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Chuva e solidão | Rubens Marchioni

Um pouco antes que Higino saísse para fazer trilha e depois caísse na piscina, foi lançada a segunda edição do dilúvio bíblico, revista e ampliada. A tempestade, incluindo vento robusto trabalhando em conjunto, agia como se estivessem dando um banho com uma lavadora de alta pressão no universo. Era possível visualizar uma girafa tomando água sem ter de abaixar a cabeça, imagine!

Dentro de um moletom azul desbotado, Higino estava em casa, na sala que dispensava outros cômodos, a TV e a vitrola vintage desligadas. As janelas balançavam ao som do vento e golpeadas pela chuva forte. Uma lagartixa esperta e amedrontada corria, meio sem saber para onde ir, expulsa da parede externa da casa, porque “lagartixa também é gente”, como dizem, embora não seja filha de Deus, que aí já seria forçar a amizade.

Enquanto Higino olhava para o animalzinho perdido, a lâmpada apagou, escurecida por um raio que se atirou perto dali e deixou a cidade à luz de velas sem que celebrasse algum fato muito significativo.

A casa do joão-de-barro, construída com matéria prima da melhor qualidade, detalhe por detalhe, no terreno de um galho de paineira, até pensou em se soltar, mas não conseguiu, permaneceu quieta no seu canto.

A macieira… bem, a macieira, coitada, já teve dias melhores. O que se sabe é que ela não se sentiu nada confortável sendo apedrejada, despida e com toda a nudez dos seus galhos exposta e revelada a quem desejasse ver. O pé de jatobá lidou bem com a tempestade.

Chuva e solidão | Rubens Marchioni

Pensei nas mansões americanas, nas casas construídas de madeira, drywall, material que leva apenas placas de gesso, muito usado na construção de paredes, tetos e forros, segundo me confidenciou o Google.

O corpo mediano e as mãos largas e bem cuidadas de Higino deram graças a Deus pela falta de energia, que criava para ele a situação necessária para que a louça amontoada na pia ficasse para depois, quem sabe para quando sua filha chegasse do trabalho num banco estatal.

O nariz pontiagudo de Higino chegou na sala alguns segundos antes de todo o corpo do solitário habitante daquele lugar, agora com jeito de Arca de Noé 2.0.

Seus olhos brilhantes, sob sobrancelhas grossas, foram exigidos ao extremo para encontrar uma caneta e um papel, onde anotaria uma ideia recém-chegada, talvez trazida pelo ambiente encharcado. A cena envolvia uma carruagem chegando com uma jovem, o rosto exibindo uma beleza ímpar, emoldurado por cachos que pareciam ter saído das mãos de um mestre artesão. Depois, e só depois, Higino procuraria se lembrar o nome do filme em que havia visto essa cena, agora trazida à sua mente de cinéfilo.

Depois sentou-se ao piano, arregalou os olhos pela centésima vez e tentou criar, ao vivo e sem nenhuma cor, a trilha sonora daquele momento em que água e vento cantavam juntos. Tocou. Tocou. Envolveu-se. Sentiu-se regendo a Orquestra Filarmônica de Viena. Viajou sem sair do lugar; porém, o trovão roubou a cena, impondo-se como percussão intrometida que alterava o ritmo da canção produzida sob efeitos especiais vindo das nuvens escuras. Voltou, mas desejava permanecer nesse mundo imaginário, onde se sentia ainda mais integrado às forças do universo. O cachorro vira-lata estava com preguiça de latir.

Lá fora uma pedra de gelo, do tamanho de um ovo de codorna, estilhaçou o vidro do seu carro e disparou o alarme. Ao contrário do trovão que, embora inesperado, se somava à melodia criada em tempo real por Higino, aquele ruído apenas o distraía e impunha a imagem de um veículo transformado num brinquedo à deriva, submetido pela força da natureza e encontrado depois, sabe-se Deus quando e em que condições materiais.

Higino pegou um guarda-chuva e um capuz amarelo, enfiou-se numa galocha, abriu a porta da sala, recebeu no rosto um jato de água e avançou na direção do carro. Para entrar e tomar as providências necessárias, precisava, antes, abrir a porta, mas isso aumentaria ainda mais a inundação do veículo. Se corresse, o bicho pegava. Se ficasse, talvez o bicho repensasse a própria valentia e decidisse se acalmar e reavaliar sua força real. Não era o caso

Entregou tudo pra Deus e voltou, como um atleta que salta obstáculos sem qualquer cerimônia. Abriu novamente a porta da sala. Uma rajada de vento jogou no chão o pequeno vaso de vidro com suas flores bancas e folhas verdes, presente de uma amiga. Com as mãos no bolso, Higino olhou para a guitarra azul ao lado da prancha de seu filho e pensou na sua inutilidade – fez isso apenas porque não gostava de saber que o rapaz adorava surfar, bater de frente com ondas gigantes e encarar os perigos escondidos pela força do mar.

A piscina onde se sentia confortável, com absoluto domínio da situação, se afogava no aguaceiro, deixado pela chuva que fora cantar em outra freguesia – “Que Deus a tenha, porque já tive bastante”, Higino pensou, enquanto via a enxurrada sentindo-se a substituta da chuva e encarregada de fazer a segunda parte do trabalho: renovar o lixo acumulado ao redor da casa e na calçada que vencia seu primeiro teste de resistência, entregando tudo a um bueiro com capacidade questionável de filtrar o que recebia em pouquíssimo tempo.   

Melancólico e com as mãos no bolso, Higino contemplou um porta-retratos sobre o rack, ao lado da TV. A figura eterna de Julieta descansava indiferente a tudo e a todos. o silêncio em que agora a foto permanecia, apenas falava de um tempo feito de cinema. Falava de chopinho depois do expediente na agência de comunicação onde trabalhava como tradutora e intérprete. Falava dos mergulhos e da caipirinha modesta sob o guarda sol, além da sua certeza na força supostamente escondida nas entranhas de pirâmides e cristais como forma de reorganizar a vida.  

Na prateleira, pegou a cafeteira italiana, encheu de água o tambor, colocou pó de café de primeira linha, acendeu o fogo com um palito de fósforo estratégico e esperou o suficiente para olhar tudo e nada com a xícara na mão.

Até pensou em tomar banho frio, mas concluiu que isso seria ir além das suas possibilidades, dos seus recursos físicos, da sua ideologia, das suas crenças eternas. Desistiu. No closet, pegou uma jaqueta cáqui, a máquina fotográfica e saiu.

A chuva havia se acalmado e o céu estava exausto. O sol, no entanto, ainda refletia, analisava o cenário e não estava convencido de que investiria toda a sua força e claridade naquela situação. Mas era possível colher imagens de galhos caídos, flores trituradas pelo granizo, roupas jogadas a uns metros dali, tingidas de marrom. A begônia e a orquídea amarela ficaram desfiguradas.

Um pintassilgo solitário sobrevoou o local e lhe trouxe a lembrança de quando Julieta desejou fazer uma tatuagem com esse tema no ombro esquerdo, por acreditar que assim aquela ave seria mantida bem perto do seu coração.

Como se também ele fosse um pássaro, Higino tratou de voar daquela cena e fugir de lembranças que o deixaria desconfortável. Pegou o carro, uma SUV cheia de uma valentia que ignorava barro e buraco, e foi para a cidade. Comprou uma revista, sentou-se em uma das mesas vazias na calçada, pediu uma água e um café com chantilly, mas isso também o entregava a imagens nem sempre desejadas.

Como bom Operador da Bolsa de Valores, ele encharcou-se com notícias impressas a respeito do instável mercado financeiro, o comportamento das bolsas de valores mundo afora e discutiu consigo mesmo sobre as possibilidades remotas de ir ao cinema logo mais à noite, aproveitando para jantar fora e visitar uma exposição sobre a obra de Picasso e Braque, os dois maiores pintores cubistas. Depois ligou para o engenheiro que começaria a ampliação da sua casa e faria uma reforma suficiente para que ela se despedisse do surrado estilo dos anos 1980. Conversaram rapidamente.

– Thales, é você? Não acredito! É mais fácil falar com o papa – disse, numa gargalhada.
– Sou eu, prezado cliente, sou eu… – gargalhou de volta para o amigo de algumas décadas.
– Quando a gente pode conversar sobre o nosso projeto? Você tem compromisso no sábado à tarde? Que tal um chopinho sem pressa pra gente trocar figurinhas?
– No lugar de sempre?
– Claro, no lugar de sempre. A gente se fala.

Saiu e bem poderia ter ido ao cinema, ou à exposição, ou para casa, ou para lugar nenhum.

Andou pela cidade, saindo dessa avenida, pegando aquela alameda, entrando à direita numa rua arborizada e atrapalhando o tráfego de quem desejava apenas chegar.

Na cama, deu novamente de cara com a velha pulga de sempre.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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