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Até a banalidade do gesto é um ato político | Rubens Marchioni

A FILA NA padaria ou a que se projeta na direção do guichê onde será comprado um bilhete corriqueiro, tudo isso oferece informações banais, mas não menos importantes, sobre o comportamento humano. A gente se revela sem fazer alarde.

Meu interesse está centrado em mim mesmo. Meu interesse está centrado no outro. Talvez porque, naquela pessoa, o que me reflete diga algo muito revelador sobre mim. Mais do que me surpreender, incomoda-me visceralmente. Provoca uma sensação de prazer ou de tristeza – essa última, com poder de me levar ao pecado, talvez da desesperança, segundo sentenciou Santo Agostinho.

Tudo, até a banalidade de um comportamento, me traduz. “Traduttore, traditore”? Olhar o outro é vislumbrar parcelas da realidade. Ser visto é fazer o mesmo jogo. Tradução recíproca. Nisso, a “polis” se constrói. As relações humanas, portanto, são políticas. A neutralidade absoluta não existe – “viver significa tomar partido”, advertiu Antonio Gramsci. Podemos permanecer indiferentes. Invisíveis, nunca. Traduzimos e somos traduzidos. Mesmo sob o risco da traição, que pode se revelar inevitável.

Viver, portanto, é tomar decisões. E nessa área queremos garantir, ao menos, a experiência de honestidade intelectual. Salvaguardar o mínimo de coerência interna. De outro jeito, a vida se tornaria insustentável. Como caminhar sob o peso massacrante de tanta contradição? Precisamos da prática desses valores como recurso para uma existência com significado. Inclusive, porque não somos seres isolados; antes, fazemos parte de uma gigantesca teia de relações – fomos globalizados.

Na aldeia ou no continente, enquanto vivemos, nossas necessidades e desejos são os motores que nos conduzem para a dimensão de prazer maior, realizada em cada troca, ainda que não calculada. No entanto, nosso comportamento, nem sempre favorável à experiência de prazer, por vezes inviabiliza essa prática. Fosse de outra maneira, sempre buscaríamos a parceria colaborativa para a realização dos projetos mais significativos. O trabalho seria fruto da união com aquele que miramos na fila da padaria ou do guichê – com todo ser humano representado nessa minúscula parcela.

Mas, afinal, o que impede a nossa caminhada na direção dessa plenitude essencial? O poder que é capaz de promover pode anular o progresso conquistado. Fazer política é a arte de construir o mundo desejado pelo cidadão – o que está na fila, na banalidade dos seus gestos, e eu, que, silenciosamente, integro esse grupo. É da política a missão de produzir vida com qualidade. Mas quem faz a política? Eu. O outro. O poder constituído. É desse conjunto que nasce a possibilidade de respeito aos direitos humanos fundamentais.

Com a criatividade necessária para enxergar o que o outro reflete, e um senso de espiritualidade que nos eleve as expectativas, podemos entender o discurso da realidade que nos circunda e exercer nosso papel de agentes transformadores em todos os segmentos. A micropolítica tem lá seus poderes, e eles não podem ser subestimados. Ela está na fila, espera pelo momento de ingressar e reclama o seu espaço.


RUBENS MARCHIONI é palestrante, publicitário, jornalista e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Autor de Criatividade e redação, A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected] — http://rubensmarchioni.wordpress.com