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Igreja medieval | Leandro Rust

“Igreja medieval” é um tema dificílimo de ser abordado. Talvez a afirmação soe inesperada e provoque certo estranhamento, já que a expressão costuma despertar uma familiaridade instantânea, a sensação de estar diante de algo já conhecido. Os desafios, contudo, residem justamente aí. Há muito tempo vigoram entre nós visões consolidadas sobre a Igreja medieval. Quando se trata desse assunto, somos herdeiros de correntes de pensamento que estabeleceram imagens fortes que perpassaram séculos e se perpetuaram como opiniões enraizadas. Os distintos juízos de católicos e protestantes sobre a natureza e a função das instituições cristãs; as leituras iluministas a respeito do papel da religião e do clero na história da razão e da liberdade; as ideologias atuais que, do nacionalismo ao socialismo, disputam a invenção das tradições e a demarcação da relação entre cidadania e identidade religiosa: cada um à sua maneira moldou o significado da Igreja medieval para a história, conduzindo as gerações seguintes a julgamentos vários, ora positivos, ora negativos, mas sempre contundentes. Não seria um exagero dizer que, quando se trata da Igreja medieval, o que frequentemente esperamos de um texto, um livro ou um podcast é que ele retoque os contornos de representações já presentes em nossas mentes.

Abordar esse tema é uma tarefa que exige mover a compreensão ao longo da linha de um equilíbrio complexo. Por um lado, é preciso revisitar o enredo histórico destacado por essas correntes de pensamento. Não obstante díspares, amiúde rivais, elas convergem para os mesmos episódios do passado, delineando uma sequência de eventos e contextos que se repete como fio condutor para o entendimento. Como toda história é feita a partir do presente e das inquietações vividas no hoje, é crucial manter os olhos voltados para os episódios dotados de importância pelas gerações que formaram grande parte das visões de mundo que partilhamos como sociedade. Por outro lado, é igualmente imprescindível que o exercício de explicar os momentos-chave do passado não seja mera repetição de interpretações herdadas, mas um meio para construir uma compreensão autêntica – isto é, própria e crítica –, na qual a formulação de novas perguntas, o reexame das evidências e a incorporação de novos conceitos realcem ainda mais a complexidade do que um dia foi esse fenômeno continental e multissecular chamado Igreja medieval. É vital fazer da Igreja medieval um tema que nos leve a começar a pensar sobre a realidade e não apenas a aplicar sobre ela regras e fórmulas já fixadas em nossas mentes.

Igreja medieval | Leandro Rust

No livro Igreja Medieval, que está sendo lançado pela Editora Contexto, esforcei me por manter esse equilíbrio. A obra ganha forma por meio de uma sequência de tópicos considerados básicos, elementares, e que se repetem nas mais diversas literaturas sobre a Idade Média. É o caso da aliança entre os francos e o papado em meados do século VIII, da Reforma Gregoriana no século XI, das Cruzadas e das Inquisições nos séculos XII e XIII, ou ainda das contestações religiosas dos séculos XIV e XV. Entretanto, se o roteiro é em larga medida convencional, percorrê-lo foi seguir um caminho próprio, cartografado com o auxílio de modelos interpretativos recentemente propostos pela historiografia. Da primeira à última página, as releituras incluídas no livro confluíram para esta constatação: conceber a Igreja como uma instituição clerical – na acepção tradicional em que o termo “instituição” costuma ser sinônimo de um corpo burocratizado de agentes sociais – simplifica demasiadamente as realidades sociais que  envolveram aquilo que os medievais compreendiam por Ecclesia, a “Igreja”, além de nos expor ao risco de incorporar, ainda que implicitamente, premissas confessionais para o estudo do passado. Adotei, então, um conceito alargado, que abarcava um tríplice significado: a Igreja como, simultaneamente, uma hierarquia clerical, uma comunidade de crentes e locais de culto. Essa acepção traz em si a vantagem de implicar que a hierarquia clerical, com seus homens e mulheres, bens e ideias, seja inserida pela leitura numa paisagem de lógicas sociais diversas, já que falar em Igreja significa, assim, examinar como ocorria a organização de coletividades inteiras em torno do sagrado cristão, que era atravessado por suas desigualdades e solidariedades, seus conflitos e suas culturas, suas urgências e suas tradições. A vantagem está na maneira como essa acepção “devolve” a Igreja à sociedade medieval: ela já não paira sobre essa última como uma rede de agentes que pensavam e agiam somente com base nas próprias regras. Igreja Medieval é, em farta medida, uma tentativa de reencontrar as muitas lógicas sociais que perpassaram o universo das relações eclesiais: é o caso do peso da hegemonia carolíngia para a transformação do poder dos papas; da maneira como a territorialização do sagrado e a busca pela paz nos concílios medievais convergiram para a consolidação da dominação senhorial; da pressão da espiritualidade laica sobre as elites eclesiásticas e suas respostas repressoras; da centralidade do pensamento sacramental nas relações entre a autoridade e os comportamentos coletivos; do alcance multifacetado do racionalismo cristão.

Igreja medieval | Leandro Rust

Concebi Igreja Medieval tendo em mente como público leitor quem se vê diante do desafio de estudar história medieval, sobretudo estudantes de graduação e professores, que podem enriquecer o livro ao articular os capítulos ali delineados com outras leituras, referências e abordagens. Espero que suas páginas sejam úteis à busca por formular uma abordagem sobre o tema, informando sobre episódios essenciais da história da Igreja e do mundo medieval ocidental e, ao mesmo tempo, propiciando algumas redescobertas, ainda que pontuais, das muitas possibilidades de se abordar esse vasto passado.


Leandro Duarte Rust é historiador. Doutorou-se pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e fez pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e na Catholic University of America. É professor de História Medieval na Universidade de Brasília (UnB), onde atua nos cursos de graduação e pós-graduação. Dedica-se à pesquisa da História do Papado, História da Violência e História da Corrupção, temas sobre os quais publicou vários livros.

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