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História dos jornais no Brasil: 1840-1930

“Governo baixa Ato Institucional e coloca Congresso em recesso por tempo ilimitado” foi a manchete do Jornal do Brasil em 14 de setembro de 1968, uma descrição factual do acontecimento mais importante da véspera no país. No alto da página, à direita, “Ontem foi o Dia dos Cegos”. Na previsão meteorológica, “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Min.: 5º, nas Laranjeiras”. O país vivia sob o jugo da ditadura militar, que impôs uma série de restrições à atuação da imprensa ao longo dos anos. A primeira página do Jornal do Brasil sobre o Ato Institucional n. 5 (AI-5) marcou época por indicar um caminho que rodeava a censura importada por Brasília.

O fato, razoavelmente conhecido entre jornalistas, ganha uma nova paisagem e mais força dramática em História dos jornais no Brasil: 1840-1930, com Matías M. Molina ressaltando sua importância para o circuito jornalístico e para a história das relações entre mídia e poder no país. Vale a pena citar um trecho do livro sobre o caso, com explicações contextualizadas:

O Dia dos Cegos era uma alusão aos óculos escuros do presidente Costa e Silva, semelhantes aos usados pelos cegos. Para não deixar lugar a dúvidas, foi publicada uma foto do presidente de óculos escuros. Os 38 graus de Brasília se referiam à alta temperatura política na capital e ao Ato Complementar n. 38, que decretou o recesso do Congresso. O Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, com temperatura de apenas 5 graus, era o local onde o presidente Costa Silva reuniu o gabinete para decretar o AI-5. Uma notícia da primeira página encontrava uma forma indireta de referir-se às prisões feitas ao dizer que alguns cidadãos “deixaram de chegar ontem às suas casas”.

História dos jornais no Brasil: 1840-1930

Obra ímpar que reconstrói e contextualiza os jornais que marcaram épocas, a História dos jornais no Brasil: 1840-1930 nos faz refletir sobre como a imprensa mudou consideravelmente (esperemos que para melhor). Continuemos no exemplo do Jornal do Brasil: em 1950, quando o Brasil perdeu o jogo final da Copa do Mundo para o Uruguai no Maracanã, o principal destaque do JB não foi a derrota, mas as notícias sobre a Guerra da Coreia. Em agosto de 1954, o jornal deu menos importância à informação sobre o suicídio do então presidente Getúlio Vargas do que à decisão de declarar ilegal o Partido Comunista… nos Estados Unidos.

Ao longo deste livro, são centenas de exemplos como os citados: mergulhamos nos detalhes de matérias, analisamos a forma com que os fatos mais importantes do país foram editados em cada publicação, conhecemos a trajetória de personagens que ajudam a explicar a importância de jornais para a sociedade − como a atuação dos abolicionistas durante o Segundo Reinado. Molina nos fornece os elementos necessários para que possamos entender a que propósitos cada jornal servia, e como essas publicações evoluíram ao longo dos anos e décadas. É evidente o seu esforço em mostrar aos leitores quais os interesses políticos, econômicos e/ou de outras naturezas que estavam por trás das notícias, das negociações envolvendo empresas jornalísticas. Com seu olhar de jornalista experiente, Molina constrói o texto de modo a nos imergir no contexto retratado, descrevendo cronologicamente a evolução dos jornais mais importantes, suas peculiaridades, os embates que envolveram a redação e a atuação de seus donos até o fim da publicação. Assim está no livro toda a história do JB, desde sua criação, em 1891, até a sua última edição impressa, em 2010. É uma obra fundamental para quem quer se aprofundar nos meandros da história da mídia no país, tornando possíveis inclusive comparações com o jornalismo que se pratica no Brasil em 2025.

Molina exerceu um papel de grande destaque na nossa imprensa, sobretudo na cobertura do mundo econômico, tendo se sobressaído em diferentes funções. É bastante comum que jornalistas sigam uma de duas opções de carreira: ou a de repórter, aquele que, idealmente, vai atrás da notícia com disposição enérgica e persistência; ou a carreira de editor, que coordena e orienta uma equipe de repórteres e redatores, e decide como o material levantado será publicado. São perfis diferentes entre si, embora o objetivo de todos seja, por princípio, o mesmo: apurar e publicar a melhor informação possível sobre determinado tópico de interesse público.

Molina é uma exceção nesse panorama. Brilhou como repórter e como editor. Na sua longa carreira, iniciada poucos anos depois da chegada ao Brasil, foi um repórter de texto primoroso, com um olhar apurado para o contexto do fato. Lembro bem das matérias escritas por ele quando correspondente da Gazeta Mercantil em Londres, entre as décadas de 1970 e 1980. Não tenho dúvidas de que suas habilidades como repórter foram essenciais na formulação deste livro – a apuração detalhada, minuciosa, a escrita com poucos ou quase nenhum adjetivo.

Foi como editor, em especial durante décadas na Gazeta Mercantil, que Molina ganhou mais destaque. Pode-se afirmar que ele moldou a cobertura feita pelo jornal – na época, o principal diário econômico do país –, num período de aproximadamente 20 anos. Ensinou dezenas de repórteres e editores na busca por um jornalismo de qualidade. Seriedade, detalhismo, aprofundamento da apuração, escrita clara e concisa, preparação prévia para entrevistas: essas eram algumas das características do jornalismo valorizadas por Molina.

História dos jornais no Brasil: 1840-1930

No meu primeiro dia como estagiária na seção de economia da Folha de S.Paulo, aprendi uma lição preciosa com ele, então editor do jornal. Ao me encarregar uma matéria sobre algodão, me orientou a ir ao arquivo do jornal e ler tudo o que tinha sido publicado recentemente sobre o produto (assunto sobre o qual meu desconhecimento era praticamente total). Não se saía para entrevistas ou reportagens sem estar preparado. Quando fui trabalhar como repórter de finanças na Gazeta, também sob a chefia do Molina, ele me estimulou a me aprofundar nos grandes temas econômicos. Fui ler livros sobre macroeconomia – eu me lembro particularmente das obras do americano Paul Samuelson.

Eu deveria, no entanto, ter iniciado este texto com um alerta. Molina foi a primeira pessoa que me ofereceu um emprego, na Folha de S.Paulo, o primeiro que acreditou que eu poderia ser jornalista e foi quem me ensinou muito do que sei sobre a profissão. Foi também mentor do jornalista Celso Pinto, com quem fui casada por 39 anos, até sua morte em 2020. Mais do que isso, Molina foi muito amigo de Celso. Foi também meu amigo, querido, e a quem eu respeitava profundamente. Molina faleceu no dia 21 de abril de 2025 – um jornalista comentou que tinham falecido naquele dia dois papas, o Francisco, e Molina, o papa do jornalismo econômico de qualidade no Brasil.

Célia de Gouvêa Franco

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