O carro de Guilhermina era um Impala preto, reluzente e muito bem cuidado. Ano 1958. Suas triplas luzes traseiras simétricas foram uma novidade na época do lançamento. O veículo aparecia na lista dos mais vendidos da América. O mimo fora herdado do pai, um industrial bem sucedido que sempre gostou de viver bem, fosse em casa, nas ruas e estradas, ou nos espaços que reuniam a elite. Mas “ele foi embora antes do combinado”, como diziam os familiares e os poucos amigos. Ganhar bastante dinheiro teve para ele um custo muito alto: a solidão.
Com os vidros hermeticamente fechados, para que nem mesmo Deus se sentisse seguro de que ela poderia estar lá dentro, Guilhermina ganhou a rua arborizada e cheia de curvas, praticamente um labirinto, como convém aos bairros de classe alta. Suas mãos pequenas e delicadas sabiam conduzi-lo como quem executa uma canção ao violino.
Quando chegou ao escritório de arquitetura, nada muito longe dali, encontrou Luigi, um cliente do passado com quem teria a primeira reunião daquela manhã, talvez seguida pelo almoço na sua companhia. Tudo dependeria de como as coisas iam acontecer. Tudo dependeria do fechamento de um contrato, cheio de letrinhas e repleto de números. Claro, a conta bancária suportaria aqueles valores.
O elevador a fez esperar um pouco mais. Sobre a sua criativa mesa de trabalho, ao lado de um biombo indiano de madeira, havia também uma peça de cerâmica, que emoldurava uma flor de lótus, obra criada e produzida por um velho amigo que agora vivia pouco no país.
Guilhermina era apaixonada por essa planta desde os primeiros anos de universidade, no Japão. Fora tocada por sua mensagem, que falava da pureza do corpo e da mente, além de renascimento. A flor cresce na lama e, mesmo assim, se torna bela. Isso garantiu espaço permanente na filosofia de vida de Guilhermina. Em lugares que nada prometiam, ela construiria as melhores condições de conforto para outros seres humanos. Era preciso acomodar a vida.
No papel de líder, de seu computador saía mais do que projetos. Em tudo ela se ocupava com a missão de superar as expectativas dos clientes, materializando seus sonhos. Para isso, oferecia serviços especializados e inovadores, que transformavam e valorizavam o ambiente, onde predominava a harmonia.
Luigi fez menção de acender o velho cachimbo. Não foi adiante. Num primeiro momento, não se sentiu confortável para fumar naquele lugar, mesmo sabendo que o tabaco importado deixava um cheirinho de incenso no ar. Fumar, ali, não contribuiria em nada para o conjunto da obra, apenas garantiria a satisfação do seu hábito individual e bem antigo. Isso ele ainda conseguiu entender.
Luigi havia herdado uma chácara a pouco mais de cem quilômetros da capital. Queria reformar a casa, tornando-a uma verdadeira casa de campo, com espaço suficiente para acomodar pessoas da família e amigos. Nela, todos os cômodos deveriam expressar sua personalidade e seu gosto, que casava muito bem com os de sua mulher.
– Eu vi aqui, mas você quer começar me falando o que espera da sua nova casa? – perguntou Guilhermina.
– Bem, eu anotei, não está em ordem de importância. Vou detalhar um pouco o que eu e minha esposa incluímos no briefing que enviamos pra você e aí a gente pode discutir cada item, pode ser?
– Estou ouvindo. Pode falar – disse Guilhermina.
– Churrasqueira; piscina grande, porque minha família é grande; varanda espaçosa, muito bem decorada e com vista para uma pequena floresta; balanços suspensos pras crianças; um espaço para a minha coleção de máquinas de datilografia e cachimbos; cozinha espaçosa e com muito verde, pra garantir a integração com o entorno; uma horta para pequenos temperos; decoração com ladrilho hidráulico; pé-direito alto e grandes janelas de vidro, também pra manter a conexão; sofá grande pra sala de estar; quartos decorados com leveza e simplicidade e com muita luz; paisagismo com um lago natural, talvez… Será que esquecemos alguma coisa?
– É, me parece bem completa! Gostei do briefing. Acho que não tenho nenhuma pergunta, por enquanto. O briefing vai ajudar bastante a equipe. Assim a gente vai direto ao ponto e evita desencontros. Ótimo.
– Sabe, Guilhermina, a vida de diretor clínico num hospital grande é muito estressante. Mais ainda sem poder fumar – confessou Luigi. Sua barba espessa estava por fazer, e o cabelo cor de cinza metal não ganharia prêmios no quesito arrumação.
– Eu entendo. Relaxar com a família e os amigos é fundamental.
Depois Luigi olhou para cima e viu que no armário, dentre outras coisas, ali repousava um cinzeiro, peça que misturava cerâmica e vidro de um jeito nunca visto.
– Não pude deixar de ver.
– Pois não – disse Guilhermina, com a expressão de quem perdeu algum detalhe importante da conversa.
– Não pude deixar de ver aquele cinzeiro – Luigi disse, apontando na direção do objeto.
– Ah, sim, ele é lindo. Hoje faz parte da decoração. Funcionou por muito tempo, quando aqui todos fumavam, inclusive meu pai. Agora perdeu o emprego, foi aposentado – brincou Guilhermina, com uma quase gargalhada.
– Que pena que ele foi aposentado. “Aposentadoria compulsória” e tudo? – disse Luigi, sorrindo, para não destoar do clima de Guilhermina.
– Sim, “Aposentadoria compulsória”, veja só. Não teve outro jeito. E sem direito a recurso. Você usa um desses?
– Ainda uso. Eu sou viciado em cachimbo, desde os tempos de faculdade.
– Agora, no lugar do cinzeiro, tenho essa flor de lótus. Renascimento.
– Por que não falamos sobre renascimento enquanto almoçamos? Aceita meu convite? – perguntou Luigi, cheio de cautela e olhando para o relógio.
– Sim, aceito, obrigada. Vamos falar de Renascimento. Inclusive, sou apaixonada pela arte produzida nesse período.
– Sim, claro, obras renascentistas, claro, são muito significativas. Importa-se se no caminho eu fumar um pouco?
– Tudo bem, fique à vontade. Meu carro está aqui mesmo, vamos lá – disse Guilhermina.
O almoço foi servido.
– A que brindamos? – indagou Guilhermina.
– Ao fechamento do nosso contrato. Sim, vamos reformar a casa na chácara. E olha, vou até parar de fumar. Renascimento, não é mesmo?
– Flor de lótus – disse Guilhermina. – Então você me trouxe aqui pra dizer que fechamos o contrato? Pra mim é uma celebração. Pensei que ainda estivesse em dúvida!
– E você já está convidada pra inauguração. Inauguração e festa do renascimento.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao