Uma famosa frase atribuída a Heródoto afirma que o Egito é uma dádiva, um presente do rio Nilo. Presente é algo que recebemos sem dar nada em troca, algo que não tem custo. Provavelmente o historiador grego, impressionado pelas pirâmides e demais monumentos construídos milênios antes da época em que viveu, pretendeu minimizar o papel dos egípcios, alegando que tudo que fizeram se deveu a um acidente geográfico, à presença do rio redentor. Enquanto isso, segundo ele, os gregos tiveram que se esforçar muito para conseguir criar a sua civilização. Heródoto, com sua frase, “esquecia” que sem o trabalho duro dos camponeses e dos servos, sem a capacidade administrativa e os conhecimentos matemáticos dos escribas e dos demais funcionários do faraó, o rio não teria sido domado e a civilização egípcia não teria existido. Não era o rio que plantava e colhia, ele rio não carregava pedras para as construções, o Nilo não dominava a técnica de embalsamar e conservar os corpos por séculos e até milênios.
Quero deixar claro que não existe, nem jamais existiu, ao longo da Historia, sociedade alguma que não tenha feito um grande esforço para atingir seus objetivos, com Nilo ou sem ele. De resto, é importante registrar que seres humanos tomados individualmente não são nada, eles só constroem alguma coisa quando se organizam em sociedade. Afinal, e não me canso de repetir, o ser humano é o único dentre todos os animais que produz, organiza, armazena e consome cultura. É a cultura que nos diferencia de todos os demais animais com quem partilhamos este planeta.
Estabelecemos, assim, duas bases para compreendermos a trajetória dos seres humanos: a primeira é que não existe uma História sem uma sociedade organizada. Indivíduos isolados não fazem História. Bichos podem ser bonitinhos, mas não fazem História. Melhor dizendo, animais e plantas (e pedras) podem fazer História Natural, nunca História Social. E é desta que falamos quando nos referimos a acontecimentos históricos, ao processo histórico, das conquistas civilizatórias. A segunda questão é igualmente importante: se não tivéssemos sido (e se não formos) capazes de produzir cultura teríamos deixado de lado nossa faceta mais humana. Se não formos capazes de transmitir cultura (e não esqueçamos, a ciência faz parte da produção cultural de uma sociedade) ela teria que ser recriada, do zero, a cada geração. Aí entram em cena o professor e o livro, que têm sido os mais eficientes veículos utilizados pela sociedade para transmitir o patrimônio cultural da humanidade de uma geração para outra.
Ser professor é uma honra e uma enorme responsabilidade. O professor deve ser reconhecido, mas precisa estar preparado. Se, de um lado, é justo que goze de reconhecimento social (o que não acontece muito), receba salário adequado (o que não acontece quase nunca) e tenha condições de trabalho dignas (sem riscos, sem ameaças e espiões gravando suas aulas), por outro tem que fazer jus à sua função, preparando-se adequadamente, buscando atualizar-se e não transformando a sala de aula em palanque para pregação política, ou religiosa. Utilizar-se da ascendência que o professor tem sobre os alunos para impingir seus dogmas religiosos ou políticos é uma covardia, uma espécie de assédio. Lembro-me até hoje da insistência com que um professor de ginásio procurava me converter às suas convicções religiosas, sendo que sua matéria não tinha nada a ver com rezas, templos religiosos, céu e inferno. Da mesma forma sabemos que há professores que se permitem sugerir candidatos para serem votados por alunos e familiares, como se fosse em busca de orientação eleitoral que os alunos estivessem na escola.
Professores e escola devem ter um compromisso com a República, como ocorre atualmente na França, em que a laicidade é, não apenas recomendada, mas exigida. O governo de Macron está lutando pelas conquistas da revolução de 1789, que acabou com a relação incestuosa entre poder político e religião. Relação esta ainda, espantosamente, vista como normal até em estados supostamente democráticos, que permitem a certas religiões imiscuir-se em assuntos que não têm a ver com questões do espírito, mas a coisas relativas à área médica, como a melhor forma de cuidar do corpo da mulher… E nem estamos falando de países em que o Estado submete-se a uma religião oficial, mas de repúblicas (como a nossa) que se orgulham de serem democráticas e laicas.
Pelo bem da República, mas também das próprias religiões, não seria melhor cada uma cuidar de sua área e não tentar se imiscuir onde não lhe deveria caber voz e voto?
Por Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto.