Um excelente livro de introdução ao tema da escravidão no Brasil.
Este pequeno livro de Jaime Pinsky é uma das melhores introduções que um brasileiro pode ter no estudo da escravidão africana no país. É um livro bem curto e que, como lado negativo, tem um espaço grande de fontes que poderiam juntar-se à análise do autor, a fim de expandir a crítica e a compressão geral do tema, que é complexo. No entanto, se olharmos com atenção para a proposta, veremos que a tomada condensada de documentos faz parte do pacote, uma vez que se trata de um livro introdutório, um livro de apresentação. Aqui, a ideia de Pinsky é criar um arcabouço de contextos, abordagens e eventos históricos que cercam o fim do mercantilismo e os primeiros séculos do capitalismo, no seio do qual surgiu, foi cultivada, defendida e sustentada a escravidão — pelo menos até meados do século XIX, em alguns países.
O que se destaca aqui é que o autor não faz de seu trabalho um compilado apenas de horrendas condições dos navios negreiros e das senzalas; das mortes, torturas e/ou castigos desumanos infligidos nos africanos tornados cativos. É claro que em uma parte específica da obra vemos essas situações expostas e analisadas, mas elas são parte de algo muito maior; de um contexto macro que revela uma sociedade construída para entender o africano escravizado como produto, como objeto, como máquina de “fôlego vivo” para trabalho, a plena posse de se senhor. E é na esteira dessa visão histórica que se discute, por exemplo, porque alguns castigos aos escravizados eram aceitos como legítimos pela maior parte das pessoas (brancas) ou porque tornou-se tão popular o mito do “indígena livre“, que “nunca se adaptou à escravidão“; em oposição ao mito do “negro acostumado ao trabalho“, dito “naturalmente ou socialmente construído” para aguentar o julgo que lhe era infligido, como se a culpa da escravidão fosse dos escravizados.
Religiosamente amparada pelo cristianismo institucional da época — e no caso de Portugal, o cristianismo católico –, a escravidão não tinha apenas uma lógica econômica, mas também moldava inúmeros outros aspectos da sociedade que lhe sustentava… ou era por ela sustada. Sobre esta visão, o livro nos traz concepções populares através de marchinhas, quadrinhas, poemas ou ditados, ações particulares e contextos amplos que se unem para formar uma ampla tapeçaria ideológica, comportamental e cultural do século XVI ao XIX. O autor faz, neste bloco, uma excelente discussão de teoria da História, apontando para os racistas que até hoje defendem os escravocratas e seu sistema, dizendo que “um proprietário jamais maltrataria a sua valiosa mercadoria“. O texto também expande, de maneira até bastante didática, a desonestidade de se tomar exemplos anedóticos, individuais, raros ou pontuais e, por eles, tentar suavizar o sistema que por 388 anos traficou, espancou, matou e forçou ao trabalho escravo milhões de seres humanos.
O autor não pega leve com nenhum grupo social que amparou ou que até hoje defende supostos rompantes de “bondade“, de “companheirismo” ou de “tratamento familiar” que os traficantes davam às suas “posses humanas“. Citando anúncios de jornais, cartas e documentos de compra e venda de seres humanos na costa oeste da África ou mesmo no litoral brasileiro, o autor completa a sua análise falando de resistência ativa (várias revoltas são citadas, porém, nenhuma delas é aprofundada), de sexualidade e vida cotidiana, montando uma base sólida para que o leitor compreenda o caminho das consequências que nos são apresentados na parte final da obra.
Em A Escravidão no Brasil Jaime Pinsky coloca o dedo em feridas contemporâneas da História nacional, amplamente divulgadas e financiadas por um grupo que chega até a se orgulhar de diminuir ou equiparar a miséria que foi a escravidão promovida pela Europa no continente africano, citando o fato de que “africanos já se escravizavam antes mesmo da chegada dos europeus“. São pontuados os óbvios erros de contexto histórico nesse pensamento (assim como em outros!), fazendo dessa edição revista e ampliada um livro que se encaixa perfeitamente no século XXI, onde a reescrita da História pelas mãos dos algozes ganha corpo, mídia e milhões de vozes para reproduzi-la. Usando a correta definição do autor sobre a “funcionalidade da História“, dá para dizer que este é um livro que nos fornece elementos para uma visão crítica do passado, uma melhor compreensão do presente e iluminação do futuro, que basicamente significa tentar erguer uma sociedade (para a nossa e para as futuras gerações) que discute esse tema sem passar pano pra escravocrata, e que entende as implicações contemporâneas geradas por quase 400 anos de um sistema como este.
Fonte: Plano Crítico, texto de LUIZ SANTIAGO