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Comida no cotidiano | Lançamento

Ainda que não trabalhe em cozinha, nem seja um apaixonado por comer – desses que acordam planejando o almoço com o café da manhã decidido no dia anterior –, mesmo que não seja fanático por ingredientes e receitas, nem reserve suas viagens e finais de semana para experimentar novos pratos, da mesma forma, você deve pensar sobre comida várias vezes ao dia. Mais do que pensar, você com certeza toma decisões relacionadas a ela. Diversas, talvez uma centena, todos os dias, sem exceção.

Comida no cotidiano | Lançamento

Acordamos fazendo escolhas alimentares: tomo café da manhã agora ou depois? Fruta, cuscuz, tapioca ou pão? E se eu pular direto para o almoço? Por escolha, por falta de tempo ou por necessidade? Por falar em almoço: sozinho ou em família? A que horas? Em casa ou na rua? Cozinhar ou pedir entrega? Pelo aplicativo ou no restaurante do bairro?

Comer requer escolhas e comemos por muitas razões. Quando bebês choramos alto exigindo comida, talvez sem nem saber por quê. Não tarda para construirmos e ampliarmos nossos motivos. Aprendemos o que gostamos e criamos expectativas. Entendemos que podemos comer por fome, por gula, para ter direito a sobremesa, para flertar, para “tirar esse problema da frente”, para não pegar mal. Ainda que seja tão fundamental quanto respirar, tão vital e cotidiano quando dormir, que seja condição para estar vivo, não comemos apenas para preservar a vida. Ao menos, não deveríamos.

Se por um lado comer é instintivo e obrigatório, por outro, a comida é uma construção histórica e cultural. O que comemos, como, com quem, onde, quando, baseado em quais regras e quais conhecimentos torna o conceito de comida mais intrincado do que a mecânica ingestão de ingredientes. Essa complexidade cultural construída em torno e através da comida faz com que ela seja, entre outras coisas, uma das dimensões formadoras das identidades individuais e coletivas.

Comemos para sobreviver, mas também para sentir prazer, para celebrar, para nos despedir, para homenagear, para pertencer. Comemos para impressionar, para apoiar negócios, para selar acordos, para nos distrair e por compensação depois de um dia exaustivo. Comemos por amor e também por raiva. Com prazer e com culpa. Todo sentimento vez ou outra recorre ao aconchego na ponta do garfo. Do luto ao êxtase, passando pela resignação.

Escolhemos nossa comida dentro de um conjunto de opções disponíveis, determinadas por características demográficas e socioeconômicas, como raça, classe social e gênero, por exemplo. E, ao olhar para a comida com essa lente, veremos que um número crescente de pessoas, no Brasil e no mundo, está cada dia mais cerceado em suas possibilidades de escolha, enfrentando diariamente a iminência ou a realidade da fome. Na outra ponta, as toneladas de alimento desperdiçadas diariamente ao longo das cadeias de distribuição nos fazem pensar que não falta alimento, o que falta é garantir o acesso a ele.

Falar sobre comida nunca é simples, porém é quase sempre sedutor. Pelas boas memórias que nos desperta, pela fotografia histórica que nos proporciona, pela expectativa de mudarmos o mundo através dos nossos pratos. Pela forma como a comida está refletida na linguagem, na literatura, nas artes, na economia, na organização das cidades, na tecnologia, na expressão “arroz com feijão” – que nos fala sobre aquilo que é básico –, na música que canta a manufatura da mandioca, da manipueira ao tucupi, nas delícias que fazem cheirar as páginas dos escritores modernistas, na garantia de sobrevivência de comunidades tradicionais – através dos produtos das suas roças. É também menos romântica. É sobre guerra, desigualdade, exploração humana e animal, esgotamento de recursos não renováveis, escravidão.

E é isso que ofereceremos nas próximas páginas: uma conversa sedutora como um ensopado sedoso, que nos conduzirá suavemente a pensar a cozinha que compõe nosso cotidiano. Uma cozinha, portanto, brasileira – com as multiplicidades que esse conceito carrega, seja em suas raízes, histórias, ingredientes, técnicas e pratos, espalhados pelo nosso território ou carregados por seus emigrantes. Essa é a cozinha que começa a ser feita na terra, não no fogão. Afinal, a origem da comida é a lavoura, e o caminho são os saberes tradicionais trazidos para a contemporaneidade com ajuda das novas tecnologias. Comida que nos lambuza de Brasil e que também se desafia a ser uma plataforma de transformação social. Cozinha brasileira com cara e cheiro de fresca, que espelha um modelo de sociedade e que dá água na boca só de imaginar.


Instituto Brasil a Gosto – Fundado pela chef Ana Luiza Trajano, o Instituto Brasil a Gosto tem como missão promover a cozinha brasileira. Para isso, desenvolve atividades de pesquisa, educação, criação de produtos e apoio a produtores, assim como curadoria de conteúdo gastronômico. Esse trabalho é amplificado por uma plataforma digital, composta por site, redes sociais e canal de vídeos; livros; cursos; palestras e parcerias.

Max Jaques é chef de cozinha e pesquisador no Instituto Brasil a Gosto, onde desenvolve investigações para a salvaguarda e divulgação do patrimônio agroalimentar brasileiro. Estuda e apresenta a cozinha brasileira como um eficiente mecanismo de desenvolvimento econômico-social.