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A corrida do ouro no Peru

Por Fábio Zanini para Folha de S. Paulo

A “Ilustríssima” adianta um trecho do livro “Euforia e Fracasso do Brasil Grande” (Contexto), que radiografa a política externa da era Lula. O volume sai em 23/2. O excerto trata da Estrada do Pacífico, feita por empreiteiras brasileiras hoje enredadas na Lava Jato. A via facilitou o acesso a La Pampa, famosa por suas pepitas.

“Evite La Pampa”. Na Amazônia peruana, esse é um mantra. Nada de bom sai de lá, alertavam meus contatos em Puerto Maldonado, principal cidade dessa região pouco explorada do país, onde as cordilheiras, os desertos e as ruínas incas dão lugar a uma paisagem aparentada à de Estados brasileiros como Acre e Rondônia.

La Pampa é codinome para contrabando, tráfico de drogas, mineração ilegal, prostituição e poluição ambiental. É também um lugar notório pela aversão a forasteiros, uma versão sul-americana do Velho Oeste. Um estrangeiro como eu, cheio de perguntas e sem qualquer identificação com aquela população de traços influenciados pelas heranças indígena e cabocla, jamais seria bem-vindo.

A 105 km de Puerto Maldonado, La Pampa é um pouco de tudo: cidade, favela e entreposto comercial. Reúne 5.000 habitantes, talvez o dobro ou o triplo. Ninguém nunca contou. Fica às margens da Carretera Interoceanica Sur, nome oficial da Estrada do Pacífico que liga o Brasil à costa peruana. É um amontoado de gente em palafitas que servem de casas, pequenos restaurantes, cafés, salões de beleza, “lan houses”, igrejas evangélicas, prostíbulos, hotéis, escritórios e lojas de apetrechos para a mineração. Tudo precário, com iluminação à base de querosene e fossas improvisadas como latrinas. E motos, muitas motos.

La Pampa é um subproduto da Estrada do Pacífico, uma rodovia que começa na cidade acreana de Assis Brasil, fronteira Brasil-Peru, e segue até Inambari, no pé dos Andes, onde se bifurca: um trecho sobe a cordilheira até a mítica cidade de Cuzco, capital dos incas, até terminar na costa do Pacífico. Outro ruma ao sul, em direção ao lago Titicaca, sagrado para diversos povos pré-colombianos. No total, 2.400 km de asfalto, o equivalente à distância em linha reta entre São Paulo e Natal.

Foto: Fábio Zanini/Arquivo pessoal
Trecho da Estrada do Pacífico no Peru; rodovia liga cidade acriana a porção dos Andes no país vizinho

Grande parte da obra foi feita por empreiteiras brasileiras, que se tornariam, alguns anos mais tarde, protagonistas da Operação Lava Jato, que investiga um gigantesco esquema de fraude em obras da Petrobras. Também no Peru essas construtoras foram acusadas de subornar políticos e apresentar aditivos suspeitos de contratos para construir a rodovia. O orçamento inicial, de US$ 800 milhões no início das obras, em 2005, pulou para mais de US$ 2 bilhões no seu término, em 2010.

Antes da Estrada do Pacífico, chegar a La Pampa não era para os fracos. A estrada de terra esburacada, de acesso quase impossível na época das chuvas, era um teste para os aventureiros que para ali se deslocavam em busca do ouro, que é considerado superpuro. Em pequenas lojas ao redor do mercado de Puerto Maldonado, frequentemente recebe a classificação “ley 99”, o que significa 99 de partes de ouro em 100 presentes numa pepita (o restante são fragmentos de outros tipos de metal). Normalmente, ouro acima de “ley 80” (80% de pureza, portanto) já é considerado um bom investimento.

Quando a estrada chegou, gerou uma corrida ao metal. Peruanos, bolivianos e brasileiros literalmente amontoaram-se em La Pampa. A região virou um caos.

Foi com esse pensamento a perturbar minha mente que tomei a estrada em uma manhã de junho de 2015, num velho Toyota azul alugado, dividido entre a prudência que me recomendava simplesmente passar reto e seguir viagem e a curiosidade que me atiçava a estacionar o carro, dar uma perambulada por La Pampa e seja o que Deus quiser. Eu partira de Puerto Maldonado cedinho, tomando a estrada rumo ao oeste, e no meio do trajeto de cerca de 250 km havia a difícil decisão de dar uma espiada em La Pampa.

Em dezenas de viagens que fiz por países de África, América Latina e Oriente Médio, acostumei-me a aceitar que muita coisa dá errado: ônibus não saem no horário, fronteiras se fecham, burocratas dificultam a vida do viajante, formulários imprevistos são exigidos, pequenos golpes são aplicados. Mas, de vez em quando, as coisas dão certo, e muito certo. Foi o que aconteceu naquele dia.

Na estrada, ultrapassei um ônibus, sem imaginar que aquilo me faria ganhar o dia. Era um destacamento da Polícia Nacional peruana, dirigindo-se a La Pampa para se juntar a outros contingentes que lá estavam para
uma inspeção. Não acreditei na minha sorte quando, ao avistar as primeiras barracas de lona azul e palafitas de La Pampa, pude ver dezenas de policiais enfileirados, armados com fuzis e escudos, prontos para iniciar a batida. Subitamente, o local estava seguro para um forasteiro como eu dar uma circulada.

Parei o carro numa quebrada de chão batido que sai da estrada, catei meu bloquinho e minha câmera (sem medo algum) e fui ser feliz.

As operações policiais, explicou-me um capitão que não se identificou, eram comuns. “Estamos em busca de armas, drogas e garimpeiros sem autorização para buscar ouro, que são a maioria”, disse-me ele. A maioria das “minerías” fica a uma ou duas horas de caminhada mata adentro, a partir de La Pampa. Os garimpeiros vão de motoca, carregando mangueiras, motores para revolver a lama e tonéis de mercúrio, necessário para separar o ouro da terra. Saem de manhã e retornam no fim do dia, para dormir e gastar parte do que garimparam nos bares e prostíbulos do local.

Na manhã da minha visita, o Hotel Norteño, um dos mais requisitados do pedaço, estava movimentado. Chamar de “hotel” uma grande estrutura retangular, com chão de madeira suspenso sobre palafitas e duas dezenas de cubículos com espaço para uma cama de solteiro requer algum esforço, mas, para garimpeiros fissurados em fazer fortuna, nada disso importava. A 15 soles a noite (algo como R$ 15, na cotação de 2016), o Norteño estava lotado. Na “recepção” (uma cabine logo na entrada), havia todos os avisos típicos de um hotel de verdade: “check-in às 13h”; “não nos responsabilizamos por pertences deixados no quarto”; “alugam-se toalhas”; “ao sair, deixe a chave na recepção”. Ao lado, um homem consertava um cano que levava água para os chuveiros coletivos -quando o cano se partiu, uma torrente de água de procedência duvidosa inundou por alguns segundos o local, até que o rapaz conseguisse fazer um remendo emergencial. Dois homens chegavam de Lima para trabalhar, mas esquivaram-se de minha investida, com cara de poucos amigos. No Norteño, ninguém queria falar. Mesmo com tanta polícia do lado de fora, percebi rápido que minha presença ali não agradava a ninguém. Voltei para o carro e segui viagem.