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Figuras e práticas históricas | Jaime Pinsky

Conheço médicos excelentes. Tenho até amigos pessoais dentre eles e posso assegurar que alguns são pessoas cultas, além de bons profissionais. Minha mulher reclama que, quando preciso dos serviços profissionais deles, costumo substituir minhas queixas de paciente, pelas do cidadão inconformado com o nosso país, que não decola.  Mas, nestas linhas, peço desculpas públicas aos demais, mas não tenho dúvidas: O melhor médico que conheci foi o Dr. Luiz Gastão do Cerro Azul, falecido ano passado, após uma bela e longa trajetória, quase centenária. O curioso é que ele se constituía em figura que, à primeira vista, poderia ser definida como arcaica: seu consultório antigo, no bairro de Higienópolis, em São Paulo, com velhas fotos de família e ilustrações recortadas de revistas (tanto de umas, como outras, o tempo já havia lavado a vida das cores). Dr. Gastão tratava todas as pessoas de forma respeitosa e até um pouco formal, algo que a pressa de muitos consideraria imperdoável, em nome de uma pseudo objetividade. A verdade é que nunca vi alguém levar seu juramento profissional tão a sério. Ao descobrir que eu, ainda jovem (segundo o padrão estabelecido por ele) já era professor titular da Unicamp, além de doutor e livre docente na USP, passou a me chamar apenas de “professor”, após se desculpar por, até então, colocar um mero “senhor” antes do meu nome de registro… Formal e arcaico?  Ele se preocupava mesmo era com os doentes. Contra as doenças travava luta aberta e ia procurá-las onde estivessem escondidas, ou disfarçadas, em algum lugar do paciente. Ou mesmo de quem não era paciente. Nunca esquecerei o dia em que, ao ouvir minha esposa, que me acompanhava na consulta, tossir, interrompeu os procedimentos preliminares do meu eletrocardiograma e foi auscultar o peito dela, pois sua tosse lhe chamara a atenção.  Ela não era cliente dele. Mas ele era médico, não um simples cobrador de consultas. Um dia, ao lhe dizer que andava tenso com problemas no meu local de trabalho, Dr. Gastão, levando em contar o amor que ambos tínhamos pela música de Beethoven, me passou, do seu bloquinho, escrito com letra cuidadosa, uma receita recomendando que eu comprasse um CD contendo a execução do Trio Arquiduque e tratasse ouvi-lo, para relaxar. Segui o receituário. E, se me permitires um pequeno ato infracional – o exercício ilegal da medicina, – ousaria recomendar o mesmo remédio aos meus leitores.

Figuras e práticas históricas | Jaime Pinsky

A utilização da mão de obra servil, não se justificaria nos dias de hoje, embora já tenha sido uma prática comum na Antiguidade. Mas não é preciso recuar milhares de anos para encontrar mão de obra escravizada colocada a serviço dos detentores do poder. O Brasil acolheu o regime escravista com muito entusiasmo e esse regime durou vários séculos, apoiado não só por grandes proprietários de plantações. Foi justificado e utilizado pela própria Igreja. E, mais recentemente ainda, na metade do século passado, o regime nazista utilizou, para baratear o custo produtivo, mão de obra de judeus escravizados em fábricas de empresários que apoiavam Hitler e seus seguidores. O regime também funcionava dentro dos campos de concentração e extermínio e a força de trabalho escravizava foi aproveitada por muitos empresários aliados dos detentores do poder.

Da mesma forma, executar, ou mesmo torturar alguém, por ele acreditar ou deixar de acreditar em determinado divindade não é coisa dos nossos dias, pelo menos em nossa cultura ocidental. Como se dizia na Roma Antiga, “outros tempos, outros costumes”. Só que isso ainda não ocorre no mundo todo. Daí fazer sentido dizer-se que algumas sociedades atuais têm práticas sociais arcaicas. Mas o mundo civilizado não suporta mais atitudes como o preconceito racial, a perseguição a homossexuais, a discriminação a mulheres, ou restrições a praticantes de religiões diferentes das oficiais. Contudo, isto ainda acontece em alguns lugares. Países como o Uruguai, que mantem uma saudável separação entre a religião e o poder político, são raros. Dogmas religiosos não são constatações científicas, são “verdades absolutas”, não sujeitas a argumentação e questionamento. Dogmas, por sua natureza, não são sujeitos a discussão, e isso dificulta a real separação entre o poder político, necessariamente oriundo de um processo racional e o poder religioso, sempre decorrente de atos de fé, supostamente exigidos pela divindade. Por outro lado, por mais que creiamos, por mais que tenhamos fé, não temos o direito de impor nossa crença aos outros, e é muito fácil confundirmos imposição religiosa a “tradição cultural”, em nome da qual pode ficar muito fácil justificar desde feriados e símbolos religiosos expostos publicamente, como preconceitos, expulsões, e até massacres. Uma simples pesquisa vai oferecer um quadro nada lisonjeiro de violência em nome da divindade mais cultuada por detentores do poder. Nesse caso é evidente que o anacronismo tem um caráter negativo, pois será um fator discriminatório. Uma sociedade mundial como a que existe, de fato, nos dias de hoje, precisa ensinar seus cidadãos que a tolerância é fundamental.


Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.

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