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Como tirar zero na redação do Enem | Jaime Pinsky

Temas de redação do Enem vão sempre ser contestados. São mais de oito milhões de candidatos e um número superior a este de parentes, amigos, professores ou simples palpiteiros para criticar a escolha feita pelo INEP, ou seja lá quem for que decide o assunto. Mas é inegável que, ao optar por temas opinativos e escolher os textos de apoio o MEC está conduzindo as redações em uma direção que considera politicamente correta, correndo o risco de abafar opiniões inteligentes e criativas, mas inadequadas na ótica dos corretores, por serem divergentes.

Veja-se o caso do Enem 2016 que acabou de ser realizado. O MEC queria que os candidatos apresentassem “caminhos para combater a intolerância religiosa”. Ora, não seria ilógico (seria até criativo e inteligente) um bom candidato constatar que o caráter do saber religioso é, necessariamente, dogmático, isto é, depende da crença, não do conhecimento racional. Por ter esse aspecto de revelação, a certeza na verdade estabelecida pelo deus em que se crê é inerente ao conhecimento religioso. Direta ou indiretamente, todo deus monogâmico vai logo avisando que ele é único e incontestável e recusa-se a coexistir com outra divindade. As chamadas grandes religiões vão além, estabelecem formas de culto organizadas por seus sacerdotes, que se apresentam como detentores de parte da verdade revelada pela divindade (que não é accessível ao comum dos mortais, só aos eleitos). Para manter sacerdotes e templos (e, em alguns casos, muita riqueza) existe uma estrutura que é sustentada pelo dízimo e outras contribuições dos fieis. Mas que não abre mão de favores do Estado laico, como isenção de impostos e passaportes diplomáticos. As estruturas precisam se auto justificar (“somos os únicos, os legítimos, nós falamos com Deus, os outros não”) e o fazem de varias formas, inclusive negando as verdades de outras religiões. E o Estado moderno, que deveria ser inteiramente laico, vira terreno propício para o embate de verdades reveladas. Daí que um aluno inteligente poderia concluir que não existem caminhos para combater a intolerância religiosa, uma vez que ela é inerente à própria natureza da religião concorrente.

Nesse caso, como é que fica? Simples, o aluno inteligente tira zero, já que se rebelou contra o cabresto que quiseram lhe impor por meio dos tais textos de apoio, enquanto que o medíocre esforçado, aquele que treinou o tema em sala de aula vai repetir, mesmo sem acreditar no que escreve, o mantra pedido pela própria formulação do tema: devemos ser tolerantes com os outros, não podemos chamar as outras crenças de seitas (todas são religiões), animais podem ser abatidos ritualmente (embora utilizá-los para fins científicos seja crueldade), pois religião não se discute, etc e tal.

Certo? Errado. Não apenas porque o exame não terá condições de avaliar devidamente as qualificações (coesão, coerência, capacidade argumentativa, criatividade, articulação intelectual) do candidato, mas porque muitos dos melhores poderão ser liminarmente eliminados por delito de opinião! O direito de considerar ridícula uma prática religiosa, qualquer uma, de qualquer religião, é um direito constitucional em um país laico como o Brasil. Perseguir qualquer cidadão por sua prática religiosa é outra coisa, é delito e pode ser crime, se realizado com violência. Um aluno inteligente diria logo isso e mais. Diria que religiões oferecem perigo quando colocam suas verdades dogmáticas e indiscutíveis a serviço de uma estrutura de poder. Sacerdotes egípcios ou hebreus eram ligados à estrutura de poder, como também os muçulmanos em seu processo de expansão (e alguns grupos nos dias de hoje), os cristãos com as Cruzadas e a Inquisição e assim por diante. Eu não teria dificuldade em afirmar (não me entendam mal) que o culto a personalidades com Stalin, Hitler e Mao teve caráter praticamente religioso, com “sacerdotes” recitando as verdades de seus “deuses leigos” enquanto liquidavam seus adversários.

Ou seja, terminaria o aluno criativo que vai tirar zero na redação, a melhor forma de deixar as religiões, as já existentes e outras que possam surgir, em paz, é não permitir que nenhuma delas detenha o poder, ou tente conquistá-lo com armas. Pois aí é que mora a intolerância.


Por Jaime Pinsky, historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Faces do fanatismo, entre outros livros.