O texto abaixo faz parte de um capítulo do livro Escravidão Contemporânea, organizado pelo jornalista Leonardo Sakamoto, e tem o mesmo título deste artigo, escrito por Tiago Muniz Cavalcanti.

Política repressiva: o passo a passo da punição
A abolição oficial da escravidão em 1888 não significou sua redenção. Embora a Lei Áurea tenha eliminado formalmente a possibilidade jurídica de se exercer sobre uma pessoa o direito de propriedade, ela deixou de efetivar reformas sociais, principalmente fundiárias, que viabilizassem a reconstrução do país e, assim, a emancipação de seres humanos.
A perpetuação das condições de miserabilidade dos escravizados “recém-libertos” e a inexistência de qualquer mudança estrutural no cenário econômico e social do período pós-abolicionista, ainda caracterizado pelo latifúndio e pelo coronelismo, delineou o perfil da escravidão contemporânea. Nosso país continuou sendo escravagista, pois em suas terras permaneceu existindo o trabalho escravo contemporâneo, uma escravidão camuflada, dissimulada e periférica, cuja consumação exige punição e reparação.
Uma vez perpetrada a conduta ilícita, entra em cena o combate ao trabalho escravo contemporâneo. Trata-se de uma persecução que atua sob os prismas administrativo, criminal, civil e econômico, abrangendo medidas punitivas e reparatórias em face dos beneficiários do crime. Na prática, o cometimento do crime de trabalho escravo impõe ao seu autor, dentre outras, as seguintes sanções:
- Pagamento de multas administrativas
O combate ao trabalho escravo tem início com a ação de fiscalização promovida pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (Gefm), criado em junho de 1995 com a finalidade de coordenar a atuação fiscal e enfrentar o trabalho escravo contemporâneo por meio de uma estratégia repressiva isenta às pressões das oligarquias locais.
O Gefm possui como características o comando único vinculado à Secretaria de Inspeção do Trabalho, em Brasília, a seleção rigorosa dos seus integrantes, o sigilo total das operações e a integração entre Ministério do Trabalho, a Polícia Federal e o Ministério Público do Trabalho na efetivação das operações. Atualmente, as fiscalizações coordenadas pelo grupo possuem um caráter eminentemente interinstitucional, contando com a presença de vários órgãos estatais.
Deflagrada a operação fiscalizatória e constatada a submissão de trabalhadores à situação análoga à de escravo, o órgão de fiscalização deverá lavrar os autos de infração pelo descumprimento da legislação trabalhista, impondo multas ao responsável pela conduta ilícita.
- Inclusão do nome na “lista suja” do trabalho escravo
A denominada “lista suja” consiste num cadastro nacional onde constam os nomes dos empregadores vinculados à prática do trabalho escravo contemporâneo. A inclusão do infrator na lista ocorre após decisão administrativa que mantém incólume o auto de infração lavrado em decorrência de ação fiscal na qual tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos a trabalho escravo. O nome da pessoa, física ou jurídica, é mantido no cadastro pelo período de dois anos, ficando a exclusão condicionada à regularização das condições de trabalho, ao pagamento das multas resultantes da ação fiscal e, ainda, à comprovação da quitação de eventuais débitos trabalhistas e previdenciários.
A “lista suja” tem como objetivo dar transparência aos atos administrativos resultantes de ação fiscal, em consonância com o direito à informação e ao princípio da publicidade que rege a Administração. A Lei de Acesso à Informação (nº 12.527, de 18 de novembro de 2011) estabelece como dever dos órgãos e entidades do poder público assegurar uma gestão transparente da informação, propiciando-lhe amplo acesso e divulgação, o que deve ocorrer independentemente de solicitações, tendo como diretriz a observância da publicidade como preceito geral e o desenvolvimento do controle social da administração pública.
O acesso à informação mostra-se importante para a sociedade como um todo, inclusive ao próprio setor econômico, tendo em vista que as empresas e demais instituições dela necessitam para desenvolver políticas de responsabilidade social, gerenciando eventuais riscos decorrentes da celebração de relações comerciais com empregadores autuados por submeterem seus trabalhadores a situações de escravidão. A despeito dessa natureza meramente informativa, é inegável que empresas e bancos impõem ao infrator alguns efeitos imediatos em seu prejuízo, tal qual a restrição a crédito público e privado.
- Reclusão de dois a oito anos
No que diz respeito à responsabilidade criminal do escravagista, o artigo 149 do Código Penal prevê pena de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência. Equipara, inclusive, para fins de responsabilização penal, aquele que intermedeia a contratação ou que vigia o local de permanência para evitar eventuais fugas dos trabalhadores.
Infelizmente, ainda precisamos evoluir nessa vertente da política repressiva. É que não são muitas as condenações criminais, apesar das dezenas de milhares de resgates ocorridos somente nas duas últimas décadas. A despeito do alto número de absolvições, o cenário vem evoluindo de forma paulatina, muito decorrente do forte engajamento do Ministério Público Federal, que passou a acompanhar as fiscalizações, os resgates e os atos imediatamente posteriores, produzindo provas e colhendo os elementos necessários à instrução processual penal.
- Pagamento das verbas trabalhistas devidas
A sonegação de direitos trabalhistas é atributo quase sempre presente no trabalho escravo contemporâneo. Ao submeter alguém à situação de escravo (seja pela força, pela degradação, pela exaustão ou pela servidão), o empregador geralmente se exime do cumprimento da legislação, deixando de pagar à vítima os direitos trabalhistas que lhe são garantidos por lei.
Com efeito, ao resgatado da condição de trabalhador submetido à escravidão assegura-se o recebimento de todas as verbas trabalhistas, fundiárias e previdenciárias devidas, relativas à integralidade do período que perdurou a escravidão.
- Indenização pelo dano moral provocado à vítima
A escravização traz consigo repercussões deletérias à liberdade, à intimidade, à honra, à imagem, à liberdade de exercício de trabalho, ofício ou profissão, à liberdade de locomoção, à integridade física e psíquica. Gera, portanto, um dano extrapatrimonial – mais conhecido por dano moral – que sequer precisa ser provado em juízo: trata-se de um evidente dano à dignidade do indivíduo, através da violação ao conjunto de bens que forma sua personalidade.
- Indenização pelo dano moral coletivo
O desrespeito à legislação trabalhista pode ensejar o dano social, também conhecido como dano moral coletivo. Tratase de uma violação extrapatrimonial com repercussões difusas, através do desregramento jurídico, fazendo surgir um sentimento de indignação coletiva. Esse abalo na esfera moral da coletividade, que afeta valores coletivos, tal qual o direito humano fundamental de não ser submetido à escravidão, exige reparação.
O trabalho escravo contemporâneo talvez seja o exemplo clássico de conduta ilícita com graves repercussões que ultrapassam a esfera pessoal da vítima: trata se de uma prática perversa, condenada há mais de um século, que viola bens, valores e princípios que dão sustentação ao Estado Democrático de Direito.
O valor da indenização deve ser arbitrado com base nos seguintes elementos: grau de culpa do agente, repulsa social da conduta lesiva, extensão do dano à coletividade, capacidade econômica do responsável pela conduta ilegal e, mais importante, a finalidade punitivo-pedagógica da indenização.
- Perda da propriedade
A partir da Emenda n. 81, de 2014, o texto constitucional passou a prever a expropriação de imóveis onde for localizada a exploração do trabalho escravo, destinando-os à reforma agrária, em se tratando de propriedade rural, ou a programas sociais de habitação popular, no caso de imóvel urbano.
Trata-se de uma sanção econômica imposta ao explorador consubstanciada na perda da propriedade em que houver a exploração abusiva da mão de obra, porquanto não atingida sua função social. A medida vem sendo considerada pela ONU como um importante mecanismo legal para o combate do trabalho escravo contemporâneo, pois atua diretamente no patrimônio do explorador.
- Cassação do cadastro de contribuinte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)
A Lei n. 14.946 do estado de São Paulo, de janeiro de 2013, impede todos aqueles que se beneficiam da exploração do trabalho escravo, direta ou indiretamente, de exercerem a mesma atividade econômica pelo período de dez anos, através da cassação do seu cadastro de contribuinte do ICMS. O que significa o banimento da empresa do estado.
Atuando sob o viés repressivo na seara administrativotributária, a lei pune aquele que se aproveita direta ou indiretamente da exploração abusiva do trabalhador, beneficiando-se economicamente, portanto, de uma produção barata.
Trata-se de um avanço no sentido de buscar a responsabilização em cadeia, o que faz causar naqueles que se põem no topo uma forte coerção psicológica no sentido de tangenciar suas ações preventivas.
A lei paulista vem servindo de exemplo a outros estados da federação, que editaram leis semelhantes em seus respectivos territórios.
- Restrições comerciais decorrentes do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo
Nascido em 2005, o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo era um compromisso de livre adesão que exigia dos signatários uma série de obrigações voltadas ao enfrentamento da escravidão contemporânea, com destaque para a definição de restrições comerciais às empresas e demais pessoas identificadas na cadeia produtiva que se utilizem de práticas que caracterizam o trabalho escravo contemporâneo.
Essa relevante medida, voltada ao isolamento comercial daqueles que exploram abusivamente os trabalhadores, mostra-se importante porque, sugerindo a identificação do explorador na cadeia produtiva, preconiza que aqueles que com ele contratam são igualmente responsáveis por tal situação de violação a direitos fundamentais. O Pacto deu lugar, em 2014, ao Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto).
Avançando no combate à escravidão
O avançado conceito de trabalho escravo contemporâneo e todo o sistema de políticas públicas voltadas ao seu enfrentamento elevam o Brasil a país-modelo, em âmbito internacional, no combate a essa prática. A ONU e a Organização Internacional do Trabalho destacam que a implantação de determinados mecanismos de combate, inexistentes em outro lugar no mundo, revelam que a erradicação do trabalho escravo contemporâneo recebeu tratamento prioritário pelo Estado brasileiro.
As organizações internacionais ressaltam, no entanto, a importância de se avançar constantemente no combate a esse crime, o que implica resistir a eventuais tentativas de retrocesso. Em outras palavras, é preciso lutar contra as vozes dissonantes, contra aqueles que se negam a enxergar a realidade pungente da escravidão, contra os entraves constantemente criados por aqueles que representam quem domina, explora e escraviza.