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Estudos críticos do discurso e cognição social em tempos de ultrapolarização política: as contribuições de Teun A. van Dijk

Entrevista concedida a Gisele Azevedo Rodrigues
Entrevistado: Teun A. van Dijk Universitat Pompeu Fabra

Teun A. van Dijk é professor da Universidade Pompeu Fabra e diretor do Centre of Discourse Studies, em Barcelona. Foi professor de estudos do discurso na Universidade de Amsterdã entre 1980 e 2004. No início de sua trajetória acadêmica, produziu trabalhos nas áreas de poética generativa, gramática de texto e psicologia do processamento textual. Desde 1980, dedica-se aos estudos do discurso em perspectiva crítica, a partir de parâmetro sociocognitivo, com foco em ideologia e relações de poder. Sua obra constitui-se como um dos pilares teóricos e metodológicos da análise do discurso crítica (ADC). Em dezembro de 2023, van Dijk lançou o livro Social Movement Discourse: An Introduction, que oferece, a partir do estudo da iniciativa Welcome Refugees, um olhar cuidadoso sobre as diferentes representações discursivas que os movimentos sociais podem assumir (a publicação está em fase de tradução para o português). Entre a sua vasta produção, destacam-se títulos como The Handbook of Discourse Analysis (1985), Cognição, Discurso e Interação (1992), Discurso, Notícia e Ideologia (2005), Discurso e Poder (2008), Racismo e Discurso na América Latina (2008), Discurso e Contexto: Uma abordagem sociocognitiva (2012) e Discurso Antirracista no Brasil: da abolição às ações afirmativas (2021). Van Dijk é também editor dos periódicos Discourse & Society, Discourse Studies e Discourse & Communication. Nesta entrevista, fala sobre o que o motivou a escrever o novo livro e comenta aspectos de ideologia e cognição social dos discursos que circulam pelas plataformas digitais em tempos de ultrapolarização política.

Estudos críticos do discurso e cognição social em tempos de ultrapolarização política: as contribuições de Teun A. van Dijk

Teun, agradeço muitíssimo por esta entrevista. No prefácio do seu último livro, Social Movement Discourse: An Introduction (2023), você fala sobre a sua trajetória acadêmica desde quando ainda pesquisava a poesia surrealista, em 1962. Poderia comentar um pouco sobre como se deu a mudança de foco para os estudos críticos do discurso?

São vários pontos. O prefácio do livro conta um pouco a minha história para enfatizar que o meu trabalho é multidisciplinar. Se hoje estou fazendo pesquisa na área das ciências sociais, no princípio não era assim. Como aluno de língua e literatura francesas, primeiro em Amsterdã e depois em Estrasburgo e Paris, comecei estudando a poesia surrealista do autor francês Paul Éluard. Tantos anos depois, me dei conta de que agora também estou debruçado sobre um movimento, só que muito diferente do movimento surrealista. Estou imerso nas ciências sociais, pesquisando os discursos produzidos no âmbito da iniciativa Refugees Welcome, que acolhe refugiados na Europa, América do Sul e Austrália. Então, do meu ponto de partida em 1962, aos 19 anos, quando estudei a poesia surrealista, até agora, quando me proponho a estudar os discursos que circulam no bojo dos movimentos sociais, foi uma ampla trajetória, que passou por diferentes fases. Quis contar essa história para enfatizar que, nesse percurso, sempre estive aprendendo com diferentes disciplinas. Enquanto eu estava fazendo análise da poesia surrealista, por exemplo, eu senti que, além de estudar o surrealismo como movimento literário e artístico, eu precisava saber mais sobre linguística. Então, antes de concluir a minha tese de doutorado, fui a Paris para ter aulas no Laboratório de Lévi-Strauss, no Collège de France, onde havia seminários de Greimas sobre semântica. Era a época da semiótica francesa. Esse foi o meu primeiro movimento de extensão da literatura à linguística. Mas, naquele momento, ainda restrito à linguística de palavras e orações.

Você se refere à linguística de viés estruturalista?

Sim, ao viés estruturalista em vigor na França e em outros lugares. Também havia os estudos de Chomsky, que falava de orações, mas não sobre textos, que era o que eu buscava. Eu desejava fazer linguística de texto. Por isso, decidi expandir minha pesquisa do doutorado, e minha tese foi sobre gramática de texto. Assim comecei meu estudo sobre texto. Mas eu queria ir além, sentia que precisava caminhar para a linguística do discurso. Depois do doutorado, passei a falar de noções que ainda não havia na linguística, como a de macroestrutura do texto. E essa noção estava relacionada à conceitualização, que era um conceito da psicologia. Decidi, então, conhecer a psicologia cognitiva e lá encontrei trabalhos de pessoas que estavam começando, ainda nos anos 70, a fazer psicologia do discurso. Quis participar disso. Percebi que, para avançar, sempre era preciso sair de uma linha linguística para encontrar outra. Assim, uma vez na linguística de texto, notei que podia seguir para a psicologia cognitiva na compreensão do discurso. Comecei a pesquisar nesse campo nos Estados Unidos e, em 1983, lancei o livro Strategies of Discourse Comprehension em parceria com Walter Kintsch, psicólogo que fazia importantes trabalhos na área.

Em que momento você se voltou para a dimensão social do discurso?

Nesse percurso multidisciplinar, passei da literatura à semântica, depois cheguei à linguística de texto e, em seguida, à psicologia do discurso. Mas, somente após a minha primeira visita ao México, ao ver de perto tanta pobreza e outros problemas estruturais da América Latina, entendi que faltava essa dimensão social e crítica nos meus estudos do discurso. Então, mais uma vez, senti que deveria avançar para outros campos. Da psicologia cognitiva, parti para estudos mais aprofundados sobre as estruturas sociais, focando nas relações entre discurso, poder e transformação social. Foi nesse momento que comecei o trabalho sobre racismo, que faço até agora. Grande parte do livro que acabei de escrever relaciona-se a pessoas refugiadas. É um tema que sempre me interessou: o discurso do racismo, do antirracismo e das várias formas de resistência. Como você pode ver, procurei expandir as minhas ideias, conhecer outras áreas. Aos 80 anos de idade, quando as pessoas me perguntam o que aprendi em 60 anos de pesquisas, eu digo que é precisamente isto: nunca fiquei em um lugar só, em uma única disciplina. Sempre busquei explorar outras áreas e métodos. Foi isso que tentei contar no prefácio do livro.

Você descreve a sua abordagem de pesquisa sobre os movimentos sociais como sociocognitivista e construtivista. Poderia falar um pouco sobre isso?

Entendo que a realidade que observamos, seja ela social ou política, é uma realidade que a gente constrói na cabeça. Então, não é uma só, não são dados puramente objetivos, são sempre construções humanas a partir do nosso olhar e das nossas experiências. Esta não é uma ideia nova, vem da sociologia. E a psicologia cognitiva ajuda a compreender os processos mentais envolvidos nas representações discursivas que participam dessas construções. Então, sobre cognição pessoal, já há muita gente falando, como os meus colegas que fazem análise de discurso com o viés da psicanálise, por exemplo. Mas, para além disso, me interessa a noção de cognição social, ou seja, a cognição que temos em comum com as outras pessoas. Como digo no prefácio do livro e em tantos outros trabalhos, proponho um modelo de análise baseado na triangulação entre discurso, cognição e sociedade, numa formulação teórica que leva em consideração as estruturas complexas e multimodais do discurso enquanto forma de interação, no seu contexto comunicativo, social, político, histórico e cultural, e também considera os processos cognitivos envolvidos na construção dos modelos mentais associados às emoções, conhecimentos, atitudes, normas, valores, objetivos e ideologias que são comuns a um grupo de pessoas. Trabalho, então, com uma análise de discurso crítica de base sociocognitiva e multidisciplinar, que dialoga com áreas como a psicologia, a sociologia, a antropologia e a comunicação, entre outras.

Qual foi exatamente o seu objeto de pesquisa para a escrita do livro?

Fiz questão de deixar claro, logo no título, que o livro faz uma introdução aos discursos dos movimentos sociais. Direcionei a pesquisa para o movimento Refugees Welcome, que em 2015 buscou dar acolhimento, na Europa, a mais de um milhão de refugiados procedentes da Síria e de outros países do Oriente Médio. Mas não escrevi sobre o movimento em si. Não foquei em números ou resultados. Escrevi sobre os discursos produzidos no âmbito do movimento. Me interessava o que diziam os seus participantes, a mídia, as organizações não governamentais, as instâncias políticas. Não fiz uma análise sociológica, mas sim discursiva. Quis entender como o movimento se apresentava e mobilizava as ações necessárias, o que os participantes pensavam e como se viam nesse processo, como as pessoas em geral enxergavam a situação dos refugiados e como compreendiam o movimento. Também quis entender quais eram os discursos institucionais e políticos de apoio e contrários aos refugiados, especialmente os dos grupos da extrema direita nacionalista. Analisei os diferentes gêneros e formatos das muitas dimensões do movimento: manifestos, panfletos, slogans, cartazes, fotos, vídeos, posts do Facebook, memes da internet, notícias, textos organizacionais e pronunciamentos parlamentares. Também tive a chance de contar com a colaboração do sociólogo Pierre Monforte, da Universidade de Leicester, que havia entrevistado mais de 100 voluntários, a maioria mulheres, que trabalharam em um abrigo de refugiados na França. Foram dados muito ricos para a minha pesquisa, pois nas respostas consegui identificar pistas dos valores, ideologias e motivações das pessoas que se envolveram no movimento. A mensagem principal do meu livro é que você pode estudar um movimento social por meio de uma análise sistemática de todos os discursos que se relacionam a ele, em suas várias dimensões.

Quais as contribuições que você espera oferecer, com o livro, para os estudos críticos do discurso e para os movimentos sociais?

Primeiro, gostaria de mostrar para os pesquisadores da linguística e da área da análise do discurso, em particular, que há muito o que estudar a respeito dos movimentos sociais. Isso é importante. Nós já produzimos muito sobre racismo, sexismo, machismo e outras formas de abuso de poder analisando o discurso da mídia e dos políticos, por exemplo. Mas pouca coisa foi feita sobre os discursos produzidos no interior dos movimentos sociais ou a respeito deles. Para ilustrar, cito o Movimento Sem Terra, no Brasil, que é tão atuante. Ainda temos muito a estudar a respeito de seus discursos. Além disso, como analistas do discurso, podemos contribuir com os pesquisadores de outras áreas que estudam os movimentos sociais mas não têm a nossa expertise, pois a sua formação costuma ser em sociologia, ciência política ou psicologia, entre outras. Nesse sentido, também gostaria de mostrar para as pessoas dos movimentos sociais que prestar atenção aos seus discursos é tão importante quanto pensar nas suas ações, até porque muitas das suas atividades são naturalmente discursivas. É preciso focar no que é dito e em como as pessoas expressam seus objetivos, motivações, crenças e emoções. E a análise do discurso tem ferramentas adequadas para isso. Não dá para ficar no senso comum e na superficialidade. Temos que sair da área de conforto. Se falamos de vocabulário, de sintaxe, de metáfora, de implicaturas e pressuposições, de retórica, de frames, de argumentação ou de narração, entre outras dimensões, precisamos estudar para isso. Então, uma vez que estamos preparados para esse tipo de trabalho, temos muito a contribuir com a pesquisa sobre os movimentos sociais, que certamente vai ficar melhor e mais completa com o olhar atento dos analistas do discurso.

Por que você considera que há uma certa banalização do uso da noção de frame entre os autores que pesquisam os movimentos sociais?

Eu acho que a noção de frame tem sido utilizada de forma tão genérica que às vezes acaba não significando muita coisa. Em 2023, publiquei uma edição especial da revista Discourse Studies dedicada ao tema. Fiz uma análise de mais de 150 artigos com a palavra “frame” nos títulos e percebi que cada autor usava o termo de uma forma diferente. Então, acho que uma noção que se aplica a qualquer coisa acaba não tendo muito valor, é inespecífica. Por isso, escrevi um texto bastante crítico sobre o assunto para a revista. Não estou dizendo que não há bons trabalhos sobre frame. O sociólogo Erving Goffman, por exemplo, tem um trabalho consistente em uma abordagem cognitiva que descreve os frames como enquadres interpretativos. Mas penso que, se vai se fazer análise dos discursos que circulam nos movimentos sociais, é preciso aprofundar questões sobre ideologia, valores e atitudes, entre tantas outras. Então, por que não utilizar abordagens e categorias com as quais a análise do discurso como disciplina já trabalha? Não tenho visto estudos aprofundados sobre frame que contemplem essas questões detalhadamente. Você pode falar de frames quando faz linguística cognitiva e analisa a estrutura semântica das palavras, quando pesquisa estilo ou retórica ou quando estuda as estruturas de modelos mentais associados a eventos sociais, no âmbito da sociolinguística. É claro que a noção de frame não deve ser abandonada. Eu mesmo continuo utilizando. Mas antes é preciso deixar claro o que você entende como frame em cada contexto de pesquisa. A minha crítica é direcionada para o uso indiscriminado e superficial do termo.

E a noção de script?

É outra coisa. É uma estrutura de conhecimento prévio, como o roteiro de um filme. Quando se vai a um restaurante, por exemplo, já se tem na cabeça uma sequência de comportamentos que devem ser adotados com base nos conhecimentos que as pessoas da nossa cultura compartilham sobre esse evento. É o conhecimento convencional sobre eventos sociais. A noção de script foi introduzida em 1977 por Roger Schank e Robert Abelson no livro Scripts, Plans, Goals and Understanding, nos primórdios da ciência cognitiva. Entre outras coisas, os autores pesquisavam sobre como programar os computadores para que pudessem compreender e produzir textos automaticamente. Então, para eles, era importante sistematizar conhecimentos prévios sobre os diferentes eventos a fim de “alimentar” o computador com scripts, de forma que a própria máquina pudesse interpretar e gerar textos. Ou seja, os autores entenderam que, para programar computadores, era preciso conhecimento de mundo. E isso tudo foi bem antes das iniciativas de inteligência artificial que temos hoje.

Você menciona, no novo livro, possíveis aspectos “neoliberais” associados aos movimentos humanitários internacionais que ganham visibilidade. Sobre o assunto, cita o trabalho de Lilie Chouliaraki, que fala em uma moralidade individualista pouco comprometida com grandes transformações sociais e questiona a abordagem “comercial” e espetacularizada de algumas iniciativas do Norte Global dirigidas ao Sul Global. Como isso acontece?

Primeiramente, é preciso entender que, ao tratar de movimentos que apoiam refugiados de várias partes do mundo, não estamos lidando com iniciativas de resistência que se opõem diretamente a fenômenos como o racismo ou o machismo, como fazem o movimento antirracista e o movimento feminista. Estamos no campo da solidariedade e da empatia. Então, ao pesquisar uma bibliografia específica sobre isso, descobri que já havia muita coisa escrita ligada às áreas da psicologia e da filosofia. Muita gente já refletiu sobre os movimentos sociais com um olhar para esse tipo de motivação. Mas a minha amiga e colega de análise do discurso Lilie Chouliaraki, da Escola de Economia e Ciência Política de Londres, faz reflexões em outra direção. Ela é pesquisadora dos discursos midiáticos e tem uma visão muito crítica sobre o uso comercial que pode ser feito da ajuda oferecida a grupos mais necessitados. Em seus trabalhos, Chouliaraki critica o abuso que há, por exemplo, quando um veículo de comunicação divulga a ida de uma pessoa famosa à África muito mais para alavancar audiência que para efetivamente trazer benefícios à população daquela região. É uma visão crítica sobre a “comercialização da pena”. E eu concordo. Acho que, se você se preocupa com a situação das pessoas, você tem que fazer alguma coisa concreta para mudar a realidade delas, e não apenas tratá-las como “pobrecitas”. Apenas piedade não resolve, não é mesmo? Então, esta é uma crítica mais sociopolítica que teórica em relação à exploração do sofrimento das pessoas.

Sobre esse aspecto crítico da análise do discurso, vemos que existe uma separação teórica entre a ADC, entendida como o tipo de análise inserido no campo dos estudos críticos do discurso, ao qual você se vincula, e a AD de linha francesa. Você acha que, em alguns momentos, pode haver diálogo entre os autores das duas áreas?

Já comentei muitas vezes em palestras e congressos, inclusive no Brasil, que detesto essa divisão da análise do discurso em linhas e escolas. Essa separação não é compatível com o “fazer ciência” de forma ampla e internacional. O discurso é um tema universal e a sua análise deve ser tratada como área universal também. Não deve ter isso de linha francesa, linha inglesa etc. São apenas formas de fazer análise com diferentes nuances e objetivos. O mais importante é estudar, ler os melhores livros relacionados à sua pesquisa. Se você vai analisar metáforas, por exemplo, procure o que há de mais consistente e atual sobre isso, na língua em que conseguir compreender. A mesma coisa vale para outros temas e categorias que possam interessar à sua pesquisa. Não deve haver limitações, afinal estamos falando de uma área multidisciplinar.

Então você não acha um pecado capital fazer análise do discurso crítica e eventualmente considerar um ou outro conceito da AD de linha francesa?

Essa proibição seria uma limitação terrível. Se você vai fazer uma tese especificamente sobre a obra de um autor, vai estudar exaustivamente o que ele disse. Mas, se você quer se aprofundar sobre um tema mais geral, precisa saber o que os diferentes autores estão dizendo, sem se limitar a uma determinada escola. A restrição a um grupo de autores é muito ruim, e vejo que ela ocorre às vezes no Brasil. Eu me sinto no direito de fazer esse comentário porque, na minha trajetória, enquanto estive na França, me permiti aprender com muitos autores de língua francesa, entre eles o Roland Barthes. Então, não podemos nos fechar. Se você vai trabalhar com antropologia, por exemplo, não pode deixar de estudar Lévi-Strauss, claro. No entanto, se vai fazer antropologia linguística, precisa considerar autores da Califórnia, nos Estados Unidos, que trabalham com isso. É preciso buscar os livros relevantes sobre o assunto que nos interessa, independentemente da origem ou filiação dos autores. Nos últimos anos, quando pesquisei sobre solidariedade no bojo dos movimentos sociais, busquei uma bibliografia internacional. Foi muito bom. E, sobre a minha obra, não me canso de dizer: não existe um método “van Dijk”. Não acho certo fazer uma pesquisa considerando apenas o que eu disse ou tenho a dizer. Primeiro, é preciso definir qual é o seu problema de pesquisa do ponto de vista científico. Aí você vai procurar as leituras mais relevantes sobre o tema. Não acho boa a ideia de fazer uma pesquisa “à la van Dijk”, usando só o meu trabalho. Também não acho bom considerar apenas uma única teoria na investigação. Isso é absurdo, na minha opinião. Não é científico.

O que você tem a dizer para as pessoas que consideram a análise do discurso crítica uma disciplina superficial?

As pessoas que falam isso não sabem o que estão dizendo. Os autores da ADC usam teorias e métodos muito detalhados. Eu poderia citar pelo menos vinte autores, começando por Ruth Wodak, que sabem muito sobre qualquer aspecto da linguística, inclusive os mais técnicos, e a isso somam seus conhecimentos em história, em psicologia cognitiva e em tantas outras áreas. Ou seja, a ADC não tem nada de superficial. E é moderna, não está focada na linguística francesa de 50 anos atrás. Trabalha sobre uma base linguística precisa, referenciada nas principais revistas científicas. É um estudo complexo, de natureza multidisciplinar, que tem método. As pessoas que fazem essa crítica não se dão ao trabalho de se aprofundar e conhecer os diversos autores que trabalham com ADC. Às vezes discordam, por exemplo, de um ponto específico trazido por Fairclough, que é um autor muito conhecido, e se acham no direito de fazer críticas generalizadas, sem conhecer toda a sua obra e sem chegar a ler algum dos outros 200 autores que fazem ADC. Isso não é legal.

Você acha que, diante do grande volume de conteúdos multimodais que circula entre nós, ainda é possível afirmar que a análise do discurso crítica é textualmente orientada?

Na verdade, é mais fácil que seja assim, porque análise multimodal é difícil (risos). Nem sempre você tem todos os dados à mão. Minha doutoranda Camila Cárdenas, professora na Universidade Austral do Chile, tem um trabalho de análise de discurso multimodal que é um caso de sucesso. Ela pesquisou, há poucos anos, memes e outras imagens que circularam no Facebook sobre os protestos estudantis no Chile. Deu bastante trabalho. E é assim, mesmo. Se você pesquisa na área da semântica, tem que ler muito sobre semântica. Se trabalha com retórica, a mesma coisa. Então, para trabalhar com multimodalidade, tem que ler coisas bem específicas sobre semiótica para que o resultado da pesquisa fique bom. A Camila leu muito sobre conteúdos multimodais e a sua tese ficou excelente.

Sobre o conceito de texto, você o considera na forma expandida, que contempla tanto a materialidade verbal quanto os elementos multimodais?

Este é um debate que temos desde os anos 70. Eu prefiro usar “discurso” para qualquer tipo de texto, escrito ou falado, multimodal ou não. E, nesse conceito de discurso, também levo em conta o tipo de interação: vejo se é uma conversa, uma troca de mensagens escritas, uma manifestação etc. O discurso tem muitas dimensões. Tem a dimensão puramente linguística, textual, mas tem também a multimodal, quando há presença de sons ou imagens. Tem os aspectos morfológicos, fonológicos, lexicais, semânticos, sintáticos, estilísticos, retóricos, prosódicos etc. Na escrita, por exemplo, há também a multimodalidade das letras. Alguns pesquisadores se dedicam a estudar a tipologia usada nos textos das manchetes dos jornais, por exemplo, para tentar identificar aspectos do discurso embutidos no tamanho, no formato e na cor das letras e palavras. Além de todas essas dimensões, há, claro, os aspectos cognitivos do discurso, como os sentidos, as implicações, as pressuposições e as metáforas, algo que você não pode ler diretamente no texto porque está ligado às representações mentais. Então, há muito o que pesquisar. O discurso é, de verdade, um objeto muito complexo. Você pode falar em discurso, em texto ou em interação. Estamos tratando de um conceito abrangente, geral. A única exigência é que este conceito sempre mantenha relação direta com uso da língua.

Na triangulação entre discurso, cognição e sociedade, você poderia falar um pouco sobre como se dá o estudo da ideologia?

A ideologia é algo que a gente não pode ver. Está na cabeça das pessoas, é completamente abstrata. Há quase 200 anos, Marx, Engels e tantos outros autores falam de ideologia, mas ninguém definiu exatamente a sua estrutura. A minha proposta é que a ideologia tem estrutura de natureza sociocognitiva que se manifesta de diferentes formas. São essas manifestações que precisam ser observadas, pois são o que pode ser visto. Ao falar de ideologia, precisamos falar concretamente sobre as atitudes das pessoas, sobre os conhecimentos de mundo que elas compartilham, sobre seus objetivos, sobre seus grupos de referência, sobre os tópicos de suas conversas, esse tipo de coisa. São muitas estruturas a serem analisadas. Estamos, então, falando de cognição social, ou seja, de representações mentais que correspondem às crenças, valores e comportamentos compartilhados pelas pessoas em seus grupos. É isso o que me interessa. Estou, neste momento, trabalhando em um artigo sobre a ideologia antirracista. Já escrevi muito sobre ideologia racista, mas sobre a antirracista ainda não. Então, como vou saber qual é essa ideologia? Qual o melhor caminho? Eu penso que analisar discursos é a melhor forma de, sistematicamente, recuperar as categorias que compõem uma ideologia.

Podemos chamar de categorias essas estruturas que compõem a ideologia?

Sim, são estruturas ou categorias dentro da ideologia. Então, ideologia sempre tem a ver com quem somos nós, com as coisas que a gente faz, com as nossas ações. Também com os objetivos que a gente tem, com as normas e valores que compartilhamos etc. E, claro, ideologia tem a ver com o nosso grupo. A que grupo pertencemos? Somos contra qual grupo? Isso tudo são categorias, estruturas, formas de manifestação da ideologia. Vamos usar o feminismo como exemplo. Você não consegue definir muito bem a ideologia feminista sem dizer que ela é contra o machismo. A mesma coisa em relação ao racismo praticado por pessoas brancas contra pessoas não brancas. Então, observar essa relação entre grupos é fundamental.

Poderia falar um pouco mais sobre a importância de observar as atitudes no estudo da ideologia?

Acho que estudar as atitudes das pessoas e dos grupos é mais produtivo que se preocupar em definir logo as ideologias. A briga e o debate ideológico se dão no nível das atitudes. Voltando ao exemplo do feminismo. A ideologia feminista é algo geral que pode ser aplicada em várias dimensões. Uma delas pode estar na relação das mulheres com o seu corpo, na forma como se vestem, como usam maquiagem e acessórios, esse tipo de coisa. Outra atitude das mulheres feministas está na forma como se posicionam em relação a temas como o aborto. E o debate sobre o aborto, por sua vez, revela a atitude de outros grupos na perspectiva religiosa, por exemplo, como o posicionamento proibitivo de católicos conservadores em relação ao assunto. Então, para identificar a ideologia de um grupo, eu preciso observar como as pessoas desse grupo se comportam em relação a temas como pena de morte, imigração, divórcio, matrimônio gay, aborto etc. É nesses momentos que acontece o debate ideológico na sociedade. As pessoas têm atitudes em relação a esses assuntos de várias perspectivas: feminista, machista, racista, antirracista, neoliberal, conservadora, progressista etc. Então é isso. A ideologia, na prática, produz atitudes. E essas atitudes estão relacionadas a modelos mentais. É isso que precisa ser analisado. Há muito tempo falo sobre os aspectos cognitivos relacionados à memória, responsáveis por consolidar as nossas representações mentais sobre o mundo. Várias camadas do cérebro participam desse processo. Mas isso é assunto da neuropsicologia. Não me atrevo a detalhar.

O que os seus estudos recentes sobre os discursos da extrema direita têm revelado em relação a atitudes e ideologias?

Bem, em primeiro lugar, acho que os discursos da extrema direita, quando buscam se aproximar do povo, estão, na verdade, buscando apenas o poder. Porque uma forma de conseguir poder é falar como se fosse do povo. É o populismo. Então, o populismo é, antes de qualquer coisa, uma estratégia discursiva. Mas não é recomendado definir a extrema direita como populista do ponto de vista ideológico. Esse grupo apenas usa a estratégia populista para chegar perto das pessoas, especialmente das mais pobres. É uma estratégia que pode ser utilizada por qualquer campo ideológico. Tem o socialismo fake, por exemplo, que discursa em nome do povo mas não tem nada de socialista no sentido de se preocupar com os direitos sociais. Então, na verdade, é preciso falar sobre as combinações ideológicas que se manifestam concretamente no discurso e nas atitudes. No caso da extrema direita, tem um pouco de machismo, de neoliberalismo, de catolicismo, entre outras coisas. É a combinação de ideologias como essas que produz as atitudes da extrema direita.

Em vez de falar sobre o populismo da extrema direita, precisamos falar sobre as suas ideologias, sobre o que aconteceu ou tem acontecido em países como o Brasil, Argentina, Chile, Espanha e Holanda, entre outros. São combinações de ideologias reacionárias contra os direitos das pessoas negras, das mulheres, das pessoas mais pobres, dos imigrantes etc. Então, em vez de falar sobre essa coisa geral que é o populismo, é preciso deixar claro: estamos falando de partido racista, de partido antifeminista, de partido neoliberal, de partido antissocialista e tal e tal. Assim fica mais preciso. E, nesse ponto, discordo de Cas Mudde, cientista político holandês que estuda a extrema direita dos Estados Unidos e da Europa. Ele define o populismo como um tipo de ideologia desse grupo. Eu acho que não é. É só uma estratégia discursiva. Chamar o populismo de ideologia acaba mascarando as reais ideologias da extrema direita, que são aquelas alinhadas ao neoliberalismo, aos privilégios, ao conservadorismo e, muitas vezes, ao autoritarismo e ao desprezo pelas instituições.

A intensificação da polarização política parece ser um fenômeno mundial que se reflete, entre outras tantas dimensões, na escolha das palavras utilizadas pelos grupos que se opõem mutuamente. No Brasil, o discurso identitário afirmativo, que dá visibilidade aos grupos minorizados e corrige preconceitos de linguagem, provoca muita resistência entre as pessoas conservadoras, especialmente as da extrema direita. No Congresso Nacional, por exemplo, a palavra “gênero” tem sido frequentemente substituída por “sexo” nos textos dos projetos de lei em tramitação, numa tentativa de considerar apenas o sexo biológico das pessoas. O mesmo acontece com “etnia”. Muitos parlamentares rejeitam o termo e preferem utilizar somente a palavra “raça”, pois consideram as duas expressões como sinônimos. Você teria algo a comentar sobre isso?

Sim. Vejo que há um grande retrocesso na escolha das palavras. A extrema direita é contra qualquer movimento progressista na sociedade. E seus valores reacionários se refletem no uso da língua e na resistência a mudanças. Vejo, por exemplo, que muitos criticam a existência de cotas raciais para ingresso em universidades públicas, alegando que é difícil definir critérios para dizer se uma pessoa é preta ou branca. Quando ouço esse tipo de coisa, tenho vontade de falar: é simples, pergunte para a polícia. Ela sabe muito bem. Pesado isso, não é?

Bastante. No fim de 2023, o presidente Lula descreveu Flávio Dino, então ministro da Justiça no Brasil e indicado para uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal, como alguém que poderia ser um “comunista do bem”. Você acha problemático esse tipo de descrição?

Eu entendi perfeitamente o que o presidente Lula quis dizer com “comunista” e “do bem”. Mas a gente sabe que, em tempos de grande polarização política, talvez seja necessário ter mais cuidado com as palavras, porque tudo pode ser usado nas redes sociais de uma maneira exagerada e prejudicial. No Brasil, sabemos que, especialmente desde a ditadura militar, a palavra “comunista” tem uma carga muito pesada, frequentemente associada, de forma equivocada, a pessoas “ruins”, inimigas. Muita gente deixou de votar no Lula em 2022 porque achava que ele era um “comunista”. Então, ele não deve esquecer que certas palavras acionam significados associados a preconceitos e generalizações que podem afastar as pessoas e acirrar a polarização. Algumas palavras têm implicaturas políticas importantes. Talvez tivesse sido mais prudente, nesse caso, descrever o ministro como uma pessoa que tem um bom senso de justiça social. As expressões “pessoa de bem” ou “pessoa do bem” também têm as suas implicações no contexto da polarização política. Então, é preciso cuidado na escolha das palavras. As redes sociais estão aí para amplificar sem critério ou razoabilidade tudo o que dizemos. E não podemos esquecer que os jornais e a televisão também sempre fizeram todo tipo de manipulação. No Brasil, é só lembrar o que aconteceu na época do impeachment de Dilma Rousseff. Ainda em 2016, escrevi um artigo sobre isso.

Na sua opinião, as redes sociais digitais trouxeram mais prejuízos que vantagens?

Eu acho que não seria difícil demonstrar que o crescimento da extrema direita, com seus discursos de ódio e intolerância, ocorreu de forma paralela e simultânea ao desenvolvimento das redes sociais. Eu sou muito crítico das redes sociais. Acho que deveria começar tudo de novo, de uma outra forma. Rede social, sim, mas com algum tipo de regulação que impeça qualquer idiota de falar idiotices para milhões de pessoas. Se você quer produzir um alimento e colocá-lo à disposição das pessoas, você pode fazer qualquer coisa? Claro que não. Tem que obedecer a uma série de regras, não adicionar este ou aquele produto, evitar agrotóxicos, observar a higiene. Então, por que com discursos é assim tão solto? Estou falando sobre acabar com a liberdade de expressão? Não. Estou falando sobre responsabilidade. Nem os jornais, as revistas ou a TV têm essa frouxidão toda. Eles têm regras a serem respeitadas. Então, as plataformas de rede social também precisam ser responsabilizadas pela maneira como permitem a divulgação de conteúdos mentirosos ou prejudiciais à democracia em geral. O mesmo vale para as ferramentas de inteligência artificial. Só vou acreditar que elas funcionam quando forem capazes de fazer o mínimo de análise do discurso e identificar se um texto é racista ou sexista, se tem preconceitos e se fala mentiras. É preciso haver regras e critérios claros para evitar que conteúdos assim cheguem a milhões de pessoas, em poucos cliques, por meio das plataformas digitais.

O que você acha que pode ser feito para restringir a circulação desses tipos de discurso?

Precisamos conversar sobre o acesso ao discurso público produzido por pessoas e organizações. Assim como uma comida com veneno não pode chegar a milhões de pessoas, o mesmo cuidado deve haver com o discurso público. Ambos podem matar. Não é possível atribuir a fofocas, por exemplo, o mesmo valor que há nas pesquisas científicas. Nós conhecemos o estrago trazido pela desinformação na época da Covid-19, quando muita gente deixou de se vacinar e de se proteger em um cenário de pandemia. O caso da intolerância com imigrantes na Europa é outro exemplo. Se, nas redes sociais, você só recebe conteúdos que mostram os imigrantes como responsáveis por todos os problemas sociais do seu país, é claro que você vai exacerbar o seu sentimento de nacionalismo e xenofobia. O conceito de liberdade de expressão tem sido mal utilizado, muitas vezes de forma intencional. É uma noção desenvolvida no século XVIII, que tem a ver com resistência aos abusos cometidos pelos reis, pelo Estado. Então, a liberdade de expressão deve existir contra o abuso de poder, e não para se cometer abuso de poder. Se uma empresa consegue falar com milhões e milhões de pessoas em todo o mundo, isso é uma forma de poder, não é mesmo? Então, tem que haver alguma forma de controle que seja democrática e impeça abusos relacionados à veiculação de mentiras e de discurso de ódio. Não se trata de censura ou de proibir críticas ao Governo, por exemplo. Isso não seria democrático e eu jamais defenderia esse tipo de coisa. Mas penso que é preciso encontrar formas de coibir a propagação da desinformação, do preconceito e da intolerância. Nesse sentido, acho que uma providência importante seria vedar o anonimato na produção e veiculação de conteúdos pelas redes sociais. Sei que, no Brasil, está em discussão um projeto de lei que pretende combater as fake news e regulamentar o funcionamento das plataformas digitais. Eu desejo, sinceramente, que vocês consigam chegar a um modelo justo e eficiente. Vai ser muito bom para a democracia e poderá servir de exemplo para outros países. Muitos danos já ocorreram no Brasil e em várias partes do mundo. Alguma coisa precisa ser feita. É um assunto muito sério, realmente.

Teun, muito obrigada por esta entrevista.
Obrigado pelo convite.


Referência:
https://periodicos.unb.br/index.php/les/article/view/53817/40383
Cadernos de Linguagem e Sociedade, Brasília, v. 25, n. 1, p. 192-205, jan./jun. 2024.
Chamada de trabalhos em fluxo contínuo. https://periodicos.unb.br/index.php/les/about/submission

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