Em 07 de setembro de 2022, chegaremos aos 200 anos da independência de nosso país. É a história de um país que não existia no começo do século XIX, mas que passou a existir unificando internamente regiões e em articulação com outras partes do mundo. É a história de um mundo antigo, colonial e tradicional, que, aos poucos e sem desaparecer por completo, foi dando lugar a outro, novo, nacional e em muitos sentidos moderno. A história da Independência é a de um passado que se faz ainda presente.
Para celebrar a data, a Contexto lança Independência do Brasil, livro de João Paulo Pimenta. A obra também inaugura a Coleção Temas Fundamentais. Complementar à renomada Coleção História na Universidade, o novo projeto traz livros centrados em eventos mais específicos, porém essenciais aos estudos históricos e à formação de todo historiador e trará novos lançamentos em breve.
Abaixo, você confere trecho extraído do livro do professor Pimenta em que ele trata da atualidade da independência de nosso país. Confira:
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A independência do Brasil é sem dúvida um grande tema: atual, polêmico, rico de possibilidades de interpretação e prenhe de ensinamentos. Seu estudo pode nos dizer muito a respeito daquilo que nosso país foi um dia, mas também nos ajudar a pensar o que ele pode vir a ser.
Na história da independência do Brasil se encontram múltiplos passados, presentes e futuros. (…) Basicamente, o seu objeto é o processo de separação política entre um conjunto de colônias até então genericamente chamadas de “Brasil”, e sua metrópole, Portugal: as origens dessa separação, suas principais forças e seus resultados mais importantes. Sua história percorre variados lugares, épocas e dimensões da realidade. É a história de um país que não existia no começo do século XIX, mas que passou a existir unificando internamente regiões e em articulação com outras partes do mundo; é a história de um mundo antigo, colonial e tradicional que, aos poucos e sem jamais desaparecer por completo, foi dando lugar a outro, novo, nacional e em muitos sentidos moderno. É também a história de indivíduos e grupos cujas ações, projetos e ideias políticas se misturaram com a cultura e a economia para atingirem a totalidade de uma sociedade que, com a decisiva contribuição da Independência, foi se constituindo como a sociedade brasileira em que hoje vivemos.
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Cada país, sociedade ou tradição possui suas formas específicas de desafiar a modernidade, apresentando temas históricos que a isso melhor se prestam. São temas fincados não só no passado, mas principalmente no presente.
No Brasil, as flutuações dos interesses sociais pelo passado têm suas marcas próprias. Transcorridas já mais de duas décadas de vivência do século XXI, nossa sociedade segue prestigiando tremendamente, por exemplo, a história da escravidão, associando-a diretamente ao racismo, à violência urbana e policial e às desigualdades sociais que assolam nosso país. Outra história, mais recente, a do golpe de Estado de 1964 e da ditadura de duas décadas que ele criou, demonstra igual atualidade, atrelada aos duros avanços e aos persistentes retrocessos na construção de uma democracia no Brasil. Junto a tais agendas, e sem prejuízo de muitas outras, a história da Independência, no contexto do bicentenário de seu mais conhecido marco cronológico – 1822 – também está em cena, disposta a presentificar o passado e, quem sabe, abrir alguma brecha para o futuro. Ela é uma história em construção.
Nova advertência: presentificar o passado significa apenas constatar sua atualidade, e não o submeter forçosamente ao presente. O estudo rigoroso e criterioso do passado só pode ser realizado se as pressões sobre ele exercidas pelo presente forem devidamente controladas.
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A presentificação do passado, isto é, sua força para além do passado, não deve ser uma simples vontade de quem o estuda, mas sim uma realidade histórica a ser constatada e respeitada. A História, como conhecimento, impõe de modo incontornável uma absoluta observância dos valores do próprio passado, e que não devem ser distorcidos pelos valores do presente. Pontos de partida, controlados e momentâneos, não podem se tornar pontos de chegada.
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Mas, afinal, se a história da Independência é a de um passado que se faz ainda presente, onde podemos observá-la proximamente a nós? Em muitos e muitos lugares. Observemos apenas alguns.
Todo dia 7 de setembro é feriado no Brasil. Às vezes, a semana inteira. Tempo de suspensão momentânea de rotinas, tempo eventualmente de descanso, a ocasião faz parte de nosso calendário oficial junto com várias outras datas civis e religiosas nacionais, estaduais e municipais. Em 1823, a data já foi comemorada oficialmente, mas durante um bom tempo ela teria que dividir atenções com outras, como o Doze de Outubro, relativa à aclamação de D. Pedro I. Em 1848, o Sete de Setembro já era chamado de “festa nacional”, e na década de 1860 ganhou protagonismo ainda maior. Mas foi só com o calendário republicano, instituído no Brasil em 14 de janeiro de 1890, que a data virou o que é hoje: nosso principal feriado cívico nacional. Mesmo assim, a história e a memória da Independência, com suas muitas variações, contemplariam feriados alternativos. É assim com o popular Dois de Julho, comemorado na Bahia, o Vinte e Oito de Julho no Maranhão e o Quinze de Agosto no Pará, todos relativos às adesões daquelas antigas províncias ao Império do Brasil ocorridas em 1823. Todos esses feriados são ocasiões em que, de alguma maneira, a Independência se faz presente.
Outro momento em que isso ocorre é quando a seleção nacional de futebol entra em campo para disputar uma partida da Copa do Mundo. Desde 1930, quando a competição foi disputada pela primeira vez (no Uruguai), a equipe brasileira jamais ficou de fora dela. E a cada vez que uma partida dessas é disputada, os mesmos rituais se repetem: entram em campo não apenas jogadores e comissões técnicas, mas também cores, hinos, bandeiras e outros símbolos (os torcedores brasileiros nem sempre estão do mesmo lado). O verde, amarelo, azul e branco que se combinam até hoje no uniforme dos jogadores têm origem em um decreto de 18 de setembro de 1822 que estabeleceu as cores da nova bandeira do Brasil em substituição às cores de Portugal, que eram azul, branco e vermelho. Foi também naquela época, quando o futebol ainda estava longe de existir, que nosso hino nacional começou a ser criado: não se sabe exatamente quando Francisco Manuel da Silva compôs sua melodia a partir de várias outras então existentes, e que só foi oficializada como Hino Nacional com a República, em 20 de janeiro de 1890; sua letra foi composta por Joaquim Osório Duque Estrada bem depois, sendo adquirida pelo governo brasileiro em 21 de agosto de 1922. E em 1971, durante os anos mais duros da ditadura, o Hino foi decretado “símbolo nacional”.
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Mais um exemplo da atualidade da Independência: entre 1887 e 1940, mais de três milhões de imigrantes estrangeiros chegaram ao Brasil em busca de condições de vida melhores do que tinham em seus países de origem. Muitos encontraram trabalho nas lavouras de café, na indústria, em serviços, em negócios próprios; alguns ascenderam socialmente enquanto outros mantiveram-se na pobreza; e um número incerto retornou a seus países de origem. Entre os que aqui permaneceram, mas principalmente entre seus descendentes, ocorreu uma profunda mudança: portugueses, italianos, espanhóis, alemães, japoneses, sírios, libaneses, letões, poloneses, russos, romenos, dentre outros, converteram-se em brasileiros. Quando tiveram essa condição registrada em um documento oficial, assim como ocorre atualmente com qualquer um que nasça em nosso país, essas pessoas foram contempladas por um critério de nacionalidade brasileira estabelecido a partir da Independência. Com ela foi sendo criada, aos poucos, uma definição dessa nacionalidade que, apenas com algumas mudanças, existe até hoje, quando o mesmo fenômeno se repete, desta vez com chineses, coreanos, sírios, bolivianos, venezuelanos e haitianos.
Por esses e muitos outros motivos, a história da Independência tem sido contada e recontada pelos historiadores, e lembrada e vivida por todos os brasileiros. É uma história de pessoas célebres e de outras menos conhecidas; de acontecimentos, de conjunturas e de estruturas. É uma história do Brasil e de suas muitas localidades, mas também de Portugal e de parte da Europa, da América e da África. E é também uma história de versões, memórias e usos políticos do passado no presente.