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Como São Francisco de Assis | Rubens Marchioni

Vez por outra eu ia àquela casa para uma visita de família, onde lia os sinais, as mensagens cifradas, às vezes escondidas num aroma qualquer. Na calçada, uma árvore me ensinava sobre crescimento, natureza, estabilidade e vida eterna. Do centro do jardim, aprendia um pouco mais com um pé de hortênsia, silenciosamente me fazendo pensar em coisas como gratidão, respeito e admiração.

Da porta para dentro, o encantamento trazido pela experiência renovada começava na recepção. Eu bem sei como é boa a sensação de ser presença entre tanta ausência vivida no mundo líquido. Naquele instante parecia impróprio revelar o quanto me beneficiava desse gesto.

Não era preciso apresentar comprovante de tempo de convivência, que isso não decidia a qualidade da acolhida. Os critérios eram outros, infinitamente mais nobres. Minhas credenciais de ser humano, e ainda mais de um pretendente a membro da família, me habilitavam a receber todo tipo de gentileza, da chegada à despedida. Confesso que me fazia bem a sensação de pertencer àquele grupo.

Na sala onde se acomodava uma cama hospitalar, a luz calma do abajur dispensava os serviços do lustre de cristal, e ele aceitava a ideia de que até mesmo a luminosidade precisa ter seus limites. As paredes eram discretamente decoradas com gravuras de temática cristã ou de natureza viva. Juntos, luz e imagens construíam parte do cenário descontraidamente com uma tristeza salpicada de esperança.

O sofá de três lugares, coberto de almofadas coloridas, dividia o espaço com uma cadeira de balanço e um par de pantufas que a matriarca enferma já não usava para descansar e ler revistas, agora emudecidas, e se transformara no lugar preferido de um dos netos de tia Jandira. A velha máquina de costura, antes encarregada de pequenos serviços, ganhava ares de objeto de decoração, com direito ao espaço do corredor, peça de apoio para um antigo relógio e um porta-retrato pouco visto. 

Como São Francisco de Assis | Rubens Marchioni

Acomodado na sala, vinha à mente a metodologia de evangelização empregada pelo Poverello de Assis. Nele, os gestos garantiam tanta eficácia ao trabalho que podiam dispensar o som das palavras.

Aluno observador que sou, prestava atenção silenciosa aos pequenos atos, sempre maternais, daqueles cuidadores e cuidadoras empenhados 48 horas por dia em garantir o conforto merecido pela nossa querida tia Jandira, mulher cuja alegria estava amordaçada por uma doença, o sorriso preso para dar espaço a algumas dores e lágrimas descuidadas. Em cada gesto, uma aula prática de empatia e dedicação. Mais e mais, eu reforçava a certeza de que o simples respeito pelos idosos não é tudo, porque não basta a lei, é preciso o amor, com sua força de aniquilar o poder dos manuais e das constituições.

Minha reação imediata, vendo tanto carinho, dedicação e competência, era de admiração, medo e impotência. Admiração que se tem pelos mestres quando estes exercem seu ofício diante de nós. Medo e impotência por saber que jamais alcançarei tal nível de perfeição. Tentava me colocar no lugar deles e logo sentia que, se necessário, numa situação concreta, talvez não atingisse o mesmo padrão de qualidade dos serviços prestados a um enfermo presente 24 horas.

Naquela casa, um discípulo seria sempre um discípulo. E a ideia de um dia superar os mestres seria pouco menos que uma grotesca e descabida pretensão. Paulo não supera Jesus. Porque se o primeiro tem a disposição da vontade, o segundo tem a insuperável divindade. Ora, o que eu assistia com meus olhos terrenos era divino, impossível de ser alcançado.

Voltava daquela visita experimentando um encantamento questionador e sem resposta para a pergunta se um dia eu seria capaz de pensar e agir como aqueles cuidadores: fraternos com as visitas e entregues de maneira intensa ao trabalho de cuidar da tia Jandira.

No último final de semana, tive a aula magna de encerramento desse intenso processo de evangelização. Numa grande festa que aconteceu no céu, Deus inaugurou a nova casa da tia Jandira – o Pai devia estar com uma imensa saudade da filha e decidiu que havia chegado a hora da sua garota voltar. Pai coruja, isso existe por toda parte.

Agora, ela certamente estará brincando com os anjos e ouvindo de Gabriel a história de anunciar à Maria que ela fora a escolhida para ser a mãe de Jesus, enquanto outros santos se distraem com tantas delícias a serem desfrutadas por uma eternidade nos jardins do Paraíso.

Por aqui ficou a gostosa mistura de aprendizado e saudade. Por aqui fica a minha gratidão por ter convivido com pessoas que deixaram em mim a consciência de que não sou mais que um discípulo desses cuidadores, e a vontade de ser melhor.

Só os santos conseguem produzir tais milagres. Amém.


Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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