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Igreja Medieval | Lançamento

Igreja medieval é um tema atualíssimo. Sua presença nos dias de hoje transborda os limites do discurso historiográfico e atua como um poderoso mediador cultural, como um assunto pelo qual expressamos diferentes maneiras de estar no mundo. Quando falamos a seu respeito, frequentemente revelamos angústias, expectativas e interpretações sobre nossa vida em sociedade.

Não é incomum encontrarmos, por exemplo, grupos que a exaltam como a instituição que assegurou a perpetuação da civilização ocidental, que deveria ser reconhecida como um modelo ético e político para se alcançar uma sociedade unitária, coesa, capaz de proporcionar aos indivíduos propósitos, valores, bem como papéis estáveis e duradouros. Essa imagem do passado longínquo como uma ampla comunhão de sentido a que as pessoas poderiam aspirar nos dias de hoje revela uma reação às crescentes crises de significado experimentadas na modernidade. Em outras palavras, a representação da Igreja medieval se torna refúgio ideológico para aqueles que se sentem desorientados pela crescente pluralidade das maneiras de lidar com a vida, o trabalho, o poder e, não menos importante, pela fluidez e pela mutabilidade que caracterizam as políticas de identidade social na virada para o século XXI. Trata-se de buscar uma alternativa a uma sociedade em que as respostas às perguntas: “Quem sou eu?” e “O que devo fazer?” já não são determinadas por um grande esquema de uma vida comum, mas por uma crescente multiplicidade de possibilidades – muitas das quais estabelecidas através da relativização dos consensos religiosos.

Igualmente atuantes são grupos e movimentos sociais que apresentam a Igreja medieval como o precedente tangível de como as instituições podem se tornar retrógradas e opressoras, a fonte da qual emergem as práticas que reprimem a autorrealização humana e a coexistência de diferentes ordens de valores no bojo de uma mesma sociedade. Nesse caso, é comum dispor o passado de mil anos atrás como a matriz de uma instituição que permaneceu intrinsecamente coercitiva, cujo traço fundamental consiste no desenho reacionário de sua atuação sobre a vida social. À vista disso, falar sobre a Igreja medieval é revelar a agulha da bússola política a respeito não apenas da atual Igreja Católica, mas, em muitos casos, também sobre o que acontece com uma sociedade quando a atuação de grupos confessionais se impõe no interior do Estado. Trata-se de localizar a origem e a essência de um poderoso adversário de políticas públicas consideradas progressistas, o obstáculo à afirmação dos direitos de minorias, à ampliação da saúde pública para abarcar temas como o aborto ou até mesmo o combate à pobreza e à desigualdade.

Igreja Medieval | Lançamento
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Se, na primeira interpretação, a Igreja medieval aparece como matriz de uma instituição capaz de proteger o tecido social das forças de dispersão e fragmentação, na segunda leitura, ela surge como o poder que prenuncia a intolerância e a ameaça a regimes democráticos. Assim ocorre com diferentes temas: as relações entre Igreja e Estado, as cruzadas, a Inquisição… São muitos os tópicos referentes à Igreja medieval recrutados para a atual guerra de narrativas sob o propósito de lançar certa luz sobre o presente e direcionar nossas maneiras de estar em contato com a realidade.

Logo se vê que os interesses da contemporaneidade sobre a Igreja medieval estão longe de ser meramente teóricos. Aquilo que, à primeira vista, pode parecer um passado distante e remoto atua como um fator determinante das possibilidades do tempo presente, delimitando as soluções e os empecilhos que podemos vislumbrar para dilemas concretos da nossa coexistência. É vital, portanto, nos debruçarmos sobre esse tema, não só por um interesse pelo passado em si, mas também pelo compromisso inadiável com o presente. Dito dessa maneira, fica evidente que o propósito que dá forma a este livro não é o de desautorizar a inscrição do passado no momento atual ou de negar seus usos pelo presente. Trata-se, isto sim, de enriquecer essa relação, de demonstrar que a distância histórica impõe sobre nós, leitores e leitoras, uma necessária medida de alteridade, ou seja, que o passado é formado por certos aspectos irredutíveis, singulares, os quais não se prestam à simples correspondência com os impasses e os desafios da sociedade contemporânea; que há mais para ser descoberto do que revelam aquelas narrativas. Afinal, embora concorrentes, ambas as perspectivas partilham a mesma característica: são visões estereotipadas a respeito da Igreja medieval. Elas se apoiam em um ou outro aspecto da realidade histórica, o qual inflam, dilatam, de modo a torná-lo uma referência útil a certas agendas ideológicas. Portanto, é necessário buscar uma alternativa que realce certos aspectos excluídos por essas visões do passado: a complexidade, afinal, a Igreja medieval era não só um fenômeno institucional, mas, sobretudo, uma realidade social e, como tal, perpassada pela heterogeneidade e por limitações e contradições do agir social na Idade Média; a historicidade, pois a Igreja não era imune à ação do tempo, à mutabilidade e à instabilidade de sua organização e de seu funcionamento.

Para alcançar essa perspectiva, a Igreja será considerada, nas páginas a seguir, a partir de uma conotação ampla, consolidada nos tempos medievais, quando o termo Ecclesia (“Igreja”) abarcava um tríplice significado: a hierarquia clerical; a comunidade dos crentes; os locais de culto. Tratase, aqui, de notar que a hierarquia clerical, com seu aparato de tradições, saberes, ritos, bens, prerrogativas e estilo de vida específicos, exercia um papel preponderante para a manutenção de equilíbrios e a constituição de rupturas entre, de um lado, as formas de viver o sagrado e, de outro, o vasto mundo medieval, mas que ela, sozinha, não fornece as chaves interpretativas para alcançar a realidade da Igreja medieval. Cabe, por conseguinte, examinar como os demais grupos – a comunidade – participavam das relações sociais, das práticas e das representações constitutivas dos contatos com o sagrado, e forjavam as muitas maneiras de agir e de pensar no interior das identidades cristãs. Isso significa evitar a História institucional em sentido estrito – limitada à formação do aparato administrativo capitaneado pelo clero, bem como aos atos formais e oficiais conhecidos como doutrina católica – e buscar um olhar permeado pela História social e cultural, que leve em conta a transformação das compreensões sobre a fé, a unidade e a verdade religiosa em meio a diferentes realidades sociais. Por fim, é preciso analisar como essas relações são estruturadas espacialmente, como os locais de culto são, a um só tempo, produto e produtor do pertencimento à Ecclesia; como se operava uma espacialização das relações com o sagrado, afetando desde as pessoas – tanto as vivas quanto as mortas – até os objetos implicados nas práticas devocionais.

Assim definida, a Igreja desafia nossas habituais separações conceituais. Tratava se, num só fôlego, de uma realidade institucional, religiosa, política, econômica, social e cultural, que abarcava inúmeras facetas da época medieval. Aliás, em busca por destacar essa abrangência, muitos historiadores e historiadoras a designaram como a “instituição total” da Idade Média. Como se vê, um tema dessa envergadura dificilmente pode ser esgotado em um único livro. Para que uma obra ganhe forma é preciso realizar escolhas. As páginas a seguir ganharam contornos a partir de três decisões. Em primeiro lugar, a imposição de um recorte cronológico: toda exposição está baseada na premissa de que a Idade Média tem início no século VIII e que o período imediatamente anterior pertence à Antiguidade Tardia. Portanto, esta História da Igreja medieval tem início nos tempos carolíngios e se estende até o século XV. Em segundo lugar, um recorte espacial: os temas aqui abordados dizem respeito à civilização latina; trata-se, assim, do que habitualmente designamos por Idade Média ocidental. É crucial lembrarmos que a Igreja latina não abarcava todas as experiências coletivas que davam forma ao vasto e intricado cristianismo medieval. Ao contrário, este era constituído igualmente por diversas outras Igrejas, como a grega de Constantinopla, as eslavas da Europa Oriental, as coptas do Egito e da Etiópia etc. Regiões que o livro, infelizmente, não abarca, cuja riqueza, bem como complexidade histórica, não aparece nas páginas a seguir. Por fim, a organização dos capítulos. O livro está distribuído em três eixos temáticos: nos capítulos “Uma nova era: a transformação da Igreja entre os carolíngios e o feudalismo” e “A ascensão do papado: das reformas religiosas ao declínio da monarquia pontifícia”, examinaremos a trajetória político-econômica da Igreja medieval. Nesse caso, analisaremos como ocorreram a transformação e a ascensão do protagonismo da Igreja frente aos demais poderes estabelecidos na Idade Média, desde o Império Carolíngio até as monarquias feudais dos séculos XIV e XV. Nos capítulos “Um mundo em movimento: dinâmicas sociais e poder eclesiástico” e “A Igreja e as formas de perseguição: dissidência e repressão”, será analisada a relação entre Igreja e sociedade. Aqui, manteremos nosso foco sobre as formas de participação, mobilização, coerção e repressão protagonizadas pela relação entre a hierarquia eclesiástica e as populações cristãs. Por fim, os capítulos “Consciência e autoridade: imaginários, culturas eclesiásticas e práticas sociais” e “Identidades religiosas e estruturas eclesiásticas: do pensamento social à crítica milenarista” constituem uma História cultural e intelectual da Igreja. Passaremos em revista alguns dos principais capítulos envolvendo as relações simbólicas, as representações sociais e as transformações do pensamento letrado envolvendo eclesiásticos e laicos. Tais eixos foram pensados para facilitar e organizar a exposição, mas devem ser encarados como conteúdos simultâneos, que se completam em termos historiográficos. Em outras palavras, a leitura foi concebida como uma experiência cumulativa: cada eixo adquire pleno sentido quando relacionado com os demais.

Mesmo quando considerado distante, o passado subsiste na fronteira do presente. É a partir do presente que o passado é reelaborado e adquire implicações para os vivos. A expectativa que move este livro é de que possamos revisitar a Igreja medieval, reabri-la como tema não apenas repleto de consequências para o curso da história, mas igualmente marcado por possibilidades outras, pelo contraste com nossa época; por dimensões humanas singulares sobre as quais devemos refletir constantemente.


Leandro Duarte Rust é historiador. Doutorou-se pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e fez pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e na Catholic University of America. É professor de História Medieval na Universidade de Brasília (UnB), onde atua nos cursos de graduação e pós-graduação. Dedica-se à pesquisa da História do Papado, História da Violência e História da Corrupção, temas sobre os quais publicou vários livros. 

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