O Brasil tem conhecido um grande desenvolvimento em sua produção historiográfica, como o crescimento do número de autores que publicam trabalhos especializados em História e do interesse de um público mais amplo pela produção historiográfica. Essa popularidade nasceu com a influência da Nova História francesa, interessada, sobretudo, na cultura e no cotidiano, e cujas abordagens se aproximam bastante da ficção. Foram essas abordagens mais culturais que geraram no Brasil um mercado editorial para publicações de História, tendo alguns temas um importante papel nesse processo. Um desses é a Inquisição.
A Inquisição é menos um conceito que uma instituição. Inquisição é o termo pelo qual é mais comumente conhecido o Tribunal do Santo Ofício, órgão de investigação e repressão instituído pela Igreja Católica na Idade Média que teve seu apogeu depois da Reforma Católica, a partir do século XVI. Os estudiosos dividem sua história normalmente em dois grandes períodos quase independentes, a Idade Média e a Idade Moderna. Na Idade Média, o Tribunal do Santo Ofício foi criado pelo Vaticano para investigar a existência de heresias em qualquer bispado, e era subordinando diretamente ao Papado. Não tinha, assim, ligação política com as regiões que investigava, obedecendo diretamente ao Vaticano. Nesse período, a preocupação maior da Igreja era com os hereges, pessoas ou grupos de católicos que se desviavam da conduta regulamentada pelo Papado e criavam novos dogmas. A Inquisição medieval agiu em diversas partes da Europa ocidental, mas teve sua maior atuação repressiva na França, perseguindo dissidentes religiosos, como os cátaros.
Já na Idade Moderna, a Inquisição se desligou do Vaticano e se submeteu aos Estados nacionais em ascensão. Nesse caso, os interesses mudaram. O Tribunal agora tinha muito mais objetivos em comum com as monarquias às quais estava ligado do que com o Vaticano, e as perseguições variaram suas vítimas por toda a Europa. A mais famosa das inquisições modernas foi a espanhola, devido a sua grande influência social e política e sua massiva perseguição aos judeus e cristãos novos, ou seja, judeus convertidos ao Cristianismo na Península Ibérica e nas Américas.
O caráter repressivo da Inquisição esteve presente, desde seus primórdios, atrelado a seu caráter investigativo. Na Idade Média seu objetivo era extirpar toda heresia da Igreja, ou seja, toda crença que discordasse dos dogmas do catolicismo. Nesse sentido, a Inquisição só poderia perseguir e “investigar”católicos, pois era fundamentalmente uma instituição de controle das dissidências internas. Perseguiu os hereges – os discordantes – na França, na Itália e as bruxas por toda a Europa. A Inquisição espanhola, todavia, durante a Idade Moderna, mudou seu alvo consideravelmente. Na Península Ibérica, a Inquisição virou uma instituição de proteção tanto da Igreja quanto do Estado centralizado. O Estado espanhol se unificou com base em alguns princípios, dos quais o Catolicismo e a unidade da fé eram os mais fortes. Nesse caso, a manutenção da unidade religiosa deveria ser feita a todo custo, pois o Catolicismo era um dos alicerces sobre o qual estava fundamentado o novo Estado unificado. E o Tribunal do Santo Ofício foi instituído com esse intuito. As principais “ameaças” a essa unidade nacional eram os judeus e os mouros, que habitavam a Península há séculos. Foi contra eles que se voltou o Tribunal do Santo Ofício espanhol, e depois o português, sobretudo contra os judeus e seus descendentes católicos convertidos, pela influência econômica que possuíam em suas sociedades.
A Inquisição na Península Ibérica se tornou uma das mais importantes instituições de apoio ao estabelecimento e ao fortalecimento do Estado nacional e da monarquia centralizada. O controle exercido sobre a sociedade era imenso, censurando livros e pensamentos. O controle do Tribunal não se resumia aos cristãos-novos, mas abarcava a todos, impondo formas de comportamento, principalmente sexual. A misoginia era uma das características mais fortes dessa instituição, que desde a Idade Média alimentava discursos de medo e desconfiança contra as mulheres.
O Tribunal do Santo Ofício, como já diz o nome, era um órgão judiciário, e a Espanha estabeleceu diversos tribunais em seu Império, inclusive três na América. Portugal, por sua vez, não tinha os mesmos interesses religiosos e nacionalistas que a Espanha. A direção política de Portugal na Idade Moderna era muito mais comercial e menos preocupada com a conquista de territórios que a Espanha. Sua Inquisição, por exemplo, não foi estabelecida na América portuguesa. Aqui, a Coroa portuguesa se limitou a enviar visitações, ou seja, inquisidores de tempos em tempos para realizar vistorias gerais na colônia. Temos notícia de três visitações: uma no século XVI, dirigida para a Bahia e Pernambuco, outra no XVII, restrita à Bahia, e uma terceira no século XVIII, ao Grão-Pará. Comparada à Inquisição espanhola, que funcionava diariamente no México, em Lima e em Cartagena de Las Índias, na Colômbia, a repressão inquisitorial no Brasil foi muito pequena. No entanto, existiu e, enquanto os visitadores realizavam suas investigações nas cidades coloniais, desencadeavam uma série de conflitos sociais, em que vizinhos denunciavam vizinhos, por exemplo.
Não devemos esquecer o caráter de extrema violência desse tribunal. Para alcançar confissões de hereges, judeus, feiticeiras, entre outros indivíduos tidos como perigosos para a Igreja, a tortura era considerada um instrumento apropriado de investigação. Acreditavam então que uma confissão obtida sob tortura era uma confissão legítima. E, assim, o Tribunal se especializou em técnicas de tortura, inclusive elaborando manuais até hoje famosos, como o Martelo das feiticeiras. Sob tortura, a maioria dos réus, pessoas denunciadas muitas vezes pela inveja ou paranoia de seus conhecidos, confessava todos os “crimes” que os inquisidores lhes imputavam. A grande violência da ação do Tribunal, no entanto, não deve obscurecer outros caracteres importantes desse órgão, como a grande influência política e econômica que exerceu na Península Ibérica.
No Brasil, a Inquisição se tornou um importante tema de pesquisa, principalmente pelo fato de que são os registros de suas investigações minuciosas, das perseguições que impôs às minorias, que nos permitem hoje conhecer tanto essas minorias quanto o cotidiano da sociedade colonial. A Inquisição perseguiu, no mundo ibérico, cristãos-novos, feiticeiras, formas de sincretismo religioso, homossexuais, entre outros. Assim, a documentação inquisitorial, os chamados autos, são importantes registros da vida desses personagens. Além disso, os estudos sobre cultura e cotidiano na colônia se desenvolveram em grande parte sobre a documentação da Inquisição: desde as pesquisas de Ronaldo Vainfas e Luis Mott sobre a sexualidade na sociedade colonial até recentes abordagens sobre os degredados, passando por um importante setor de estudos dedicado à História dos cristãos-novos e judeus na América portuguesa.
A documentação das visitações do Santo Ofício se encontra hoje impressa e de fácil acesso para qualquer interessado. Constitui rica fonte de informações sobre o cotidiano colonial e, utilizada com uma boa bibliografia de apoio, pode fornecer aos professores de História um inesgotável material de pesquisa e trabalho em sala de aula. O educador estará assim incitando os alunos a produzir conhecimento. Mas é preciso cuidado com essa documentação, devido à diferença linguística trazida pelos documentos, pois a língua portuguesa mudou desde os séculos XVI e XVII até hoje. O professor precisa dedicar certo tempo à leitura de uma bibliografia que analise tal documentação, à leitura da própria documentação e à preparação do material adequado a ser apresentado a sua sala de aula. Vai ser de enorme ajuda o grande número de textos de divulgação científica publicados sobre a Inquisição e suas vítimas em periódicos especializados,assim como o grande número de títulos que os profissionais de ensino encontrarão nas livrarias. Além disso, muitos são os filmes que abordam temáticas diversas associadas à Inquisição medieval e à Inquisição moderna. Esse tema riquíssimo está aberto à criatividade do professor e atende, como poucos, às exigências das novas abordagens da história, que pregam o trabalho com a História das minorias e com a construção das identidades.
SUGESTÕES DE LEITURA:
- BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
- DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2002.
- MARQUES, Adhemar; BERUTTI, Flávio; FARIA, Ricardo. História moderna através de textos. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2003.
- MELLO, José Antônio Gonçalves de. Gente da nação: cristãos novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. Recife: Massangana, 1990.
- MOTT, Luis. O sexo proibido: virgens, gays e lésbicas nas garras da Inquisição. Campinas: Papirus, 1988.
- PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Faces do fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004.
- RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
- VAINFAS, Ronaldo (org.). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
- ______. O trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
Fonte: SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. “FASCISMO”. In: SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos. Editora Contexto.