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Como ser brasileiro | Jaime Pinsky

O rapaz passou em frente à loja do meu pai, que ficava a menos de 200 metros da linha de trens da Estrada de Ferro Sorocabana, e perguntou: “Seu Abrão, afinal o senhor é russo, polonês, judeu ou o quê?” Meu pai respondeu no ato: “sou brasileiro”. “Mas como assim, se o senhor tem sotaque, e todo mundo diz que é estrangeiro?”. Meu pai perguntou a idade do garoto, que disse ter 17 ou 18 anos, não me lembro. Meu pai então lembrou ter 30 anos só de Brasil, sendo, portanto, mais brasileiro do que ele.

Como ser brasileiro | Jaime Pinsky

Assim era esse homem, hoje nome de rua ao lado do Horto Florestal de Sorocaba, cidade em que viveu a maior parte de sua vida. Sempre levou muito a sério a decisão da família, que escolheu o Brasil como destino. Claro, o motivo principal da saída da Europa foram os pogroms (perseguições) sofridos pelos judeus. A família vivia em uma pequena cidade, cerca de 50 minutos da fronteira ucraniana, que na época pertencia à Polônia e foi vítima da incompetência dos governantes, de lutas políticas e do velho e bom antissemitismo.

O Império Russo, dirigido pelo czar, dava as cartas na região. Para desviar a atenção do sofrimento do povo (em grande parte causado pela pobreza e pela administração retrógrada do czar e seu grupo palaciano), foram criados, pelo próprio governo russo, falsos documentos falando de um suposto complô judaico para conquistar o mundo, culminando com a publicação de um livro apócrifo denominado “Os Protocolos dos Sábios de Sion”. Esse “fake book” (como seria chamado hoje em dia) “justificou” numerosos atentados antissemitas e a vida da comunidade judaica passou a ser um inferno em terra, já que perseguições e massacres de judeus tornaram-se rotineiros em todo o território.

Logo depois da Revolução Russa de 1917, no longo período de afirmação do poder bolchevique, as tropas chefiadas por Trotsky mediram forças com os “brancos”, à custa dos agricultores que eram saqueados pelos dois lados, como lembrava meu avô Maurício (Moishe). Esse foi o pano de fundo que levou à saída de grande parte da população judaica da região, principalmente para a América, do Norte e do Sul. Foi o ambiente irrespirável e ameaçador que levou à partida do casal Pinsky e seus filhos, abandonando a propriedade (sobre a qual pagava aluguel para um nobre) e a máquina de beneficiamento de trigo, a carroça, o cavalo e as duas vacas, além de um mundo conhecido, estruturado durante séculos. Por último, mas não menos importante, tiveram que abrir mão da língua, desenvolvida ao longo de vários séculos e veículo para grandes escritores, entre os quais um prêmio Nobel de Literatura. E para cá vieram eles, com coragem, ânimo, braços fortes e corações abertos e agradecidos, tão disponíveis, que logo se tornariam brasileiros, como tantos outros imigrantes que fugiam de alguma coisa e aqui se abrigaram.  

A família chegou em 1929 no Rio Grande do Sul, região de Passo Fundo, e ocupou uma pequena gleba nas colônias do Barão Hirch, em Quatro Irmãos. Dois anos depois de chegar, dois anos apenas, a alfafa que meu avô plantava ganhou o segundo lugar e seu amendoim obtém menção honrosa na grande exposição agrícola e industrial realizada no Rio Grande do Sul “sob o patrocínio do Exmo. Sr. Interventor Federal Gal. J. A. Flores da Cunha”. Tenho, até hoje, o diploma concedido “ao colono M. Pinsky”. Não posso negar que ao ver o diploma, devidamente emoldurado e exposto na parede do meu escritório, sinto certo orgulho (indevido, porque imerecido), tanto pelo diploma em si quanto pela preocupação do meu avô e dos seus filhos que, tenho certeza, capricharam na qualidade dos produtos como forma de agradecer o abrigo que o Brasil lhes forneceu em uma hora difícil.

Assim foram eles, assim são quase todos os imigrantes. Portugueses e espanhóis, sírios e libaneses, alemães e austríacos, poloneses e ucranianos, bolivianos e venezuelanos, japoneses e coreanos, e todos os demais. Para meu pai, que passou a ser “brasileiro nato”, a gostar mais de feijão com arroz do que de carne com batata, a amar o cinema nacional e até a ouvir as piadinhas do “caipira” local, Chico Tripa, a nova identidade substituiu a antiga rapidamente, mesmo porque aqui ele tinha amigos, muitos amigos, e quando ficou doente (teve AVC muito novo), recebia visitas o tempo todo, a ponto de ser necessário limitar o acesso das pessoas a ele.

É muito importante que o Brasil, apesar de visões políticas diferentes, tente não levar ao limite uma filosofia de enfrentamento, de negação do outro, de desvalorização do que não é do “nosso grupo”. É possível, acima das oposições de visão política, da escolha de prioridades e concepções de Estado, manter e até desenvolver nossa identidade nacional, uma sensação de pertencimento que nos abranja a todos. Afinal de contas, somos uma Nação, não apenas um Estado, temos alma, não apenas existência jurídica.

O presidente de um país como o Brasil, de qualquer facção que se origine, precisa ser o presidente de todos os brasileiros e todos nós precisamos saber disso e cobrar suas atitudes nesse sentido. Ele não pode ser apenas governante de seus partidários, quantos e quaisquer que sejam. Temos o direito de esperar isso dele. Afinal, somos todos cidadãos.


Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.

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