POR THAÍS NICOLETI, para Folha de S.Paulo
A ida do debate sobre o Acordo Ortográfico ao Senado, depois de implantado, reacendeu as discussões sobre a ortografia no país. As críticas propriamente ditas, porém, têm sido poucas. O hífen de “co-herdeiro” e cognatos, eliminado pela ABL no Vocabulário brasileiro, parece coisa superada. Das célebres exceções (arco-da-velha, pé-de-meia, água-de-colônia, cor-de-rosa, mais-que-perfeito) pouco já se fala.
Restaram, é verdade, críticas ao fato de o Acordo não ter resolvido o dilema, de resto talvez insolúvel, do prefixo “pré”, tônico ou átono, separado por hífen ou justaposto sem hífen.
À parte isso, existe a já conhecida proposta ortográfica do professor Ernani Pimentel, que tem, pelo menos, o mérito de ser uma proposta. Mais que levantar poeira, o professor propõe aquilo que lhe parece ser a panaceia para os males do ensino de língua em sua fase inicial ou para as dificuldades dos professores diante das questões de concurso público, já que, pelo jeito, as bancas examinadoras insistem em aferir a competência linguística dos candidatos por meio do conhecimento deles acerca da convenção ortográfica.
Na opinião do professor Pimentel, a ortografia deve procurar espelhar ao máximo a pronúncia das palavras. O leigo não demora a empolgar-se com a ideia, que chega a ser sedutora à primeira vista. A quantidade de problemas que o raciocínio um tanto simplista oculta, porém, desencoraja qualquer verdadeiro especialista em língua a abraçar a causa.
Temos aqui no blog procurado conversar com pesquisadores que conhecem os problemas profundamente e todos eles têm trazido grandes contribuições a esse debate.
Desta vez, o entrevistado foi o professor Mário Eduardo Viaro, livre-docente de Língua Portuguesa pelo Departamento de Línguas Clássicas e Vernáculas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP, ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa, Viaro tem-se dedicado especialmente ao estudo da etimologia das palavras. É autor doManual de etimologia, da editora Globo, e do volume Etimologia, da editora Contexto, no qual propõe pensar a etimologia cientificamente. Além de colunista da revista Língua, Viaro é o responsável pelo suporte etimológico do Beco das Palavras, espaço lúdico do Museu da Língua Portuguesa, no qual os visitantes podem constituir palavras com base em seus elementos de composição.
O professor Viaro, sempre ponderado em suas reflexões, lamenta o fato de ainda haver professores que não veem a importância do estudo dessa disciplina ou que acham que ninguém mais se dedica a ela. Segundo ele, “se ninguém estuda, deveria estudar”. E vai além: “O abandono da erudição linguística pelo ensino moderno, alicerçado pelos valores imediatistas da atualidade, nos prende num presente sem vínculos com nosso passado e com nosso futuro”.
Sempre atento ao risco do fascínio exercido pela pseudoetimologia, alerta sobre a necessidade de estudar cientificamente o tema: “A etimologia científica está distante da pseudoetimologia tanto quanto a astronomia está da astrologia”.
Para Mário Eduardo Viaro, não é a ortografia o grande vilão do ensino da língua materna. Na sua opinião, “o problema é mais profundo: deve-se a algum tipo de crise moderna do saber, às condições de ensino e ao modo como é conduzido”.
Conversar com Viaro, como ler seus livros, é um convite ao mundo do saber. Como faz questão de dizer, “ao contrário do que se prega, ser erudito nos torna mais humanos e mais tolerantes, menos vinculados às óbvias necessidades da nossa existência, que podem parecer prementes, mas são apenas o que são: necessidades”.
Leia a seguir a entrevista com Mário Eduardo Viaro:
Thaís Nicoleti – Como sabemos, o Acordo Ortográfico de 1990 tornou-se tema de debate no Senado. Seus críticos têm afirmado que as mudanças ortográficas advindas dele são muito difíceis de aprender, pois, além de desnecessárias, são incoerentes. Um deles, o prof. Ernani Pimentel, apresentou uma proposta revolucionária, segundo a qual todo o sistema ortográfico do português seria alterado, a fim de que a grafia das palavras espelhasse ao máximo a sua pronúncia para facilitar o aprendizado. O senhor também vê esse grau de dificuldade de apreensão das mudanças propostas pelo Acordo, bem como incoerências?
Mário Eduardo Viaro – Toda ortografia de qualquer língua com algum tipo de tradição histórica é complexa. Mesmo o italiano, que abandonou a letra H no Renascimento, utiliza-a em dígrafos CH e GH e na conjugação do verbo “ter”, que tem a mesma origem do nosso verbo “haver”. A ideia revolucionária de começarmos do zero causa muitos problemas. Foi assim quando a língua turca mudou de alfabeto da noite para o dia no começo do século XX. Mudanças desse tipo são traumáticas não só para adultos que têm hábitos consolidados, mas para crianças que estão no processo de alfabetização ou de aquisição de vocabulário. Nenhuma língua natural é coerente stricto sensu, porque as regras que a compõem são heranças de séculos e, portanto, sujeitas a preferências distintas em diferentes épocas. As exceções são normais. Apenas poderíamos esperar coerência de uma língua artificial criada, como o esperanto. Mesmo assim, abundam os casos de incoerência nessa língua, pois, quando chegamos a um detalhamento maior, vemos que está longe de ser uma língua lógica, no sentido filosófico. Quanto à falta de necessidade, discordo. Os países que compõem a lusofonia necessitavam de padronização para a língua escrita, isto é, para a sua ortografia (e não, obviamente, para o seu léxico, para as suas preferências morfológicas e sintáticas). Em meio à consolidação desse processo surge essa proposta, mas o perigo é que cada um pode propor como bem quiser “soluções melhores” e isso, se não for bem administrado, pode gerar o caos.
TN – Houve quem criticasse o fato de a Comissão de Lexicografia e Lexicologia da ABL ter feito uma Nota Explicativa sobre o Acordo composta de 15 itens. Considerou-se que esses 15 itens, em que se explicam critérios, é a prova cabal de que o trabalho foi malfeito, apressado. O senhor concorda com isso?
MEV – Não acho de modo algum que se trata de um trabalho malfeito e desorganizado. Uma coisa é idealizar uma reforma, outra é a sua implementação. As próprias soluções revolucionárias teriam que passar necessariamente por esse processo. Essa Nota Explicativa, salvo engano, tentou preservar o Acordo e adicionar coerência a algumas regras, que poderiam entrar em conflito. A coerência também é o que norteia o discurso das propostas mais arrojadas. Por exemplo, a Nota assinala que a regra que abolia o acento circunflexo de ôo (atualmente voo, perdoo sem o circunflexo) entrava em conflito com a regra das paroxítonas terminadas em –n (que deviam ser acentuadas graficamente) em palavras como herôon. O estudo de casos particulares é inevitável quando trabalhamos com um número muito grande de palavras, como o VOLP. Daí até concluirmos que é preciso fazermos uma reforma radical na ortografia há um salto imenso. Eliminamos todos os acentos e retiramos o H, que faremos então com a terceira pessoa do verbo “haver”, que se tornará a, como a preposição e o artigo? Caberia aí uma exceção. Isso é fácil de perceber agora, mas, quando nos deparamos com centenas de milhares de palavras, surgem muitos problemas que não se esperavam no nível teórico de quem lançou a ideia.
TN – A proposta do sr. Ernani Pimentel, de natureza fonética ou fonológica (o senhor pode explicar a diferença aos nossos leitores), segundo ele, simplificaria a ortografia do idioma, tornando-a “lógica” e acessível a todos. O senhor considera viável adotar uma escrita fonética ou fonológica?
MEV – A única escrita fonética que existe é a do Alfabeto Fonético Internacional. Usar uma escrita puramente fonética seria um absurdo, pois significaria representarmos toda a variação diatópica, diamésica, diastrática de uma língua. Nenhuma língua de cultura conseguiria sobreviver. A proposta do sr. Pimentel é fonológica, de modo que não pretende representar sons, mas fonemas, que são unidades abstratas e mentais. Numa escrita fonética, os vários sons que chamamos de r numa palavra como “português” (segundo a pronúncia caipira, carioca, nordestina) teriam de ter representações distintas para o mesmo fonema. Escritas com pretensão fonológica já foram implementadas, como ocorreu com o italiano, mas, mesmo assim, privilegiaram-se alguns dialetos. Nossa escrita atual é parcialmente fonológica. Não fazemos distinções importantes como a diferença entre os dois sons – aberto e fechado – da vogal E e da vogal O. Isso parecia imprescindível no séc. XVI para o gramático João de Barros, mas ninguém, salvo ele mesmo, usou essa distinção gráfica. Mesmo com apoio do governo, às vezes uma mudança radical não emplaca. O imperador Cláudio inventou três letras novas para o alfabeto latino, que só foram usadas durante seu governo. Na verdade, quando se fala de tradição em escrita, usamos a palavra no seu sentido etimológico de “transmissão consuetudinária”. Não vemos QE em vez de QUE nas línguas europeias, exceto no albanês (ou em transliterações de línguas como o hebraico ou o árabe). A tradição do Q seguido de U é longa demais para ser substituída: a meu ver seria menos radical usar o K, que também era usado pelos romanos em pouquíssimas palavras e é erroneamente associado a alfabetos germânicos.
TN – Confrontado com o argumento da importância de preservar a informação etimológica das palavras, o sr. Pimentel afirma que hoje não se estuda mais etimologia, que ninguém sabe a origem das palavras. Além disso, ele diz o seguinte: “A nossa etimologia é arcaica, precisamos atualizá-la”. Como o senhor, que é conhecido por seus trabalhos na área de etimologia, vê essas afirmações?
MEV – A etimologia é um estudo científico tanto quanto a lexicologia, a morfologia e a sintaxe. De fato, a etimologia herdada pelo intenso desenvolvimento de pesquisas linguísticas do século XIX acabou sendo abandonada após as duas guerras mundiais a favor de um estudo de viés sincrônico e estruturalista, embora a pesquisa etimológica seja ininterrupta quando pensamos nos estudos do indo-europeu. Uma retomada da necessidade dos estudos etimológicos se viu apenas por volta da década de 90 do século passado. E, no caso do português, a etimologia é importantíssima, pois o português é a única língua europeia sem um dicionário etimológico à altura. No Brasil, salvo Antônio Geraldo Cunha e o dicionário Houaiss, ninguém trabalhou seriamente com etimologia e, apesar de terem feito muito, há muitíssimo ainda por ser feito. Nós mesmos tentamos recuperá-la agora, com a fundação do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa (NEHiLP). Há dez anos trabalho com a divulgação da etimologia, tanto no Beco das Palavras (Museu da Língua Portuguesa) quanto na minha coluna na revista Língua Portuguesa. Portanto, obviamente não concordo com essa frase que, a bem dizer, nem faz sentido. A escrita de base etimológica é algo muito diferente da etimologia. Iniciada em português de uma forma sistemática por Duarte Nunes de Leão, a chamada escrita etimológica propõe rememorar as grafias das línguas de origem (basicamente o grego e o latim) pelos famosos Y, PH, TH e CH (com som de “qu” ). Pela escrita etimológica, em vez de “asma”, escreveríamos “asthma”, em vez de “cristão” escreveríamos “christão” e, em vez de “fotografia”, escreveríamos “photographia”. Ninguém, que eu saiba, retoma a proposta de uma escrita etimológica. No português, o que temos é uma escrita metade fonológica, metade etimológica, pois sobrevivem o H mudo e as várias leituras do X. Mas a diferença entre SS e Ç não é puramente etimológica. Há ainda hoje provavelmente pessoas no norte de Portugal que distinguem esses dois sons, ou seja, tratam-nos como dois fonemas. O primeiro é ápico-alveolar, semelhante ao S do espanhol europeu, e o segundo, dorso-alveolar, semelhante ao nosso S. Isso foi atestado por Leite de Vasconcelos nos seus Opúsculos, no início do século XX. Também naquela mesma região, são (ou eram) dois fonemas distintos o CH e o X: o primeiro grafema nessas comunidades se pronuncia(va) como o CH espanhol e o segundo, como o nosso X. Em suma, essas comunidades fazem pares fonológicos idênticos ao que o inglês faz entre chip e ship. Se hoje há pouquíssima gente que faz essa distinção (se houver), no passado essa era a regra em metade de Portugal. Além disso, observamos que, grosso modo, ao nosso SS equivale um S no espanhol, e ao nosso Ç, um Z. Esse conhecimento, que permite uma rede de relações entre línguas, transcende a prática de simplesmente alfabetizar. Portanto é lamentável pensar que a etimologia seja inútil e que ninguém estude ou queira estudar etimologia. Se ninguém estuda, deveria estudar. O abandono da erudição linguística pelo ensino moderno, alicerçado pelos valores imediatistas da atualidade, nos prende num presente sem vínculos com nosso passado e com nosso futuro. Faz-nos acreditar que tudo em que acreditamos nasceu hoje, criando uma cegueira para as semelhanças entre as línguas, as culturas e as pessoas. Em suma, ao contrário do que se prega, ser erudito nos torna mais humanos e mais tolerantes, menos vinculados às óbvias necessidades da nossa existência, que podem parecer prementes, mas são apenas o que são: necessidades.
TN – No bojo dessa discussão, diante de uma defesa da etimologia, um ou outro leitor pergunta por que, então, deixamos de usar “ph” e passamos a usar “f”. O senhor gostaria de falar um pouco sobre esse processo?
MEV – Deixamos de usar pelos mesmos motivos aventados pelo sr. Pimentel. No entanto, como isso foi feito por linguistas capacitadíssimos como Gonçalves Viana, Carolina Michaelis, Adolfo Coelho e Leite de Vasconcelos, houve o sucesso que conhecemos hoje. O discurso, contudo, era praticamente o mesmo. O problema na época foi a eliminação de consoantes mudas, de consoantes dobradas (exceto rr e ss) e a simplificação das grafias que remontavam à ortografia grega (como y, rh, ph, th etc). Mantiveram-se o H mudo e as letras homófonas que conhecemos (ss/ç, g/j etc.). Mas a verdade é que, diferentemente do que se passava com o espanhol ou com o francês, não havia ortografia tal como entendemos agora e isso era tarefa de cada gramático. A reforma de 1911 foi a primeira da história da língua portuguesa. E não foi de todo simplificadora, pois introduziu muitíssimas regras de acentuação. Ao longo dos séculos, algumas pessoas escreviam algumas palavras com f enquanto outras usavam a escrita etimológica com ph. Essa cisão ortográfica é decorrência do debate iniciado em Portugal na segunda metade do século XVI que nunca havia sido solucionado.
TN – Também há na língua palavras de mesma origem com grafias diferentes (erva/ herbanário; úmido/ húmus; extensão/ estender; fêmur/ femoral). Como isso se explica?
MEV – A grafia “úmido” era mais frequente no Brasil. Em Portugal grafava-se “húmido”, respeitando-se a etimologia. Penso que se manterão as duas grafias. O que se esquece é que uma regra ortográfica, seja etimológica, seja fonológica, deve estender-se para todos os casos, mas as palavras têm diferentes frequências de uso e isso dificulta que seja implementada na prática. Se procuro a palavra “erva” no Google, tenho mais de 10 milhões de ocorrências. Se escrevo “herbanário”, tenho pouco mais de 13 mil. As pessoas não têm consciência histórica das palavras a não ser quando estudam linguística histórica ou etimologia, de modo que naturalmente não sabem que o radical da palavra “ombro” é o mesmo da palavra “humeral”. Levando isso às últimas consequências, “ombro” deveria ser escrito com H. A mesma confusão se dava quando se escrevia “ontem” com H, até o século XIX, por pura analogia com a palavra “hoje”. O uso do X no prefixo ex- de origem latina é confuso mesmo: teoricamente, palavras com es- são palavras vindas diretamente do latim vulgar, que gerou a língua portuguesa, enquanto palavras com ex- são palavras eruditas, que foram introduzidas no português imitando o latim (e o francês) desde o século XV. “Fêmur” e “femoral” respeitam a ortografia latina (pois a palavra latina femur tinha o genitivo femoris, donde extraíamos o radical femor- para criar os derivados). Trata-se de uma acidente histórico que pronunciemos hoje o U e o O nessas duas palavras da mesma forma. Pergunto-me por que não escrever, usando a mesma lógica, a palavra “menina” com I, pois, de norte a sul no Brasil, com raras exceções, a pronúncia é “minina”. A pronúncia com E surgiu tardiamente em Portugal. Desde as cantigas de Santa Maria, temos comprovações da grafia com I, que é muito mais frequente. Demagogicamente eu poderia defendê-la, mas ao mesmo tempo ignoraria as minorias brasileiras e privilegiaria as minorias portuguesas. O mesmo argumento pode ser estendido a várias outras situações: o ditongo OU é pronunciado como monotongo na língua normal e como ditongo na língua mais cultivada aqui no Brasil, já em Portugal a pronúncia monotongada é a padrão, mesmo nos discursos cultos, e o ditongo tem algo de regional.
TN – Se viéssemos a abolir o dígrafo “ch” do início das palavras, substituindo-o pela letra “x”, perderíamos uma informação etimológica importante para o aprendizado de correlações semânticas, como as de chuva/ pluviométrico, chumbo/plúmbeoou chão/ plano, entre muitos outros exemplos. Penso que a manutenção do “ch” concorra para o aprendizado da ortografia não como um simples exercício de silabação mas como um saber inserido numa perspectiva histórica. Como o senhor vê esse caso em particular?
MEV – De fato, muitas palavras que têm CH no início são palavras latinas que começariam com PL, CL, FL. Trata-se de algo característico do galego-português, pois, nessa mesma posição, o castelhano desenvolveu um LL. A palavra clavis em latim remete ao português chave e ao espanhol llave; a palavra pluvia em latim remete ao português chuva e ao espanhol lluvia etc. O espanhol padrão não distingue v e b, apesar de serem um único som e fazem isso por causa da etimologia das palavras. O português (excetuando os dialetos do norte de Portugal já mencionados) não distinguem ch de x, mas quase sempre grafamos com x palavras de origem indígena, africana ou árabe (há exceções, porém). Não há nenhuma razão semântica para a manutenção desses pares a não ser preservação histórica. Sempre me lembro de que, para fazerem a catedral da Sé atual, demoliram a antiga catedral, que era do século XVI. Isso sim eu penso que seja desnecessário. Argumentava-se que a igreja antiga necessitava de reparos, não tinha capacidade de abrigar muitos fiéis etc. e demoli-la foi rápido. Precisaram de décadas para reerguer a nova. É isso que provavelmente acontece com mudanças malpensadas, feitas de repente. Normalmente há perda quando se institui a tabula rasa. Perdemos um patrimônio histórico por causa de um discurso apaixonado. Se há problemas no aprendizado da ortografia, isso não se deve à dificuldade intrínseca da nossa ortografia, que é bastante moderada quando a comparamos com a do inglês e a do francês. O problema é mais profundo: deve-se a algum tipo de crise moderna do saber, às condições de ensino e ao modo como é conduzido, e não à ortografia. Se fosse assim, teríamos altíssimas taxas de analfabetismo no Japão, cuja escrita é muitíssimo complexa. Não é o que vemos.
TN – A etimologia sempre exerceu uma espécie de fascínio nas pessoas. Não há quem não goste de ouvir a história de uma palavra – principalmente quando há uma curiosidade em torno dela. Na opinião do sr. Pimentel, porém, o estudo da etimologia que se fazia era a “decoreba” de prefixos gregos e latinos, o que era algo infrutífero. O senhor acha que é possível ensinar etimologia no ensino médio e/ou fundamental ou isso realmente não é necessário ou mesmo possível?
MEV – Meu trabalho com a difusão da etimologia é grande, mas é preciso ser realista: não se aprende etimologia da noite para o dia. O conhecimento de tupi, de quimbundo ou de iorubá também é importante, mas há poucas pessoas que se dedicam a isso. Obrigar o ensino dessas línguas no ensino médio e fundamental seria utópico. Quando se fala de obrigatoriedade do ensino da etimologia, imagino milhares de professores ensinando justamente a pseudoetimologia divertida que aparece por aí. Isso me dá calafrios. A etimologia científica está distante da pseudoetimologia tanto quanto a astronomia está da astrologia. Penso que o pontapé inicial deve ser dado dentro das universidades, formar gente capacitada e, num futuro distante, poderíamos pensar nisso. Não há “decoreba”, mas a erudição necessária não se constrói de um dia para o outro e a qualidade dos profissionais que ensinariam etimologia teria de ser boa, caso contrário, é melhor deixar do jeito que está para não darmos mais passos atrás. Sou autor de um livro que pretende ensinar etimologia, Manual de etimologia, da editora Globo, e de outro que pretende pensar a etimologia cientificamente, Etimologia, da editora Contexto. Mas insisto: não é preciso saber etimologia profundamente para entender as pouquíssimas grafias etimológicas que sobreviveram na escrita atual. Nesse sentido, opor etimologia a alfabetização me parece um absurdo. A etimologia auxilia a alfabetização, jamais a atrapalha.
TN – O sr. Pimentel gosta de lembrar uma história vivenciada por ele próprio que envolve a suposta palavra “xaxo” (ou “chacho”). A palavra, pronunciada dessa forma por seu motorista, deixou-o em dúvida sobre o uso do X ou do CH. Nenhum dos dois conhecia a grafia do termo. Segundo o professor, se a ortografia seguisse a pronúncia, não haveria problema, pois bastaria usar a letra X. O filólogo maranhense Antônio Martins de Araújo, porém, explicou durante audiência pública no Senado que a palavra em questão é “sacho” [devidamente dicionarizada]. Como vemos, a variação de pronúncia no vasto território do país parece ser um entrave a uma ortografia de base fonológica.
MEV – Se “sacho” ou “chacho” é uma palavra regional, deve ter poucas ocorrências em sua frequência de uso, quando se pensa no âmbito nacional ou em toda a lusofonia. São justamente essas palavras que geram as exceções, porque muitas vezes não sabemos a etimologia da palavra (e não devemos inventar uma se não sabemos). Isso pode parecer um defeito da ortografia atual, mas haverá esse mesmo problema com qualquer proposta revolucionária, com certeza. A fruta conhecida como “uvaia”, de origem tupi, é muitas vezes reinterpretada no interior de São Paulo como “uvalha”, pois os falantes pensam que cometem a pronúncia [i] do LH, como em “telhado”, que é transformado em “teiado”. O mesmo podemos pensar de “macaxeira”, que rarissimamente é pronunciada com o ditongo EI: invariavelmente as pessoas que usam essa palavra monotongam. E devia ser assim, pois a palavra é tupi e, apesar de ser uma planta, não é, etimologicamente falando, aparentada com “mangueira”, “roseira”, “trepadeira”. Qual seria a solução do sr. Pimentel nesses casos? “Macaxera”? Se sim, estará indo a favor da etimologia da palavra.
TN – Na proposta do sr. Pimentel, registra-se a abolição dos dígrafos QU e GU, o que daria origem a grafias como QEIJO e GERRA. Ele não explica o que seria feito nos casos em que há dupla pronúncia, como líquido ou sanguinário, por exemplo, nos quais há oscilação quanto à pronúncia do “u” átono. Palavras como CASA e MESA, por exemplo, seriam as grafias do que hoje escrevemos CAÇA/ CASSA e MEÇA. A palavra LOUSA não identificaria o quadro-negro ou uma lápide funerária, pois seria a nova grafia de LOUÇA (o “ç” também é abolido, segundo a proposta). Como bem lembrou a linguista Stella Maris Bortoni, a tradição ortográfica ajuda na compreensão da morfologia dos verbos (ela citou o dígrafo “ss” como marca de imperfeito do subjuntivo). Diante de tudo isso, o senhor considera simplificadora essa proposta?
MEV – Também tenho dúvidas com relação às formas oscilantes, que antigamente eram marcadas com e sem trema. Aqui voltamos à antiga ortoépia (ou ortoepia) que gramáticos muito ferrenhos, como Napoleão Mendes de Almeida, relativizavam. Ora, eu pronuncio “adquirir” com [k] mas ouço muitas pessoas pronunciando com [kw]. Quem faz dessa última forma não está totalmente errado, pois se trata de uma palavra culta, um latinismo tardiamente introduzido na língua, mas, novamente, o uso é que determina a pronúncia. A proposta é simplificadora, sim, mas veja, também gera complicações: o E de “mesa” é fechado e o E de “meça” é aberto. Se grafamos doravante “meza” e “mesa” resolvemos o caso das pronúncias representadas por várias letras/ dígrafos, mas não resolvemos o caso das várias letras (como o E) que têm várias pronúncias. Uma simplificação moderna sobre uma simplificação antiga. Só com a avaliação de todo o vocabulário português (que é bastante extenso) saberíamos o impacto dessa reforma, que, como disse, seria precipitada sem o auxílio de filólogos e linguistas.
TN – Uma das críticas que o senhor Pimentel faz ao Acordo Ortográfico é a de que ele foi pensado no século passado e, portanto, reflete um mundo antigo. Chega a afirmar que “os psicólogos e biólogos já constatam que boa parte das crianças de hoje estão nascendo com um par a mais de cromossomos ativados, o que significa estar a humanidade passando por verdadeira mutação genética que traz uma visão quântica da realidade, descomunalmente superior à antiga visão linear a que os adultos ainda estamos condicionados”. E prossegue: “Hoje o estudante, e qualquer indivíduo, ri de quem aceita regras com exceções. Não faz sentido perder tempo. Ou o que se lhe ensina é lógico, prático ou não lhe desperta interesse”. O senhor acha que esse tipo de afirmação pode embasar uma discussão sobre ortografia?
MEV – Esses apelos à ciência são totalmente absurdos e descabidos. No fundo há o espírito da tabula rasa atuando. Uma mutação genética só ocorreria se o ser humano estivesse correndo risco de sobrevivência. Ao que tudo indica, a espécie humana impera no planeta. Esses argumentos não têm pé na realidade, pois envolvem pressupostos sobrenaturais com os quais não comungo e lamentaria muito que fossem aceitos para embasar algo que afastaria com certeza o ideal atual de unificação ortográfica entre os países lusófonos.
TN – Numa das audiências públicas de que participei, houve críticas ao que foi entendido como falta de sistematização da grafia de palavras que têm o prefixo pré- ou pre-. As críticas foram dirigidas ao corpus do Vocabulário Ortográfico da ABL, que registra “pré-qualificado” e “prequestionado”, “preexistente”, “preembrião/pré-embrião”. Segundo os críticos, as pessoas não têm como saber qual é a grafia correta, já que existe variação de pronúncia. O professor Cipro Neto sempre menciona uma aula que deu na Bahia, na qual seus alunos lhe disseram que, por lá, a pronúncia da palavra “preconceito” é “pré-conceito”. Existe alguma forma de resolver esse problema de grafia?
MEV – Não, não existe. O pre- vem do latim prae- seja ele pronunciado com vogal aberta ou fechada. Esse expediente de separar os componentes da palavra para destacá-los etimologicamente, como nesses exemplos, é algo que ficou em moda na filosofia e começou, salvo engano, com Heidegger. A consciência de que temos um prefixo aí é variada. Pouca gente sabe que prestar tem o mesmo prefixo, historicamente falando.
TN – O sr. Pimentel também costuma usar o argumento da inclusão social para defender o seu projeto. Segundo ele, a complexidade do sistema ortográfico do português cria grandes dificuldades de ensino e aprendizagem e, na sua nova ortografia, esse problema deixaria de existir. O senhor acha que ele pode ter razão nisso?
MEV – É o mesmo argumento usado em 1911. De lá para cá, não saberia opinar se houve avanços ou não nesse sentido por causa da simplificação da ortografia. Aparentemente não foi só por isso. Os governos tiveram a sua responsabilidade.
TN – Finalmente, o senhor considera oportuna essa discussão sobre o Acordo, capitaneada pelo prof. Pimentel, que é coordenador do grupo de trabalho técnico da Comissão de Educação do Senado brasileiro? Segundo o prof. Carlos Faraco, em entrevista a este blog, o processo de implantação está avançado e envolve muitas instituições e professores universitários dos oito países signatários do Acordo. Cada país já está elaborando seu Vocabulário Ortográfico Nacional e todo esse material será reunido no Vocabulário Ortográfico Comum. O senhor vê alguma possibilidade de Pimentel ter sua proposta concretizada?
MEV – Eu espero que não. Concordo com o prof. Faraco. Seria uma pena desandar todo esse processo que tem sido feito por muita gente competente e de maneira séria e equilibrada.