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Equívocos inocentes? Nem tanto – Jaime Pinsky

Ninguém sabe quem inventou o filé à francesa, aquele acompanhado por batatas palito, cubos de presunto e ervilha, mas seguramente não foi um francês: nenhum restaurante francês ostenta esse bife. Da mesma forma desista de pedir em Havana um filé à cubana, com frutas tropicais à milanesa e ovo frito, prato ainda muito popular nos restaurantes do interior paulista. Talvez com o incremento de turismo na ilha algum brasileiro decida colocar o prato nos cardápios de lá, mas por enquanto… Também fiquei surpreso ao ver que o espaguete à bolonhesa, que frequenta com assiduidade as mesas domingueiras, não tem esse nome em Bolonha, mesmo porque nem sequer é feito com espaguete, e sim com o fettuccine e se chama, modestamente, “al ragu”. E pedir para comer um americano nos Estados Unidos pode parecer aos olhos deles duma atividade antropófaga (ou vulgarmente sexual), mas nunca seria interpretado como devorar um sanduiche de  presunto e queijo derretidos, acrescidos de ovo frito e uma folha de alface, como sabe por aqui qualquer chapeiro de padaria.

Se em comidas a confusão pode ser inócua, o mesmo não se pode dizer de outros equívocos disseminados, às vezes, sem má intenção (e às vezes, sem tanta inocência). Leio, frequentemente, até em manuais de História, frases como “Cinco ou seis milhões de negros vieram ao Brasil como escravos”. Ora, se escravos, não “vieram”. Foram trazidos. Não se trata de uma diferença puramente semântica, mas verdadeiramente epistemológica. Ninguém “vem” para ser escravo. Negros não vieram da África, foram escravizados e trazidos à sua revelia. Da mesma forma criou-se o verbo “judiar” no sentido de maltratar, com referência ao sofrimento imposto a Jesus durante seu calvário. Ora, ele não foi crucificado pelos judeus, que sequer praticavam a crucificação. Ela era praxe romana para punir adversários do poder imperial. Não era incomum até crucificar gente de ponta cabeça, como atesta farta documentação a respeito. Contudo, não existe o termo “romanizar”, como sinônimo de maltratar, e sim “judiar”. Claro que a História explica isso. De ideologia de dominados o cristianismo, bem modificado com relação às suas raízes, conquista Roma e faz dela a sua sede – onde até hoje se localiza o Vaticano. Como então utilizar um verbo que pudesse ofender os romanos?

Termos e expressões preconceituosas com relação a negros, mulheres, imigrantes de várias origens, migrantes nordestinos, mulheres, homossexuais, até mesmo contra obesos, ou “baixinhos”  são usados no dia a dia (ver o livro “12 faces do preconceito”) e muitas vezes nem sequer notamos a origem da palavra que denigrem as minorias (ops, “denegrir” é uma delas…). Concluir uma tarefa com cuidado e perfeição e dizer que é “trabalho de branco” não passa de uma forma de “mostrar” que o trabalho feito por negros, ou de uma forma negra (o que quer que isto possa significar) é um trabalho porco, mal feito. Preconceito puro.

Os “equívocos” nem sempre são tão inocentes, como denominar erradamente um filé ou uma massa. Quando dizemos “mulher ao volante é perigo constante” estamos fazendo um conjunto de afirmações com objetivos claros: dizemos que mulheres, pelo simples fato de pertencerem ao sexo feminino, são mais incompetentes do que os homens para dirigir, como se o falo masculino fosse um fator positivo no desenvolvimento da capacidade de conduzir um veiculo automotor. Na verdade, digo mais: que, pelo fato de ser homem, sou superior a ela; e ela, pelo fato de ser mulher é inferior, não só a mim, o emissor da brilhante frase, mas de todos os homens do planeta. Claro que o argumento não resiste a nenhuma análise, mas continua sendo usado como forma de dominação. Estabelecer relação de superioridade diante do outro é uma maneira de ocupar espaço, empoderar-se. Não se esqueça que a ideologia nazista, que dominou a Alemanha durante mais de uma década,  garantia que o mais idiota dos loiros “arianos” era superior a todos os judeus; mesmo a Albert Einstein, um dos maiores gênios da história da humanidade, porém judeu…

A ideologia cegou muita gente de um dos países mais cultos da Europa. Ter os olhos bem abertos é uma forma de manter a lucidez, de não se deixar enganar.  Faz parte de uma sociedade democrática lutar contra o preconceito e a discriminação. Mesmo que continue apreciando o filé à francesa.


Por Jaime Pinsky, historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros.

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