O Brasil e suas digitais
Em 16 de junho de 2010, o Brasil acordou de ressaca. Na véspera, a seleção havia estreado na Copa do Mundo da África do Sul e sofrido para vencer por 2 a 1 a fraquíssima Coreia do Norte, que chamava a atenção menos pelo futebol e mais pela torcida batendo palmas de forma robótica no estádio Ellis Park, em Johannesburgo.
Nos jornais, o futebol disputava espaço com a campanha presidencial que apenas esquentava. Dilma Rousseff (PT), escolhida candidata pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda não havia demonstrado todo seu potencial de crescimento nas pesquisas, e uma vitória de José Serra (PSDB) ou Marina Silva (PV) era possibilidade real.
Naquele dia, pouca gente prestou atenção a um evento que ocorria no norte do país. Lula recebia em Manaus (AM) a visita do seu colega peruano Alan García. Em pauta, a assinatura de um acordo energético entre os dois países.
O petista estava no melhor de sua oratória. Reclamou da dificuldade em importar couve-flor e cebola do Peru, fez uma ode à sardinha peruana (“que eu adoro”) e pediu a García que o abastecesse do produto. Os ouvintes riram fartamente.
Preparado o terreno, foi então ao ponto que lhe interessava: o acordo assinado seria um marco na relação entre os dois países. “A gente pode se apresentar ao mundo como a parte com mais segurança energética de todo o planeta Terra, se utilizarmos o potencial que temos”, discursou, abusando de seu famoso gosto pelo superlativo.
[su_pullquote]O petista estava no melhor de sua oratória. Reclamou da dificuldade em importar couve-flor e cebola do Peru, fez uma ode à sardinha peruana (“que eu adoro”) e pediu a García que o abastecesse do produto. Os ouvintes riram fartamente.[/su_pullquote]
A empolgação tinha explicação: o acordo previa a construção de cinco usinas hidrelétricas na Amazônia peruana. Todas por empresas brasileiras que anos mais tarde seriam envolvidas na Operação Lava Jato. Ali, a divisão das obras como num clube de amigos, algo que a investigação da Polícia Federal e do Ministério Público revelaria apenas anos depois, já estava escancarada.
A construtora Engevix ficaria com a usina de Paquitzapango, uma das duas maiores do bolo, com potencial energético de 2.000 MW. A OAS abocanharia Inambari, também com 2.000 MW. As outras três, todas com capacidade de cerca de 1.000 MW, seriam destinadas a Andrade Gutierrez (Mainique 1), Odebrecht (Tambo 40) e Eletrobras (Tambo 60).
No total, aproximadamente 7.000 MW de potência energética, ou dois terços da usina de Belo Monte, maior obra em curso no Brasil em décadas. O plano era simples, ao menos no papel. As empreiteiras brasileiras tocariam aqueles gigantescos empreendimentos, recebendo recursos do governo peruano, que, por sua vez, seria alimentado por generosos financiamentos do BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
O que não estava dito claramente é que uma parte considerável daquela enorme geração de energia seria vendida ao Brasil. E que os custos ambientais ficariam apenas com os peruanos.
Lula tratou de tentar desarmar uma palavra que talvez estivesse nas mentes das autoridades do país andino: imperialismo. “Durante quase um século os países vizinhos do Brasil aprenderam que o Brasil era um império e, portanto, era preciso todo mundo ter medo do Brasil”, afirmou. Nada disso, assegurou. “Sou um latino-americano, ou um sul-americanista, juramentado”, prometeu.
Em cinco anos, aquela visão grandiloquente estava em ruínas. A mobilização de populações indígenas e de algumas milícias locais de camponeses, além das pressões de ambientalistas, inviabilizaram os projetos hidrelétricos. Nenhum havia saído do papel até o final de 2016.
O que não se esvaiu foi o termo maldito: “imperialismo”. Em alguns lugares, a pecha grudou forte na imagem do Brasil. No lugarejo de San Gabán, perdido nos Andes peruanos, a líder local Olga Cutipa, 52 anos, sete filhos e seis netos, recebeu-me em sua casa numa tarde de sábado com jaleco camuflado e boné das “rondas campesinas”, espécie de polícia paramilitar que pequenos agricultores locais montaram. Uma de suas bandeiras foi a mobilização contra a construção da usina de Inambari, parte do pacote de Lula e García, que, segundo ela, causaria danos ambientais irreversíveis e o deslocamento de milhares de pessoas.
“Basta dos abusos dos brasileiros. Brasileiros jogam sujo!”, disse-me a líder camponesa, com a autoridade do cargo de nome pomposo para o qual havia sido eleita pelas comunidades locais: presidente da Frente de Resistência à Usina de Inambari.
No início do século XXI, o Brasil tinha um novo governo, uma economia que crescia a taxas expressivas e um presidente que tinha como obsessão expandir as fronteiras do país. Para Luiz Inácio Lula da Silva, que assumiu em 2003, os brasileiros precisavam “desabrochar”. Para seus críticos, a estratégia tinha nome: megalomania.
[su_pullquote]Para Luiz Inácio Lula da Silva, que assumiu em 2003, os brasileiros precisavam “desabrochar”. Para seus críticos, a estratégia tinha nome: megalomania.[/su_pullquote]
A história da política externa brasileira desde o século XIX alterna períodos de expansionismo e retração, mas mesmo considerando o peso desse passado, o que se viu na era Lula não teve precedentes. A estratégia internacional deixou de ser um nicho reservado a especialistas, portanto algo de interesse restrito, para ser alçada a parte de um novo projeto de poder. Raras vezes a diplomacia se prestou com tamanha intensidade a ser um braço de uma plataforma política.
A abertura frenética de embaixadas em países periféricos foi uma face visível desse projeto, mas nem de longe a única. Era preciso engajar o setor privado, especialmente grandes empreiteiras, e colocar a serviço delas os bancos públicos, como o BNDES, que abriu suas torneiras como nunca. Era necessário projetar poder militar e transformar o Atlântico Sul numa área tutelada pelo Brasil. E era fundamental colocar um garoto-propaganda – no caso, o próprio presidente da República – à frente de tudo.
Com seu carisma inegável, biografia romantizada e a sede de poder de quem tentou ser presidente três vezes antes de finalmente conseguir abocanhar o Palácio do Planalto numa eleição memorável, Lula pôs seu projeto em marcha rapidamente. A reboque de sua figura hiperativa vieram empreendedores e aproveitadores na construção civil, no agronegócio e no setor petrolífero, entusiasmados com o novo ambiente de permissividade que se instalava.
Uma década depois, as rachaduras causadas por essa euforia desmedida se tornaram evidentes. O financiamento público a obras de infraestrutura no exterior tinha elementos de tráfico de influência ou, pior, foram azeitados pelo pagamento de propina, como revelaram operações de combate à corrupção, sobretudo a Lava Jato. O caixa do PT foi engordado por doações de empresas beneficiadas por esse expansionismo desmedido.
A promiscuidade entre o novo governo brasileiro e novos parceiros estratégicos em países como Angola, Peru e Moçambique tornou-se clara. Talvez nada simbolize melhor essa nociva simbiose do que o publicitário petista João Santana em países como Venezuela, Angola e República Dominicana, recebendo ilegalmente por campanhas presidenciais via depósitos clandestinos da Odebrecht, a empreiteira símbolo da era Lula. Santana passou meses na cadeia, fisgado pela Lava Jato, e só saiu quando concordou em contar tudo o que sabe.
[su_pullquote align=”right”]A primeira década do novo século foi um tempo de euforia, em que o Brasil tomou de assalto o espaço político internacional e era decididamente um dos países – talvez “o” país – da moda.[/su_pullquote]
Este livro traça um panorama da atuação internacional do Brasil num período que, grosso modo, começa com a eleição de Lula e termina dez anos depois, quando o otimismo reinante até então desmorona bruscamente com crises simultâneas na política e na economia.
A primeira década do novo século foi um tempo de euforia, em que o Brasil tomou de assalto o espaço político internacional e era decididamente um dos países – talvez “o” país – da moda.
Entre 2003 e 2015, o BNDES liberou US$ 14 bilhões para 575 projetos no exterior, em 11 países de África e América Latina. A quase totalidade para grandes obras de infraestrutura urbana, transportes e energia, tocadas pelas maiores empreiteiras do Brasil. No mesmo período, programas de cooperação do governo federal capitaneados pela ABC, a Agência Brasileira de Cooperação, mais voltados a áreas como educação, saúde e desenvolvimento econômico, estiveram presentes em 108 países.
No campo diplomático, a movimentação foi avalassadora. O Brasil tinha, em 2015, embaixadas em 139 países, das quais 48, ou 34%, abertas desde a eleição de Lula. Isso inclui Maláui, Granada, Nepal, Belarus e outros países sem muita expressão econômica ou política, ao menos para nós. Cada pé fincado em um desses lugares virou uma porta de entrada para empresas brasileiras e uma forma de expandir a influência política no exterior. Renderam também votos na eleição para a direção de organismos internacionais, cada vez mais objeto da vaidade diplomática nacional.
Outra face dessa visão ambiciosa do Brasil, reminiscente do “Brasil Grande” do regime militar, foi a vocação expansionista das Forças Armadas, que saiu definitivamente do casulo. O Exército liderou uma missão de paz da ONU no Haiti, enquanto a Marinha criou bases em países como São Tomé e Príncipe, Namíbia e Cabo Verde, todos na costa africana, com o intuito declarado de transformar o Atlântico Sul em uma área de influência brasileira.
Este livro se dedica a examinar como o processo de internacionalização do Brasil foi recebido em algumas partes do mundo e como as ações colocadas em prática pelo governo mudaram a percepção do Brasil ao redor do planeta. Documentos da diplomacia, entrevistas com autoridades e viagens a alguns dos pontos sensíveis da atuação do Brasil foram minha matéria-prima.
Em diversos locais, nosso país atualmente é mais associado a uma ameaça. A senhora peruana que amaldiçoou para mim a hidrelétrica brasileira não está sozinha. Como ela, há camponeses moçambicanos assustados com a concorrência do agronegócio brasileiro, burocratas na Namíbia frustrados com as estripulias de oportunistas no setor petrolífero e moradores de uma periferia em Angola irritados por terem se tornado “dano colateral” de projetos de uma construtora. Todos eles compõem o retrato do que é hoje o Brasil no mundo.
Seria exagero dizer que já não somos mais associados em primeiro lugar a futebol, Carnaval e floresta Amazônica. Mas a imagem de país dócil e inofensivo, que carregamos durante boa parte do século XX, essa já se foi há muito tempo.
Saiba mais no livro “Euforia e Fracasso do Brasil Grande“, de Fábio Zanini
Fábio Zanini é jornalista formado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), com mestrado em Relações Internacionais pela School of Oriental and African Studies, da Universidade de Londres. Foi repórter de política e correspondente da Folha de S. Paulo em Londres e Johannesburgo, além de editor de internacional. Atualmente é editor de política no mesmo veículo.