ESCREVER. O que é esse ofício? O poeta Carlos Drummond de Andrade arrisca uma definição, que é genial: ‘Escrever é cortar palavras’. Contraditório? Parece. Afinal, quando abrimos um livro, nada do que vemos naquelas centenas de páginas impressas nos faz pensar que o autor fez algo parecido com isso. Mas, acredite, foi exatamente o que aconteceu. E aí, tudo é uma questão de quando se faz o que no trabalho de criar e escrever. Porque, assim como na gravidez, tudo aqui é processo. O parto não acontece antes de passar pelo terceiro mês de gestação.
O melhor é o melhor. – Walter Clark
A primeira etapa, na produção da mensagem escrita, consiste em relacionar tudo o que deve entrar naquele texto. Mas faça isso da forma mais livre e aleatória possível, sem quebrar ou impedir o fluxo de ideias. Isso seria fatal para a carreira de escritor.
O primeiro resultado vai parecer uma bagunça, algo que lembra o mapa do inferno? Possivelmente. E isso acontece, inclusive, com escritores que receberam prêmios importantes na literatura mundial. Normal. Agora você é um artista. E quantos artistas você conhece que são ‘certinhos’, ‘organizadinhos’ nessa etapa do trabalho? Por não serem assim rigorosos na hora de pensar, conseguem produzir resultados originais. Quando você pergunta a um ‘certinho’ qual é a metade de oito, ele responde quatro, e isso é absolutamente convencional, sem graça. O artista, ao contrário, imagina o algarismo, corta-o ao meio e sugere que algumas respostas são possíveis para essa pergunta: ‘3’, ‘E’, ‘M’, ‘W’. Ao imaginar a palavra escrita, por extenso, propõe que duas respostas são possíveis: ‘oi’ e ‘to’. Por favor, seja louco. Ao menos agora.
Depois você recupera o ‘bom senso’, olha para essa lista e dá uma ordem de prioridade a todas as palavras relacionadas. Qual dessas informações é essencial, a mais importante de todas, a que deve aparecer logo no início do texto, para que o leitor não deixe de ler em hipótese nenhuma? Se essa palavra, a número 1, não se transformar no título do trabalho, ela certamente será o seu primeiro parágrafo. Ao escolher a primeira em ordem de importância, fica fácil determinar a segunda, a terceira, e assim por diante, até a última, aquela que, por motivo de espaço, ou por ser menos relevante, pode até ficar de fora. Nada difícil de fazer, não é mesmo?
Agora, comece a escrever. Simplesmente escreva. Se escrever é falar no papel, escreva como se estivesse falando com alguém. Sem editar. Sem corrigir. Não sabe por onde começar? Escreva uma palavra, uma palavra qualquer num papel qualquer. Olhe um pouquinho para ela, como num flerte [que palavra mais antiga!]. Ouça-a. Ela vai dizer alguma coisa. Vai ‘pedir’ a segunda. Escreva. Juntas, as duas pedirão a terceira. Escreva. E vá em frente, até que a primeira versão do texto, ainda tosca e cheia de buracos, ficará pronta. A propósito disso, Fernando Sabino disse que às vezes, sem saber o que escrever, escrevia como principiante. Colocava a primeira frase no papel. Ela mesma sugeria a segunda. E ia escrevendo, até o final, quando ficava sabendo sobre o que escreveria.
Pronto, hora de editar. Agora, e somente agora, chame o Drummond. Leia. Deixe de lado o artista, que você viveu no início, e assuma o papel de juiz. Seja criterioso. Exija um pouco mais em termos de qualidade, como um Walter Clark, para quem ‘O melhor é o melhor’. Releia. Corte palavras. Inverta a ordem desse parágrafo. Ou, depois de escrever como artista, leia em voz alta, com ouvidos de maestro, atento a cada nota que, por estar fora do lugar, possa comprometer o conjunto e a harmonia da obra. Se isso o conforta, lembre-se de que Ernest Hemingway, jornalista e Prêmio Nobel de Literatura, escreveu 39 vezes, isso mesmo, 39 vezes, o último capítulo de um dos seus livros mais importantes, Adeus às armas.
De fato, escrever é cortar palavras, como disse o Drummond. Mas somente na hora da edição. E a edição só acontece no final. Escrever e editar ao mesmo tempo é matar a obra que não teve chance de nascer. É provocar aborto, recusando a ideia de que criar e escrever é processo. Quando essas etapas básicas são respeitadas, todos podem escrever. Inclusive quem sempre acreditou que não nasceu para isso. Afinal, se você é capaz de falar, é capaz de escrever. Com a vantagem de que, no caso da escrita, você pode fazer 38 experiências antes de concluir o trabalho e entregá-lo para a publicação.
RUBENS MARCHIONI é palestrante, publicitário, jornalista e escritor. Autor de Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto.
[email protected] – http://rubensmarchioni.wordpress.com