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Independências na Améria Latina

A América Latina é uma estranha para a maior parte dos brasileiros. Acostumados a olhar desde cedo para os Estados Unidos e para a Europa como modelos de civilização e desenvolvimento, muito pouco ou quase nada sabemos sobre o passado e o presente dos nossos vizinhos hispanoamericanos. Ao desconhecimento somam-se, muitas vezes, visões estereotipadas e simplistas, alimentadas pelos meios de comunicação – e, atualmente, também pelas redes sociais. Anarquia, golpes militares, ditaduras, pobreza, guerrilhas, narcotráfico… De maneira geral, a América Latina é pintada pelo senso comum como uma região pitoresca, violenta e caricata, instável social e economicamente, governada por líderes autocratas e vítima de regimes políticos confusos. Em suma, tudo o que nós, brasileiros, não deveríamos almejar ser como sociedade e como nação. Engana-se, entretanto, quem pensa que a proliferação desses estereótipos é recente.

Para compreendê-la, devemos nos voltar ao século XIX. Mais precisamente, às independências das Américas de colonização ibérica e aos processos de formação dos Estados Nacionais nessas regiões. Nesse período, enquanto o Brasil se constituiu como uma monarquia unificada, na antiga América espanhola se estabeleceu mais de uma dezena de repúblicas. Diante desse quadro, o Império do Brasil buscou, em diversos momentos e situações, se apresentar como um “modelo de civilização” nos trópicos, baseado na ordem e na estabilidade, em contraposição aos seus vizinhos hispano-americanos, representados como “anárquicos” e “bárbaros”. Apesar das muitas mudanças vivenciadas nos últimos 200 anos, várias dessas caracterizações, mesmo que mostradas sob um novo verniz, continuam a circular entre nós por diversos meios, das análises da imprensa às conversas cotidianas e, em algumas situações, com desdobramentos até nos ambientes acadêmicos.

Independências na Améria Latina

Desse ponto de vista, as independências se apresentam como o momento inicial e crucial para a formação de discursos em torno das diferenças e das alteridades entre o Brasil e a América hispânica. Entretanto, nem só antagonismos e divergências marcam suas relações, mas também há similaridades, aproximações e intercâmbios. Articular essas tramas a partir do reconhecimento da existência de uma experiência histórica comum vivenciada pelo Brasil e por seus vizinhos hispano-americanos pode ser um bom ponto de partida para modificar visões arraigadas e superar estereótipos e preconceitos. A identificação dessa história compartilhada só é possível, não obstante, quando voltamos nosso olhar para as trajetórias políticas, as formas de organização econômica, as características sociais e os aspectos culturais dos países que nos cercam. Compreender melhor as realidades latino-americanas pode nos revelar, entre outras coisas, muito sobre nossas próprias mazelas e conquistas.

Abraçando o objetivo de aproximar o leitor brasileiro de temáticas e questões latino-americanas, este livro se constitui como uma introdução à história dos processos de independência que se deram nas antigas regiões de colonização espanhola na primeira metade do século XIX. Para entender de modo mais aprofundado esses movimentos, a organização da narrativa pensada para as próximas páginas não trata das emancipações, de maneira específica, em cada um dos países da região. Em outras palavras, não há aqui uma justaposição de relatos construídos sob uma perspectiva de histórias nacionais particulares. Mais interessante é observar as independências como um movimento abrangente que se constituiu como fruto de um período de intensas transformações que reordenaram o Império Espanhol e o Mundo Atlântico entre fins do século XVIII e inícios do século XIX.

Adiantamos que apreender as emancipações da América de colonização espanhola como parte desse quadro mais geral não significa, de modo algum, esquecer as dinâmicas locais. É impossível compreender as condições específicas de cada processo particular sem relacioná-las a contextos e estruturas mais amplos. Se, por um lado, as lutas por independência não podem ser entendidas sem uma percepção sobre as especificidades regionais, sociais e étnicas de cada parcela rebelada do Império Espanhol, por outro, também não podem ser pensadas como processos desvinculados das grandes revoluções de fins do século XVIII e inícios do século XIX – em especial, a Revolução de Independência dos Estados Unidos (1776), a Revolução Francesa (1789-1799) e a Revolução Haitiana (1791-1804). Embora diferentes entre si, esses episódios não deixaram de representar, cada um à sua maneira, respostas à crise do Antigo Regime na Europa e nas Américas, e à constituição de novas formas de organização política, social, econômica e cultural nesses espaços.

Como veremos nas próximas páginas, as lutas por independência que agitaram a América espanhola nas primeiras décadas do século XIX tiveram como estopim a ocupação da península ibérica pelos exércitos de Napoleão Bonaparte e a prisão do monarca Fernando VII em 1808, eventos que provocaram uma crise sem precedentes dos dois lados do Atlântico. Menos de duas décadas após o início desses acontecimentos, por volta de 1825, os territórios americanos que outrora faziam parte do Império Espanhol já se constituíam como repúblicas autônomas. Como explicar essa guinada em um intervalo tão curto de tempo? Como movimentos que se iniciaram contra a ocupação francesa e em defesa do rei ibérico terminaram na fragmentação desses territórios em unidades políticas independentes?

Entre experiências e expectativas, sonhos e desilusões, utopias e desencantos, compreendemos esses episódios históricos como acontecimentos multifacetados, com articulações globais e locais. Eles mobilizaram representantes das mais variadas camadas sociais e étnicas, e produziram uma série de projetos e experimentações políticas na América espanhola da primeira metade do século XIX.

Para concluir esta introdução, é importante afirmar que o Brasil, mesmo que de maneira contraditória e ambígua, faz parte da América Latina. Embora nosso país tenha encarado seus vizinhos hispano-americanos, muitas vezes, desde o século XIX, sob o signo da desconfiança, produzindo alteridades e antagonismos (monarquia/república, unidade/fragmentação, ordem/anarquia etc.), não se pode desconsiderar que as trajetórias dos territórios de colonização ibérica estão inscritas em uma experiência histórica comum. Mais que realidades simplesmente dicotômicas, Brasil e América hispânica, tão diversos em seu próprio cerne e suas particularidades, se constituíram ao longo do tempo por meio de tramas articuladas, repletas de intercâmbios políticos, econômicos e culturais, que continuam até hoje a se cruzar e a se influenciar mútua e constantemente.

Independências na Améria Latina

Esperamos que as próximas páginas contribuam para o questionamento de imagens preconcebidas em relação aos nossos vizinhos, para uma maior aproximação entre nós e para uma melhor compreensão sobre as complexidades de nossa formação histórica como brasileiros e – por que não? – como latino-americanos.


Valdir Santos é professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP). Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), atuou como pesquisador visitante no Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe da Universidad Nacional Autónoma de México (CIALC/UNAM). É coautor de Utopias latino-americanas, publicado pela Contexto.

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