Era o ano de 1976, e na sua composição ele exibia traços fortes de chumbo – todos eram culpados até prova em contrário, e essa prova poderia nunca dar as caras.
Germano, descendente direto de alemães, era um experiente jornalista, dedicado ao desenvolvimento de pautas sobre Economia e Mercado. Ainda não havia elaborado os sentimentos deixados pela perda de um filho pois havia deficiência nas informações fornecidas pelo hospital onde ficara internado.
Agora o jornalista trabalhava em uma publicação dirigida aos profissionais da área da saúde. Aqui e ali, seus familiares perguntaram-lhe as causas desconhecidas dessa guinada no final da carreira. Havia suposições, as quais, no entanto, ele não confirmava.
Sempre que visitava hospitais em busca de conteúdo para fazer uma nova matéria, Germano se dava conta de que alguns funcionários tinham dificuldade de relatar os fatos mais relevantes. Aquilo não perdia uma oportunidade de lembrá-lo do que acontecera com seu filho e a maneira como chegou a um fim precoce e evitável, não fosse uma lamentável falha de comunicação.
Certo dia, Germano teve a ideia de reunir artigos e outros materiais, alguns com aspecto didático, que lhes dessem conhecimentos básicos para o desempenho da tarefa de compactar e transmitir fatos ocorridos naquela casa de saúde.
Tudo corria bem, mas quando se dirigia ao hospital onde encontraria Solange, uma das pessoas principais para receber mais alguns recortes, parou para tomar um café bem perto do jornal. E, descuidado, esqueceu o envelope sobre o balcão, seguindo em frente com outro, semelhante. Voltou, ansioso e se culpando pela pouca memória. Onde teria deixado, afinal?
Sabendo apenas que o portador trabalhava na mesma empresa, mas ignorando seu nome, o dono da cafeteira providenciou para que o envelope fosse entregue para Denise, por acaso a chefe de Germano e conhecida pela frequência ao seu estabelecimento.
Uma vez aberto, o que fez por motivo de segurança, Denise logo viu que não se tratava de uma ameaça, como era comum naqueles tempos sombrios de ditadura. Colocou-o sobre a mesa de trabalho para entregá-lo a Germano, que estava almoçando num restaurante a algumas quadras dali.
Mesmo quando voltou, ele não foi informado sobre o que havia acontecido, incluindo o encontro do material, agora em poder da sua chefe. Apenas seguia se perguntando sobre o paradeiro do envelope que era para ter sido entregue à Solange, ansiosa por recebê-lo.
Dois dias depois, assim que entrou na redação, Germano foi chamado à sala de Denise. Ela lhe entregou o envelope. Com voz grave, falou sobre os riscos daquela iniciativa. Lembrou-o de que o regime transformava em monstro o que era apenas a sombra de um pequeno e despretensioso objeto.
Eis o seu conflito. Germano teve medo do que poderia acontecer. Argumentou. Empenhou-se em levá-la a aceitar seu trabalho. Mas não teve sucesso.
Ele indignou-se mais com o fato de se sentir impedido de produzir algo que considerava essencial do que com a superior, que podia ter suas razões para questionar a circunstância em que o trabalho era feito.
Sem ter uma saída, pediu ajuda a Rodriguez, amigo e professor de jornalismo. Imediatamente, ele se prontificou a editar o material e providenciar sua impressão numa gráfica rápida. A partir daí, faltaria apenas fazer a respectiva distribuição do conteúdo aos seus destinatários, tarefa da qual Germano se encarregaria.
Algum tempo depois, o trabalho inspirou os profissionais beneficiados pela iniciativa do jornalista e do professor. Isso serviu como ponto de partida para que Solange, uma afrodescendente orgulhosa de sua origem racial, colocasse em prática seu espírito criativo. Ela juntou ideias aparentemente distantes e criou um grupo de estudos de comunicação. Inicialmente, ainda na fase de teste, o objetivo dos encontros seria voltado apenas àquele grupo restrito. Depois, e isso estava no seu horizonte, com uma programação mais abrangente, o acesso se tornaria possível a outros profissionais da área.
A direção e a coordenação ficaram a cargo de Germano e do professor Rodriguez. Cada vez mais, os dois mergulharam na pesquisa em busca de informações para abastecerem-se de novos conhecimentos. Era preciso garantir a adequação de cada nova fase daquela atividade, que se avolumava sem trégua.
Germano e o amigo professor celebraram essa nova conquista. Afinal, eles haviam derrubado boa parte de um obstáculo fundamental. Quem sabe, num dia desses, fazem uma reportagem sobre a trajetória desse projeto diferenciado. Agora, distante dos anos de chumbo.
Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao