Fechar

Assim na terra como no céu | Rubens Marchioni

Desci e desci um pouco mais, e de pouco em pouco atingi o rio, tão pouco profundo que uma peneira não voltaria sem peixe depois de tocar-lhe o solo barrento.

O cascudo tem casca muito grossa e uma carne saborosa e pequena, que a gente come devagar para não sentir saudade tão cedo. O bagre é diferente. No lugar do jeito pacato do cascudo, ele tem ferrões poderosos, e gosta de furar a mão do pescador cheio de algumas boas intenções, muito amadorismo e descuido – o sujeito é rápido.

Mas também havia lambari na peneira que voltava do seu mergulho induzido, em busca de alimento que não faria um jantar, apenas um tira gosto que de resto não tirava nada. Frito, sequinho, com cachaça ou com vinho, ele fazia barulho na boca e uma parcela se enfiava entre os dentes que não conheciam creme dental, luxo exclusivo das pessoas que moravam onde havia ruas demarcadas com nomes célebres, iluminação elétrica, geladeira Frigidaire e aqueles vasos de vidro colorido que depois soube tratar-se de cristais Murano, mas para mim, na época, isso não teria feito a menor diferença.

Assim na terra como no céu | Rubens Marchioni

Meu pai estava do outro lado do rio, onde nossa chácara, com seus 3 alqueires, continuava – sim, éramos donos de terras, quase latifundiários, veja só.

Ele e um cavalo preparavam a terra para receber sementes plantadas com uma pequena máquina manual que, no entanto, sabia jogar em cada cova somente o número de sementes necessárias para gerar um pé de milho, ou de arroz, ou de feijão ou não sei do quê, sem pretensões de chegar ao Porto de Santos – bastava que o Thales armazenasse a colheita no galpão da sua máquina de beneficiar.

Dessa vez não pude colaborar. Eu já estava em casa com os peixes. Lá fora, o céu havia providenciado um cenário costurado com nuvens escuras, muito escuras, escurecendo o horizonte e fazendo alguém pensar no que só depois eu soube que se tratava de uma Arca,  projetada com design assinado por Noé, o grand carpinteiro, avançado demais para a época.

Minha irmã sequer havia saído de casa; ela já estava devidamente guardada, menina-mãe que nada sabia a respeito de colocar filho no mundo, mas em tudo empregava o zelo protetor do qual nunca esqueci.

Na minha casa havia alpendre, que em nosso dialeto chamávamos “área”, e de lá observávamos o céu, os eucaliptos, a grande paineira e o rio, que por vezes assumia ares de mar e deixava bem claro quem é que mandava naquele pedaço, em dias de chuva forte.

Não caía nenhum “toró”, que isso é coisa de cidade grande. O que acontecia, por lá, era “tempo brábo”, assim, com esse acento que parece um raio caindo sobre a letra. Chuva era chuva, mais forte, diferente de chuvisqueiro. Garoa não havia, o lugar estava a centenas de quilômetros da Terra da Garoa.

Chuva de granizo? O que é isso? Os meteorologistas têm muito o que aprender a respeito do assunto. Na minha casa acontecia “chuva de pedra”, objetos com cara de vidro que depois a gente chupava para ter ao menos uma noção do sabor d uma pedra de gelo, igual àquela Made in geladeira urbana da velha senhora, que por vezes nos franqueava esse luxo. “Brigado, dona Augusta, Deus lhe pague!” – dizia meu irmão, um pouco mais velho.

Da área – tudo bem, do “alpendre”, ou da “varanda” – eu já havia me deliciado vendo a água forte correndo sobre o leito do rio, esparramando-se na sua generosidade fecunda e levando galhos, pequenos troncos, pequenas plantas, nenhum colchão. Nenhum pneu. Nenhuma garrafa pet – em minha primeira experiência com uma Coca Cola, na casa de um bancário, ela era de vidro mesmo, que foi o que Deus criou e o homem adulterou para que fosse superada pelo plástico e por um nome americano metido a besta.

No escuro da nossa casa, distante das luzes da cidade, era impossível observar qualquer fenômeno natural que não fossem lindos relâmpagos, efeitos especiais desenhados no céu, originais e sem tecnologia, que isso nem ao menos existia com esse nome.

Se disser que eu vivia num lugar bonito, amplo e generoso, seria redundante. Porque depois desse primeiro espetáculo, vinha a constelação. O céu ficava inundado de estrelas, uma se acotovelando harmoniosamente com a outra, todas querendo brilhar e brilhando ao mesmo tempo, porque a noite era ampla e o céu sem limite, colorido de um azul impecável.

Era lindo observar aquela constelação, mistério revelado talvez para mostrar nossa insignificância humana e o poder absoluto de Deus, como numa catequese coletiva.

E eu, menino ainda, teologava, teologava pequeno diante do Absoluto que só depois entendi um pouco melhor, em livros de teologia – eles não eram cheios de estrelas, relâmpagos, trovões, chuva forte, aroma de flor de café ou de laranjeira, apenas lotavam suas centenas de páginas com palavras, algumas em latim, outras tantas em grego e hebraico, talvez para dar mais autoridade e credibilidade à mensagem.

No céu da minha cidade só faltava aparecer a pergunta compacta de Deus: “Entendeu?” Ao que, depois, eu bem poderia responder dizendo algo elaborado como “Deus eterno, luz do universo, que me sonda até mesmo na minha escuridão e ilumina a minha vida ad aeternum, amém”.

Mas eu ainda não conhecia esse jeito sofisticadamente romano de dizer frases com palavras exatas, gramática perfeita e uma pitada de Latim. Então me contentava com o fato de ser apenas um menino que gostava de pescar de peneira e fazer estatuetas de cavalo, boi, vaca e carro de boi, sob uma enorme laranjeira e com um barro fornecido a custo zero pelo rio que também me fornecia peixes e água para um mergulho no fim da tarde calorenta.

Naquele tempo eu trabalhava essa matéria prima fascinante sem me dar conta de que se tratava de um “produto de alteração de rochas quartzo-feldspáticas, como granitos e gnaisses”, especificação gloriosamente revelada pelo “deus Google”, deus do conhecimento humano a quem neste século rendemos graças. 

Um dia conheci Higino. Ele era um jovem profissional que despertava admiração. Trabalhava no cartório da cidade e poderia desafiar até mesmo a velocidade da luz quando seus dedos tocavam os teclados da máquina de escrever, uma velha Remington, antecipação do que no futuro seria um computador com impressora acoplada.

De um lado da estrada estávamos nós e nossos lápis, alguns sem ponta, grosseiramente apontados por uma gilete quebrada ao meio para que mais alguém pudesse usar esse instrumento precioso e perigoso, ou por um canivete. Do outro, o mestre da datilografia, que nem aprendera no curso ministrado pela escola instalada numa área reservada, ao lado da única relojoaria da cidade.

Dois mundos diferentes. A conta não fechava. Eu não sabia o que era um teclado, e Higino não fazia estatuetas como as minhas que, ao menos para mim, só faltavam mugir e ranger. Não gosto nem de imaginar a qualidade sofrível dos estilingues que ele produziria, se comparados aos meus, feitos na adolescência, que bem poderiam receber o sofisticado logotipo Louis Vitton e serem vendidos em algum Iguatemi.

Fui para escola, diziam que eu tinha de ser alfabetizado. Os globos pendurados no teto da classe eram enormes e balançavam, ameaçadores, sobre nossas cabeças em dia de “tempo brábo”. Em situações críticas, a professora nos dispensava mais cedo, mas a agenda da chuva não esperava eu chegar em casa e então me escondia em qualquer lugar, embaixo de árvores e, às vezes ensopado, apenas tremia de medo e de frio. 

A vida na cidade ficou para depois. O primeiro emprego, aos 11 anos, também esperou, porque eu ainda não estava preparado para essa empreitada feita de horários, patrões, repreensões, brincadeiras de mau gosto e tudo o mais que aos poucos me amadurecia antes da hora.

Então saí em busca dos meus próprios caminhos – não vou dizer que isso daria um livro porque não gosto de clichês. Mas deu pelo menos um conto.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.