese importantíssima e de excelente conteúdo para o resgate da cidadania dessa “raça maldita” (Proust): LGBT+ na luta: avanços e retrocessos. O livro concentra-se numa área nevrálgica desta realidade: a inserção dos “desviados sexuais e de gênero” na agenda dos direitos humanos.

Sua autora, Laura A. Belmonte, Ph.D., professora de História e atualmente reitora da Tech College of Liberal Arts and Human Sciences da Virgínia, é muito conhecida e respeitada no milieu acadêmico norte-americano como especialista na história das relações exteriores dos EUA, com livros e artigos consagrados notadamente no período da Guerra Fria e sobre diplomacia cultural. Participou do conselho nacional da Sociedade de Historiadores das Relações Exteriores Americanas e do Comitê Consultivo para Documentação Diplomática Histórica do Departamento de Estado dos EUA. Lésbica assumida, nos agradecimentos cita sua esposa. Belmonte atuou recentemente como reitora associada de instrução e pessoal na Faculdade de Artes e Ciências da Universidade Estadual de Oklahoma, diretora do Programa de Estudos Americanos e cofundadora do Programa de Estudos de Gênero e Mulheres. Pergunto eu: quantos são nas universidades brasileiras reitores e reitoras lesbigays que já ousaram sair do armário? Dois detalhes: como eu, a autora se contenta com a sigla LGBT+ e no capítulo “Fúria e esperança, 1981-2000” cita “uma turnê de palestras nos EUA” organizada pela International Lesbian and Gay Human Rights Commission, realizada pelo “Dr. Luiz Mott, fundador e presidente do Grupo Gay da Bahia, Brasil. Mott apresentou sua pesquisa a respeito dos mais de 1.200 assassinatos de gays e lésbicas no Brasil desde 1980”. O Brasil é citado 30 vezes nesta obra.

LGBT+ na luta: avanços e retrocessos é um livro baseado em pesquisas aprofundadas em bibliotecas e arquivos dos Estados Unidos e da Europa, incluindo os acervos de importantes instituições LGBT+, com vasto e atualizado referencial bibliográfico, resumindo de forma clara e objetiva os principais momentos, as tendências e os atores que contribuíram significativamente para a construção dos direitos humanos da tribo hoje chamada de LGBT+.

O livro tem um conteúdo amplo e importante. Alguns dos seus temas centrais são: idade de consentimento, identidade de gênero, descriminalização, gay, libertação e orgulho gay, direitos dos gays, homófilo, homossexualidade, direitos humanos, lésbicas, bissexual, ativismo e militância LGBT+, desejo pelo mesmo sexo, relações sexuais com o mesmo sexo, casamento com parceiro do mesmo sexo, minorias sexuais, transgêneros, ativismo transnacional, atentado ao pudor.

Dividido em seis capítulos, inclui sugestivas ilustrações que fazem desta obra leitura indispensável para historiadores, militantes e membros da comunidade LGBT+, assim como para pessoas em geral interessadas em conhecer a progressiva universalização do reconhecimento internacional dos direitos humanos. Através de acurada pesquisa, a autora revela como os amantes do mesmo sexo foram milenarmente perseguidos: apedrejados pelo judaísmo, queimados nas fogueiras inquisitoriais, decapitados pelos protestantes, até que o bom senso do humanismo iluminista, nos inícios do século XIX, começou a descriminalizar a sodomia e alguns países a reconhecer aos “filhos da dissidência” o direito, quando menos, de não serem apedrejados. Não obstante tal incontornável progresso civilizatório, os desviados sexuais e de gênero tornaram-se a partir de então objeto de investigação e de doloridos e inócuos tratamentos por parte dos médicos e sexólogos, “cães de guarda da moral oficial”, conforme expressão da psicóloga Evelyn Hooker (1957) – práticas estas sim, abomináveis, às quais entidades fundamentalistas contemporâneas insistem em perpetuar através da famigerada “cura gay”, capitaneada sobretudo pelas igrejas evangélicas.

LGBT+ na luta: avanços e retrocessos está cronologicamente dividido em seis capítulos: “Origens”; “Protestos e perseguição, 1914-1945”; “O movimento homófilo global, 1945-1965”; “Liberação e confronto, 1965-1981”; “Fúria e esperança, 1981-2000”; “Igualdade global, reação global, 2001-2020”. A escrita da autora é bastante clara e corrida, sua leitura agradável e atraente.

Obra fundamental na bibliografia sobre direitos humanos da população LGBT+, agora acessível também em nossa língua: contribuição definitiva na construção de um novo mundo a que todos aspiramos, conferindo aos milhões de LGBT+ também do Brasil a tão desejada igualdade cidadã: “Direitos iguais, nem menos nem mais!”


Luiz Mott, professor titular de Antropologia aposentado, UFBA

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.