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Direitos Humanos

OS DIREITOS HUMANOS E SEUS OPOSITORES

Do seu revolucionário surgimento no decorrer dos séculos XVII e XVIII aos dias de hoje, a tradição dos direitos humanos sempre contou com um número significativo de detratores e adversários, sendo este contingente formado por uma série ampla e bastante diferenciada tanto no que diz respeito às suas origens socioeconômicas, quanto no que se refere às suas orientações político-ideológicas.

Em cerca de quatro séculos de história, agrupamentos com necessidades e interesses os mais diversos marcaram presença entre aqueles que nutriram forte antipatia em relação à causa dos direitos humanos.

Quando dos seus primeiros passos, no início da modernidade, não era incomum encontrar entre seus principais inimigos representantes da nobreza – em especial a corte real – e do alto clero, além dos colonizadores metropolitanos.

DireitosHumanogrande_1Durante o século XIX, a receber o bastão de opositores dos direitos humanos das mãos destes últimos estava uma nova classe social, até então árdua defensora da conquista desses mesmos direitos, como que a demonstrar as inúmeras voltas que a história é capaz de dar. Nesse momento, uma burguesia já conservadora age de maneira intransigente diante das reivindicações de extensão dos direitos humanos para os trabalhadores urbanos.

Com o século XX, a disputa em torno da ampliação, ou não, dos direitos humanos chega ao seu ápice, passando tais direitos a contar com um emaranhado extremamente heterogêneo de rivais. Num mundo marcado pela polarização entre capitalismo e comunismo, não foram poucas as ocasiões em que a defesa dos direitos humanos foi extremamente prejudicada, tendo de lidar com expressões as mais variadas de fanatismo político-ideológico, capazes de gerar, à esquerda ou à direita, regimes ditatoriais fundados nas mais repugnantes formas de opressão, dos quais o nazismo e o stalinismo foram sua expressão mais perfeita.

Na atualidade, não obstante as inúmeras conquistas obtidas em torno da afirmação dos direitos humanos, tanto no campo jurídico-legal como no plano cultural-ideal, continuam a se fazer presentes críticas que parecem ignorar o fato de que o único instrumento capaz de medir o nível de civilidade alcançado por uma sociedade – e seu progressivo distanciamento da barbárie – localiza-se exatamente na capacidade que esta tem de fazer com que os seus concidadãos sejam protegidos pelo generoso guarda-chuva dos direitos humanos. Assim, soam como um inegável retrocesso nos padrões civilizacionais contemporâneos afirmações que procuram desqualificar a tradição dos direitos humanos, venham tais afirmações de onde vierem.

Seja na sua versão neoliberal, que procura identificar nos direitos humanos uma barreira à realização racional da lucratividade pelo livre-mercado; seja através da matriz marxista ortodoxa, que busca observar nos direitos humanos nada mais do que um conjunto de formalidades responsáveis pelo encobrimento da estrutura de classes e da luta entre estas no seio da sociedade capitalista, sendo, por isso mesmo, nada mais que direitos das classes dominantes; ou ainda na linha extremamente vulgar que define os direitos humanos como “direitos de bandidos”, o que se percebe claramente é a incapacidade de compreender a fundo seu caráter universal e democrático.

OS SENTIDOS DA UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

Universal, antes de mais nada, porque passou a tratar a totalidade dos seres humanos vivos com base em critérios igualitários, independentemente das suas diferenciações de caráter biológico-natural, cultural-ideal e econômico-material.

Com isso, um primeiro grande passo foi dado na direção da superação da tradicional concepção que observava, em um número bastante reduzido de indivíduos, a existência de privilégios de nascença, que alguns indivíduos faziam superiores em relação a todos os demais existentes.

No seu lugar, de maneira radicalmente diversa, foi posta a transformadora idéia de que “todos são iguais perante a lei”, não podendo determinado indivíduo sofrer nenhuma espécie de discriminação em função das suas características peculiares, sejam estas de classe social, nacionalidade, etnia, gênero, religião, orientação sexual, opção político-ideológica etc.

Apesar de não ser suficiente para a eliminação das diversas formas de desigualdade existentes na face da terra, com todas as suas repercussões em termos de discriminação e opressão, a chamada “igualdade jurídico-formal” é uma condição necessária, sem a qual a implementação de medidas concretas no sentido da eliminação das inúmeras maneiras de aviltamento da condição humana seria inviável.

O que se pretende aqui afirmar é que a igualdade no plano legal é uma necessidade, mas, ao mesmo tempo, uma etapa parcial da realização do ideal de libertação dos seres humanos, pois traz em si a exigência histórica de “tratamento dos desiguais de maneira desigual”, isto é, aqueles indivíduos que, por alguma razão, se encontram inferiorizados nas relações sociais precisam de um tratamento legal diferenciado – uma espécie de “contraprivilégio” que os proteja –, exatamente para que “recuperem” sua condição de igualdade social perdida, antes que a igualdade puramente formal se fizesse presente.

Assim, os direitos humanos devem ser compreendidos hoje como a afirmação do potencial emancipador contido nestas duas tradições – a da “igualdade jurídico-formal” e a do “tratamento dos desiguais de maneira desigual” –, mediante a percepção de que, ao contrário de serem antagônicas, elas podem se tornar complementares à medida que cumprirem o papel comum de combate aos privilégios sociais, ou seja, se, e somente se, desempenharem a mesma função de obstáculo à reprodução das desigualdades entre indivíduos e agrupamentos de indivíduos, contribuindo, dessa forma, para a constituição de um senso de justiça entendida como equidade.

Para tanto, faz-se necessário observar um segundo sentido do caráter universal dos direitos humanos. Para além da universalidade entendida como um atributo de todo ser humano – particularmente no que diz respeito ao plano da igualdade –, é preciso que se veja nos direitos humanos a reunião das vitórias, em termos de direitos conquistados, das três grandes tradições do pensamento político moderno e contemporâneo, a saber: a liberal, a democrática e a socialista.

Dito de outra maneira, a universalidade dos direitos humanos encontra-se localizada, também, no fato de ser resultado de um processo constante de incorporação dos direitos adquiridos no âmbito das liberdades individuais, da igualdade política e da igualdade social, ou seja, de uma contínua luta pela sua ampliação.

OS DIREITOS HUMANOS COMO UM CAMPO DE CONFLITO

Na verdade, se, numa “primeira geração”, os direitos humanos limitavam-se ao campo dos direitos civis e políticos de indivíduos, passando, numa “segunda geração”, à esfera dos direitos sociais e econômicos de grupos de indivíduos, nos dias de hoje, a idéia de uma “terceira geração” dos direitos humanos, correspondente aos direitos dos povos, se faz cada vez mais presente, demonstrando claramente sua dinâmica de progressiva universalização.

Vê-se, pois, que, de maneira semelhante a uma bola de encher, os direitos humanos aumentam em suas dimensões à medida que novo sopro de direitos é dado para o seu interior, injetando-lhe uma nova dose de vitalidade.

Nos séculos XVII e XVIII, tal sopro de vitalidade foi dado fundamentalmente pelo pensamento liberal, sendo substituído em grande medida, nos séculos XIX e XX, pelo pensamento democrático e socialista, num processo ininterrupto, já que, desde a passagem dos anos 1960 aos anos 1970 do século passado, se sente a presença renovadora de “novos movimentos sociais” trazendo para si a responsabilidade de insuflação da bola dos direitos humanos, por meio de uma tripla luta: a) luta para que os “velhos direitos” não sejam retirados; b) luta para que os “velhos direitos” cheguem até os sujeitos tradicionalmente excluídos da história; c) luta pela conquista de novos direitos.

Porém, o desenvolvimento histórico dos direitos humanos encontra-se muito distante de ser uma simples evolução linear, pois ele é guiado por uma lógica bastante complexa. Na verdade, os direitos são criados sobre um terreno marcado pela produção e reprodução incessantes de contradições sociais, constituindo-se, dessa forma, num autêntico campo de conflito.

Assim, da mesma maneira que novos direitos são conquistados, outros tantos são retirados nesta verdadeira luta em torno das leis, fazendo com que seja constante o risco de perda daquilo que um dia se imaginou adquirido para sempre: que o digam os que vivem regimes ditatoriais, nas suas restrições às liberdades individuais e coletivas, por um lado, e sob os governos de orientação neoliberal, nas suas ofensivas contra os direitos sociais e garantias trabalhistas, por outro lado.

De outra parte, não foram poucos os momentos da história em que a conquista de determinados direitos acabou por gerar, de forma extremamente rápida, um contexto amplamente favorável à reivindicação de novos direitos, que ultrapassavam os limites inicialmente estabelecidos. Particularmente nos períodos caracterizados pela eclosão de processos revolucionários, as lutas por direitos passam a ter uma dinâmica própria, imprimindo um ritmo acelerado que rompe com a lentidão das coisas na vida cotidiana. Em outras palavras, em meio às revoluções, a maior aceleração do tempo histórico acarreta a antecipação da luta por direitos que só seriam reconhecidos, como tais, décadas e, até mesmo, séculos depois, como foi o caso da luta pela igualdade social em certas fases mais extremadas da Revolução Inglesa e, principalmente, da Revolução Francesa.

Além disso, a existência de diversas interpretações sobre as leis que tornam possíveis os direitos e a variável vontade política dos governantes de efetivá-los na prática faz com que, mesmo sob o reino de uma legalidade pautada pelos direitos humanos, exista uma constante disputa em torno da aceleração ou do retardamento da sua implantação concreta, ainda depois de seu reconhecimento legal inicial. Ou seja, há um momento específico para a luta por novos direitos, e um momento próprio para a colocação em prática desses novos direitos, havendo em cada um dos dois um árduo combate entre os grupos sociais em disputa.

Por fim, não podem ser esquecidos dois outros fatores responsáveis por tornar desigual o desenvolvimento dos direitos humanos: o geográfico-espacial e o educacional. De um lado, em função da diversidade histórica que perpassa as várias localidades do planeta, poderemos ter continentes, nações e regiões mais ou menos desenvolvidos no que diz respeito à afirmação dos direitos.

De outro lado, devido à abissal diferenciação de níveis educacionais existentes entre os vários indivíduos e agrupamentos sociais – decorrentes da adoção por determinados governos de políticas educacionais de caráter excludente, reprodutoras dos desníveis sociais –, existirão sujeitos conscientes dos seus direitos e outros completamente ignorantes em relação a eles: no primeiro caso, cidadãos alinhados com seu tempo; no segundo caso, súditos anacronicamente existentes em razão da carência completa de informações.


O texto acima é um trecho da introdução de “Direitos Humanos“, de Marco Mondaini.

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