Cientistas e clínicos que trabalham com substâncias psicotrópicas estão preocupados com a forma como são utilizadas, incluindo a cannabis
Há anos, o consumo de maconha nos Estados Unidos tem aumentado. Após atingir seu ponto mais baixo em 1992, o uso de cannabis cresceu lentamente até 2008, quando os aumentos se tornaram mais substanciais. Esse crescimento está relacionado ao início da legalização da maconha medicinal no país e às mudanças culturais e de atitude dos norte-americanos, incluindo a crença de que a maconha não prejudica a saúde.
Mais do que apenas saber se as pessoas usam drogas, os cientistas e clínicos que trabalham com substâncias psicotrópicas estão preocupados com a forma como elas são utilizadas, um aspecto que chamamos de “padrões de consumo”. Um estudo recém-publicado na revista científica Addiction analisou esse fator no utilização total da cannabis nos EUA desde 1979.
Os achados são bastante relevantes, particularmente no que diz respeito ao uso mais intenso da substância. Em 30 anos (de 1992 a 2022), houve um aumento de 15 vezes na taxa per capita de uso diário ou quase diário da maconha. Dessa forma, pela primeira vez, o número de usuários frequentes de maconha no país (17,7 milhões de pessoas) superou o de consumidores assíduos de bebidas alcoólicas (14,7 milhões de pessoas).
Em 2022, o consumidor médio de álcool relatou ter bebido em 4 a 5 dias no mês anterior, enquanto o usuário médio de maconha relatou ter usado a substância em 15 a 16 dias no mesmo período. Ou seja, houve uma mudança importante no padrão de uso da maconha ao longo dos anos.
O perigo da frequência
O consumo de cannabis, que antes era mais ocasional e geralmente associado a diversão nos finais de semana, mudou radicalmente. Agora, o uso de maconha se assemelha mais ao de tabaco. Atualmente, mais de um terço (cerca de 40%) dos usuários de maconha usam a substância diariamente ou quase diariamente.
Os otimistas acreditavam (e ainda acreditam) que o uso de maconha seria menos nocivo que o de álcool e que a erva (e seus derivados) substituiriam o consumo de cerveja, vinho, destilados e afins. No entanto, os dados atuais nos EUA mostram que a queda no consumo de álcool foi pequena.
O estudo da revista Addiction aponta que, entre 2008 e 2022, a prevalência do uso de álcool de alta frequência caiu 7%, enquanto a prevalência correspondente do uso de maconha cresceu 269%. Ou seja, o aumento do uso de maconha, especialmente do tipo que pode causar mais danos (uso frequente de maconha de alta potência), só cresce. Problemas relacionados ao consumo de maconha com essas características incluem uma maior probabilidade de desenvolver dependência e ocorrência de psicose relacionada ao consumo, um quadro de alto risco.
É importante apontar que, comparado ao consumo total de bebidas alcoólicas, o uso de maconha ainda é menos prevalente. Ou seja, ainda se consome muito mais álcool do que maconha. No entanto, devemos estar atentos. Como mostra a experiência dos EUA, a existência de uma indústria legalizada com características de exploração commercial, que altera os padrões de consumo e os produtos vendidos. Uma vez que se cria uma indústria multibilionária, essa mudança se torna irreversível.
Fonte: Revista Veja
Ilana Pinsky é psicóloga clínica e pesquisadora ligada à Fiocruz. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto) e foi consultora da OMS e professora da Unifesp e da Universidade Colúmbia (EUA)