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As margens do discurso | Lançamento

Falar em “marginalidade” no âmbito das Análises do Discurso (principalmente as vertentes que se intitulam críticas) remete primeiramente a questões sociais de grupos excluídos. Esta coletânea não se concentra nesse tipo de discussão, mas toma o próprio campo de investigação como um universo em que algumas zonas (conceitos e corpora) são colocadas à margem, ignoradas ou desconhecidas.

Os textos que compõem este livro foram publicados em francês pelo autor em diversas revistas virtuais de Linguística e Análise do Discurso (AD), excetuando-se dois deles: o capítulo de livro “As duas restrições da polêmica”, publicado em espanhol, e o artigo em inglês “Ampliando o campo da Análise do Discurso”. Traduzidos, estudados e discutidos por membros do grupo de pesquisa Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), da Universidade Federal do Ceará, seu enfeixamento em um livro surge da confluência de dois fatores: enquanto as problemáticas de nossas pesquisas deparavam-se com “lacunas” e mobilizavam e adaptavam alguns conceitos de Dominique Maingueneau pouco discutidos encontrávamos também textos do autor em línguas estrangeiras que lançavam luz sobre os temas.

As margens do discurso | Lançamento

Durante os ciclos de debate do grupo, notamos que essas ausências revelam-se sintomáticas de certa tendência canônica de recepção acerca da abordagem enunciativo-discursiva de Maingueneau: a de privilegiar e fazer repercutir os conceitos supostamente mais amplos, aqueles que serviriam para todos os enunciados. O próprio autor constantemente alerta para o “risco”, decorrente da institucionalização da AD, de tentar ajustar os objetos aos preceitos teóricos. É para mostrar a readequação das ferramentas que Maingueneau desenvolve as análises desses capítulos, como respostas condizentes a novas problemáticas. Desse modo, essa coletânea permite observar um procedimento singular do autor que, ao invés de consolidar certa percepção teórica cristalizando um modelo, diversifica-o com novas ferramentas para melhor compreender o discurso em atividade, o que reorganiza toda a perspectiva.

No primeiro capítulo, “Ampliando o campo da Análise do Discurso”, compomos, a partir de dois artigos, um texto panorâmico em que Maingueneau mapeia algumas questões por ele já trabalhadas e outras ainda incipientes (algumas das quais exploradas nos capítulos seguintes) que demonstram sua tese de que o universo do discurso não é homogêneo. No segundo capítulo, “Enunciação e Análise do Discurso”, o autor caracteriza o papel da noção de enunciação nas tendências fundadoras da Análise do Discurso, vínculo fundamental que impacta a sua própria perspectiva.

O capítulo “As duas restrições da polêmica” propõe duas abordagens complementares para a noção de polêmica. A primeira como sendo uma dimensão constitutiva da discursividade e a segunda, de ordem pragmática, que parece se relacionar com a noção de registro polêmico; diferentemente da primeira, esta última tem ainda pouca repercussão e, neste capítulo, é desenvolvida pelo autor.

O capítulo “O ethos discursivo e o desafio da web”, por sua vez, discute a aplicação à web de um conceito já abordado pelo autor em outros trabalhos, o de ethos discursivo, procurando mostrar a necessidade de sua readequação a esse ambiente entendido como outro regime de enunciação.

Os capítulos “O discurso jurídico como discurso constituinte” e “Encontrar o seu lugar no ambiente filosófico” se dedicam à análise de tipos de discurso paradoxalmente fundantes da nossa sociedade e, ao mesmo tempo, pouco analisados. Enquanto, no discurso filosófico, Maingueneau detalha o desempenho dos papéis dos sujeitos (pensadores, mediadores e gestores) no funcionamento do campo, no discurso jurídico, ele defende uma análise centrada no aspecto de seu pertencimento aos discursos constituintes (por meio da paratopia, do Thesaurus e do código de linguagem), mas sem percebê-lo como um campo.

Os capítulos “Fazer ouvir os sem-voz” e “Uma fratura discursiva preocupante” demonstram os esforços do autor para compreender discursivamente novos fenômenos vistos, de modo geral, como de ordem puramente social. Seja para entender as relações entre porta-vozes e sem-voz ou entre locutores morais e locutores populares, Maingueneau assume a necessidade de novos aparatos interpretativos que deem conta dos fenômenos (o apelo à piedade e à fratura discursiva) e que reconheçam as especificidades e as mudanças das relações entre sujeitos e lugares historicamente situados.

Nos capítulos “Os multilocutores” e “Slogans e candidatos em cartazes”, o autor lança mão de algumas de suas propostas mais recentes e ousadas (a multilocução, as aforizações e os enunciados aderentes), mas que, também por isso, podem causar certa relutância aos analistas do discurso ao desestabilizarem certos pressupostos teóricos já assentados, principalmente acerca da interação comunicativa e da noção de gênero discursivo.

Do ponto de vista teórico, o motor que move esta coletânea é o mesmo que parece animar e inquietar Maingueneau há alguns anos; ele se mostra como plano de fundo em todos esses trabalhos e é especialmente manifestado no primeiro capítulo: a heterogeneidade dos regimes do discurso. Os contornos da imago mundi que ilustra a capa deste livro é uma representação alegórica desse desejo de (re)conhecer, de mapear, que possibilita abstrair, mas que também institui um centro da percepção e relega outros territórios às periferias do olhar. Considera-se que seja o mais antigo registro de uma representação geográfica ampla, um tipo de mapa do reino babilônico e adjacências segundo a perspectiva técnica e cultural desse povo, o “primeiro” mapa-múndi. Julgamos esse desenho representativo também, para esta coletânea, por ser (possivelmente, segundo as investigações historiográficas) o imaginário de um mundo conhecido às margens de um rio, com um império dominante no centro. Desse modo, considerar essa multiformidade das manifestações também do ponto de vista metodológico é assumir um risco de instabilidade, mas que, como se demonstra nas análises, pode render discussões profícuas, redefinindo rotas e esboçando outra cartografia desse universo.

As margens do discurso | Lançamento

Dando acesso aos textos em nossa língua brasileira, para além de auxiliar na divulgação especializada dos desenvolvimentos teóricos de Maingueneau, esperamos chamar a atenção para objetos e conceitos pouco trabalhados pela AD e, em conformidade com o autor, conclamar seus aprofundamentos e refinamentos necessários. Se os analistas do discurso aderirem às ideias do teórico aqui apresentadas, talvez a noção de discursividade venha a corresponder em maior proporção às manifestações em sua concretude experienciada. Ainda que inalcançável, quem sabe, nesse rio vivo do discurso, comecemos a vislumbrar, no horizonte sempre distante, os contornos do que ainda não conhecemos, como se fosse aquela imagem quimérica de uma “terceira margem” fantasiada por Guimarães Rosa.

Os organizadores


Nelson Barros da Costa é professor titular do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutor em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), fundador e vice-líder do grupo de pesquisa Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais – Grupo Discuta.

Maria das Dores Mendes é professora adjunta do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutora e mestra em Linguística por essa mesma universidade, é líder do grupo de pesquisa Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais – Grupo Discuta.

José Wesley Matos é doutorando em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é membro do grupo de pesquisa Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta) e do Núcleo de Estudos em Análise do Discurso e Ethos – NEADE (UNIR/ UFMT).

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