Durante a quarta viagem de Cristóvão Colombo ao continente americano, entre os anos de 1502 e 1504, o navegante e sua tripulação se admiraram ao encontrar, no golfo do México, uma grande canoa que tinha uma cabine ao centro e mais de 40 pessoas a bordo; entre elas, seu proprietário, sua família, empregados, piloto e remeiros. No entanto, o que mais impressionou os espanhóis foi a carga: mantas e roupas de algodão semelhantes às suas, machados de pedra, objetos de metal, uma bebida fermentada que chamaram de “cerveja da terra”, vasilhas de cerâmica, armas de madeira com um tipo de pedra cortante em suas extremidades e sementes de cacau. Foi o primeiro e único contato de Cristóvão Colombo com uma civilização ameríndia, a Maia. Em menos de duas décadas, a região em que os maias habitavam já estaria sob domínio espanhol.
Imaginemos que estamos nos anos 700 d.C. O leitor logo poderá pensar na invenção da pólvora pelos chineses, na ocupação árabe da península ibérica ou ainda na coroação de Carlos Magno como rei dos povos francos. Isso porque sempre fomos ensinados a direcionar nosso olhar histórico para o Velho Mundo. Mas, e se o cenário fosse uma floresta tropical dominada por centenas de cidades densamente povoadas, com planificação urbana e arquitetônica, e repletas de pirâmides que ultrapassam 60 metros de altura? Um cenário que exibia cidades com mais 100 mil habitantes (Paris e Londres contavam com não mais do que 20 ou 30 mil)! E para deixar esse quadro tropical ainda mais complexo, há nele o registro da existência de reis. Reis? Isso mesmo. Tais cidades na floresta tropical do Novo Mundo eram governadas por soberanos poderosos, que mandavam construir monumentos feitos de pedra para perpetuar seus nomes e a descrição de seus matrimônios, bem como suas vitórias nas guerras.
Cidades que comemoravam datas importantes com sacrifícios humanos em honra a seus deuses, em cerimônias em que os próprios reis tinham seus órgãos genitais perfurados com uma espinha de peixe para se obter sangue, “o líquido vital”.
Cidades que produziam livros confeccionados com uma massa moída de plantas laminadas misturadas com cal, formando uma superfície lisa sobre a qual sacerdotes redigiam textos a partir de um alfabeto fonético como o nosso. Os escritos versavam sobre as genealogias dos reis, o funcionamento do calendário, a observação astronômica dos movimentos do Sol, de Vênus e até de Marte.
Um mundo verde cortado por diversos rios utilizados por navegantes que faziam comércio com regiões situadas a mais de mil quilômetros de distância, cruzando desertos, montanhas e terrenos cobertos por neve.
Seria essa descrição possível ou somente uma peça de ficção? Se o leitor optou pela segunda hipótese, errou. Essas cidades existiram e seus habitantes constituíram grandes civilizações no continente americano, conhecidas como Maia, Asteca e Inca.
Essas sociedades eram formadas por povos que receberam o nome de “índios” no século XVI, quando Cristóvão Colombo visualizou terras que acreditou ser a Índia, região muito cobiçada pelos europeus por causa do lucrativo comércio de especiarias do século XVI. A partir de então, o termo “índio” consagrou-se na literatura e passou a referir-se a todas as culturas que existiam na América. O nome genérico (todos eram “índios”) esconde a grande diversidade étnica que havia no continente americano do Alasca à Terra do Fogo. Por sua conotação pejorativa e totalmente fora do contexto histórico e geográfico, a palavra “índio” cairia em desuso em favor dos termos “indígena”, “ameríndio” ou “povo originário”, mais usados hoje em dia.
Para se referir à região onde viviam as populações indígenas antes da Conquista, na academia científica, nas universidades e nos livros didáticos, várias terminologias são empregadas: “América Pré-Hispânica” (referindo-se ao período anterior à chegada espanhola), “América Pré-Colonial” (sublinhando o período anterior ao processo de colonização europeu) e, o mais difundido, “América Pré-Colombiana” (em clara associação com a chegada de Cristóvão Colombo em 1492 à região das Antilhas). No entanto, alguns historiadores chamam a atenção para o fato de que essas terminologias estão centradas nos europeus e, numa visão crítica, propõem termos que consideram “decoloniais”, por exemplo, “América Antiga”. Ainda há a expressão “América Pré-Histórica”, mas essa é pouco usada atualmente, uma vez que alude a povos que viveram antes da escrita, e hoje se sabe que muitos dos ameríndios, como os maias, por exemplo, já adotavam sistemas de escrita sofisticados.
Algumas áreas da “América antes de ser a América” mereceram atenção especial por parte dos estudiosos, em função da importância das civilizações lá desenvolvidas. É o caso do México e de regiões onde se encontravam civilizações pré-colombianas que se tornariam muito conhecidas, as já citadas Maia, Asteca e Inca. Mesoamérica, o nome dado a essa área, foi proposto pela primeira vez em 1943 pelo antropólogo Paul Kirchhoff, que procurou descrever a partir do registro etnográfico as culturas que nela se desenvolveram.
É claro que em qualquer escolha de termos que façamos encontraremos limites. Nenhum termo dá conta de abrigar a grande diversidade étnica e linguística dos grupos humanos que viveram na América antes da invasão europeia. É importante ter consciência disso. À época da chegada dos europeus, algumas das sociedades ameríndias já eram civilizações milenares, tendo passado por momentos de auge e de colapso ao longo de sua história. Algumas já tinham até desaparecido. Outras sociedades, contemporâneas às grandes civilizações encontradas pelos europeus, eram simplesmente grupos caçadores-coletores. Mesmo a história das cidades da selva tropical lembra a trajetória de cidades do Velho Mundo, como veremos. O contato com os europeus foi um capítulo a mais em sua existência – importante, muitas vezes decisivo, até trágico, mas apenas um capítulo a mais.
Felizmente, neste livro, há espaço para observarmos a história mais antiga da América em que um rico mosaico cultural criou o contexto para que grandes civilizações se originassem e se desenvolvessem. Como eram constituídas? De que viviam? Como ocupavam os espaços geográficos? Como organizavam o poder político? Que religiões praticavam? Desenvolveram as artes? Essas são algumas das questões abarcadas nesta obra.
Conhecer a trajetória das civilizações americanas antigas é conhecer um pouco mais de nós mesmos, descendentes culturais da pluralidade de povos que viveram nas Américas.
Alexandre Guida Navarro é professor associado IV do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão. Possui mestrado em Arqueologia pela Universidade de São Paulo e doutorado em Antropologia pela Universidad Nacional Autónoma de México. É também professor colaborador da Pós-Graduação em Antropologia na University of Illinois, em Chicago, além de pesquisador associado do Underwater Archaeology and Laboratory for Dendrochronology, Office for Urbanism, em Zurique, Suíça. É coautor do livro As religiões que o mundo esqueceu, publicado pela Contexto.