“E nada ajuda mais a autoconhecer-se do que refletir sobre o destino dos seres humanos.”
(Celso Furtado, em Obra autobiográfica. Tomo I)
Em O Caçador de Histórias, primeiro livro de Eduardo Galeano publicado postumamente, o autor afirma ter descoberto por acaso “que no idioma turco caminhar e coração têm a mesma raiz (yürümek, yürek)”. Caminhar é, podemos então dizer, aproximar-se do coração, daquilo que sentimos de modo mais profundo em nós. Ao caminhar nos aproximamos das verdades que se concentram e se constituem em nosso interior. Cada passo dado é como uma pegada no tempo que revela quem fomos e somos. Hoje, relendo essa casual descoberta do escritor uruguaio, fiquei refletindo com certo pesar que poucas vezes a raiz dessas duas palavras (e sua intrínseca relação) esteve tão presente na história de nossa humanidade como em um evento ocorrido em agosto de 1942.
Em um dos cenários mais difíceis de se imaginar, como o de uma guerra, uma figura histórica fez sua última caminhada. Seu nome era Henryk Goldsmit, mais conhecido por seu pseudônimo: Janusz Korczak. Médico, pedagogo e escritor polonês, em agosto de 1942, durante a Segunda Grande Guerra (1939-1945), Korczak seguiu em direção ao trem que o levaria ao campo de extermínio de Treblinka. Ele foi uma das inúmeras vítimas do regime nazista – entre as quais, judeus, ciganos, imigrantes, homossexuais, deficientes, oponentes políticos, e muitas outras consideradas de “raça inferior”. E como a história nos conta, ele não estava sozinho. Na verdade estava acompanhado por cerca de duas centenas de crianças órfãs.
Durante o trajeto, aos presentes que testemunharam aqueles passos, foi possível notar mais que o movimento de pessoas no trecho transcorrido. Um homem seguia à frente das duzentas crianças, que vinham logo atrás organizadas em fileira, junto a outras pessoas adultas, como Stefania Wilczyńska, pedagoga e companheira de trabalho de Korczak. Relatos de testemunhos oculares traduzem o quanto coração e caminhar estavam entrelaçados como uma mesma raiz. Segundo o pianista polonês Władysław Szpilman:
Władysław Szpilman
Já o romancista iídiche contemporâneo de Korczak, Joshua Perle, descreveu a caminhada da seguinte maneira:
Joshua Perle
Conhecido no meio intelectual e político da época, Korczak teve chances de escapar da câmara de gás, inclusive nos últimos momentos de sua caminhada há relatos de que uma última oportunidade tenha aparecido e ele tenha, como havia feito antes, recusado a oferta. Preferiu manter-se íntegro aos seus princípios, à sua postura ética: não deixaria as crianças caminharem a sós para a morte. “O professor que caminha na sombra do templo, junto a seus discípulos, não oferece seu conhecimento, mas sua fé e seu amor”, escreveu o escritor libanês Khalil Gibran acerca do ato de ensinar. Educador compromissado, Korczak não as abandonaria, ainda mais em uma situação como aquela. Ofereceria sua fé e seu amor, para além de seu conhecimento. As crianças sempre o acompanharam, tornando-se a força motriz de seu pensamento, de sua conduta, de sua vida; ele também as acompanharia, não importa para onde ou até quando.
E é sobre este ser humano, que ficou marcado na História como um dos precursores da Declaração Universal dos Direitos da Criança, que um livro recém-lançado trata: Por uma educação transformadora: ideias e práticas de Janusz Korczak. Publicado pela Editora Contexto, e escrito em coautoria entre Aline Alvim, Monica Fantin e a pessoa que vos escreve, abordamos a infância e a educação a partir da vida e do trabalho do médico e educador polonês. Dividido em quatro capítulos, apresentamos no primeiro uma biografia e seu contexto histórico; em seguida trazemos a percepção de Korczak a respeito da criança; no terceiro capítulo o enfoque recai sobre sua concepção de educação; e finalizamos a obra deixando algumas contribuições para pensar a infância e a educação a partir do autor.
O livro é voltado principalmente para estudantes, professores e pesquisadores da área de Educação, em especial da Pedagogia. No entanto, torna-se uma leitura recomendada ainda para profissionais e interessados/as de outros campos do saber, tais como História, Medicina, Sociologia, Filosofia e Direito. Para quem gosta de ler e conhecer histórias de vida de grandes nomes de nossa humanidade, de pessoas que servem de inspiração para tentarmos ser melhores do que somos e para que possamos contribuir no intuito de tornar este mundo um lugar melhor, a obra pode ser uma boa recomendação.
“Lamentavelmente, ainda hoje assistimos a violências contra crianças que nos levam a pensar o quanto Janusz Korczak é atual, e quão crucial é ainda sua ética em relação às crianças. Seus ensinamentos continuam válidos nos dias de hoje e, possivelmente, continuarão no futuro”, afirma Ana Szpiczkowski. Janusz Korczak hoje é lembrado como um exemplo vivo de um ser humano voltado para a humanidade, salienta Rafael Rocca, e o escritor e educador brasileiro Rubem Alves o considerou “um dos grandes educadores do século XX”, destacando seu olhar inovador e inspirador sobre as crianças, que inspira outros olhares sobre o processo educativo, sobre a política e sobre a sociedade. Como autor, assim como cientista e clínico, encarnou uma verdadeira pedagogia do respeito, uma escola de democracia e de participação que fazem dele hoje em dia universalmente uma referência”, enfatiza Max Altman.
Antoine de Saint-Exupéry nos recorda, na primeira página de seu clássico O Pequeno Príncipe, que “todos os adultos um dia foram crianças. (Porém raros se lembram disso)”. Korczak está entre esses seres raros que não se esqueceram. Dezoito dias antes dessa caminhada para a morte, ele encenou no gueto de Varsóvia, com as crianças, a peça O Correio, de autoria do polímata bengali Rabindranath Tagore e que trata de uma história simples sobre a morte de uma criança. Ou melhor, de uma história aparentemente simples sobre esse tema tão complexo e desafiador para a maioria das pessoas. “Nós temos um medo ingênuo da morte porque ignoramos que a vida é um cortejo de momentos que nascem e morrem”, afirmou o próprio Korczak. Em O Correio encontramos uma reflexão sobre a morte que traz uma perspectiva diferente da habitual. Para a jornalista e escritora brasileira Sônia Zaghetto, este teria sido o motivo que fez o educador escolher tal peça, no intuito de “preparar as crianças para enfrentarem com coragem e alguma serenidade a morte iminente que as esperava nos campos de concentração nazistas”.
Foi difícil encontrar um título para este texto. A princípio seria Falar sobre o que não se vê, mas no final optei por Korczak e o caminho para a humanidade. É complicado falar sobre o que nossos olhos não alcançam, como falar sobre o amor, sobre a morte, sobre as emoções que sentimos, os medos que temos, o mundo que queremos e podemos ter, falar sobre o passado, o futuro… Talvez mais difícil seja falar sobre aquilo vemos e não compreendemos. Guerras, violências, sonhos perdidos… O que seria a humanidade? Não a vemos ou temos dificuldade de ver e reconhecer, mas sabemos ou intuímos que ela existe. Korczak e outros nomes de nossa história podem ser a prova, ou o rastro, desse caminho que escolhemos percorrer em busca de nosso melhor.
Se para muita gente estamos tão distantes desse objetivo, quem sabe valha a pena olhar para o céu à noite e buscar na sinfonia das luzes das estrelas (como almas que de longe brilham para nós) os sinais indicando esta direção. Tenho certeza que ao lado de Um Pequeno Príncipe estará Korczak, e ao seu lado estarão muitos outros pequenos príncipes, crianças que sabem e conhecem mais da humanidade que as pessoas adultas, que ao crescer esquecem de si mesmas; e dos outros. “Toda carne se cicatriza”, diz o povo. Gostaria de acrescentar que “Toda alma se cicatriza’”, escreveu Janusz Korczak. Ele mantinha fé na humanidade, no mundo possível de ser construído. “A existência é fluxo, a gente tá sempre em construção”, sinaliza Eduardo Marinho. Nesse fluxo, a construção e a evolução não param, são constantes. E dos destroços desse mundo de hoje, tal como é, corroborando o pensamento de Milton Santos, será possível construir um outro mundo, como ele pode ser. O mundo possível.
Não nascemos prontos e acabados, aprendemos com Paulo Freire. É na convicção permanente de nossa condição de inacabados que podemos encontrar o sentido da esperança. Por não nascermos prontos e por estarmos sempre em processo de (re)criação, temos a esperança de que podemos nos tornar pessoas melhores e, por conseguinte, viver em um mundo melhor. E o que pode contribuir para este objetivo? A educação, aquilo que aprendemos nas escolas e também fora dela, em casa, nas ruas, em todos os espaços formativos, uns com os outros. Nesse sentido, é pertinente a indagação de Moacir Gadotti: que educação podemos oferecer aos seres inacabados que somos nós, em especial às novas gerações? Podemos tentar contribuir para que as pessoas comecem a se ver com os seus próprios olhos e se tornem capazes de perceber a si mesmas, os outros e o mundo de forma integrada no tempo-espaço em que vivem, a pensar e se situar historicamente, como defendia Freire. Ou podemos manter esse programa de crise que continua sendo a educação brasileira, há muito denunciado por Darcy Ribeiro.
Uma pedagogia da escuta, uma pedagogia da leitura social, uma pedagogia voltada à alteridade e ao poder de nossa humanidade – diferente do processo de desumanização que faz parte do cotidiano e da vida de tantas crianças, jovens e adultos, como critica Miguel Arroyo. Reaprender a ver e escutar as pessoas, repensar nossas práticas enquanto docentes, enquanto cidadãos. Escolas que sejam mais do que depósitos; pessoas que sejam mais do que números; sonhos que inspirem novos sonhos. Com Korczak podemos redescobrir caminhos a esta humanidade em devir.
Milton Santos dizia que estamos nos ensaios do que um dia poderemos chamar de humanidade. Até o momento não somos dignos de utilizar essa palavra para nos representar coletivamente no mundo, na história humana no mundo. Eduardo Galeano, semelhante a Paulo Freire, constatava que apesar dos pesares “nós, os humaninhos, somos bastante malfeitos, mas não estamos terminados”. Se não estamos terminados, e se temos consciência disso, então podemos ter nossas esperanças renovadas, porque é na consciência de nossa incompletude que conseguimos ver o horizonte que se abre à nossa frente e nos permite continuar seguindo em frente. Um passo depois do outro, um dia de cada vez.
Conforme a epígrafe que abre este texto, “nada ajuda mais a autoconhecer-se do que refletir sobre o destino dos seres humanos”. Que possamos, a partir dessa reflexão sobre o destino humano com Korczak, voltar a atenção para nós mesmos, para a nossa própria caminhada.
Fonte: Zensacionalista
José Douglas Alves dos Santos é doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e pedagogo. Membro do Núcleo Infância, Comunicação, Cultura e Arte (NICA/CNPq/UFSC), tem abordado no âmbito da pesquisa acadêmica a relação das infâncias em diferentes contextos, articulando a experiência estética com filmes no processo formativo (escolar e não escolar) e problematizando a leitura pedagógica de imagens.