A Revolução Russa começou com a deposição do czar em fevereiro de 1917. Em outubro do mesmo ano, os bolcheviques chegaram ao poder, sob a liderança de Lenin. Mas o Estado soviético só se consolida depois de uma guerra fratricida que durou até 1922 e causou milhões de mortos. O fato, escondido pelo stalinismo, é que até o fim da guerra civil o poder bolchevique foi contestado dentro das fronteiras do próprio Estado. Em diferentes pontos da então Rússia europeia, como a Ucrânia, assim como na Rússia asiática, importantes setores da complexa sociedade russa se ergueram em armas, e por diversas vezes estiveram a ponto de ameaçar o poder dos bolcheviques, como esta História da guerra civil conta, com riqueza de detalhes, baseada em farta documentação.
Este livro é uma narrativa séria e equilibrada dessa guerra que abalou o país, dividiu sua população e contou com a presença direta e indireta de várias potências estrangeiras. É também uma fina análise das partes nela envolvidas. Fruto de cuidadosa reconstituição histórica, esta obra do historiador francês Jean-Jacques Marie traz documentos até agora inéditos para quem não conhece a língua russa. Entender essa guerra civil ajuda a compreender o Estado soviético, algo inconcebível sem que se conheça os atores, o cenário e os acontecimentos que são apresentados neste livro.
Problemas recentes no atual império russo, como a luta dos chechenos contra o poder central, assim como o conflito contra os ucranianos, só fazem sentido se conhecermos o que se passou na região há um século. Feridas abertas ao longo da guerra civil russa, que matou ao menos quatro milhões e meio de pessoas (há quem fale em mais de dez milhões), ainda não foram adequadamente cicatrizadas. A leitura deste livro revelador é, pois, essencial para todos os que desejam compreender o processo que levou a Rússia a um regime fechado, personalista e cruel, embora baseado em ideais de abertura, coletivismo e solidariedade.
Alguns lerão, talvez pela primeira vez, a respeito dos Brancos, adversários dos Vermelhos (bolcheviques). Para a maioria, mesmo para iniciados nos acontecimentos do período, surgirão outros grupos importantes, como os Verdes. O autor mostra que no decorrer de 1919 a indefinição ainda era muito grande: os revolucionários foram obrigados a contar com dezenas de generais do czarismo na luta contra os… czaristas, uma vez que nem Trotski, o chefe supremo do Exército Vermelho, nem qualquer de seus assessores diretos entendiam qualquer coisa de assuntos militares, já que nenhum deles tinha qualquer experiência no assunto! Com frases feitas e slogans não seria possível vencer soldados experientes como os cossacos ucranianos, por exemplo…
Alguns episódios são quase surreais, como aquele em que algumas centenas de chineses se oferecem para atuar como 'voluntários' em troca de roupas, alimentação, calçados e um soldo fixo para o grupo todo, inclusive para aqueles que morressem em ação. Afinal, alegavam, as famílias precisavam continuar a receber o dinheiro, fundamental para a manutenção delas. E os adversários, para quem tinham trabalhado, não estavam pagando em dia. O custo para a população foi imenso. Não só os mortos e os feridos por balas perdidas, mas os saques de que camponeses e habitantes das cidades eram vítimas constantes. O plano dos Vermelhos era o de retirar do campo apenas o excedente, deixando para os agricultores os grãos necessários à sua sobrevivência e ao plantio da safra seguinte, mas nem sempre essas boas intenções foram respeitadas, uma vez que as tropas também precisavam de alimento, e, às vezes, de lugar para dormir. Já os Brancos não estavam muito preocupados com delicadezas desse tipo: privavam a população civil de seus bens, sua comida, de seus animais e carroças, e, com frequência, praticavam a tortura e o estupro. Com as mentes envenenadas pela propaganda czarista e por uma igreja antissemita (mais uma vez o mito do povo deicida), não era raro que, sem motivo aparente, aproveitassem a ocasião para assassinar os judeus que encontrassem pelo caminho. Não é por acaso que a emigração desse povo, que vivia na região havia sete séculos, sofreu um incremento nesse período, particularmente para a América e a Palestina.
Não se pense, contudo, que o autor apresenta os Vermelhos como os mocinhos do filme. Nada disso. Para começar revela as divergências políticas e pessoais que já se apresentavam no início dos anos 1920, opondo, por exemplo, Stalin e Trotski. Como sabemos o primeiro viria a se tornar o ditador socialista de todas as Rússias, quando estendeu seu braço assassino que alcançou e matou Trotski no seu refúgio mexicano, em 1940. O livro mostra também, embora não seja este o seu objetivo principal, a oposição entre a teoria socialista e o socialismo real, aquele que em vez de construir a sociedade mais avançada do mundo, viria a criar o culto à personalidade, os serviços secretos utilizados para destruir inimigos reais ou imaginários dos detentores do poder, as perseguições em larga escala, os crimes de opinião e o Terror, pura e simplesmente. O ovo da serpente estava crescendo e se mostrando já nessa guerra civil, como pode ser inferido por um leitor habilidoso.
O impressionante neste livro do historiador Jean-Jaques Marie é que ele não se preocupa em exibir erudição, embora seja um expert em História Russa e comunismo e domine a língua russa, razão pela qual trabalha com documentação vasta e variada. Além de livros, utiliza cartas, diários, relatórios, memórias, tanto de oficiais quanto de soldados e até de pessoas comuns. Como ainda é um excelente contador de histórias, cria um texto vivo, ágil, que ora fala de batalhas encarniçadas, ora nos conduz por uma floresta de coníferas, ora nos emociona com tragédias (massacres, doenças, ferimentos, estupros), ora fala de estratégias e táticas militares, de trens blindados, cavalos valentes, soldados saudosos de casa e da família lutando para sobreviver.
Este é um livro que se lê de modo apaixonado, tal o ritmo dos episódios narrados, o colorido dos personagens descritos, a acuidade da análise praticada, o equilíbrio crítico do autor, além da elegância da escrita e da quantidade e importância das revelações.
A ele, pois.
Por Jaime Pinsky, professor titular da Unicamp, doutor e livre-docente da USP, diretor da Editora Contexto.