Em 1917, São Paulo foi sacudida por um movimento popular de amplas proporções que surpreendeu os seus habitantes. Entre 9 e 15 de julho, durante 7 dias frenéticos, os operários das indústrias paulistanas foram capazes de paralisar primeiro as suas fábricas, e depois toda a cidade. Ao longo dessa semana, os serviços públicos e particulares foram sendo paulatinamente interrompidos até que a cidade praticamente parou. Não havia bondes, o pão e o leite não foram distribuídos, os telefones não funcionavam, faltou gás e, em algumas ruas, também luz. As lojas do Triângulo – o conjunto de ruas que constituía o núcleo principal do comércio paulistano – fecharam suas portas, e as vias centrais ficaram quase que inteiramente desertas, ocupadas apenas pelos grevistas e pela polícia.
Essa greve, a maior já havida na cidade em qualquer tempo, é um ponto-chave para a compreensão das mudanças em curso em São Paulo e no país naquele início do século XX. Não são, no entanto, os trabalhadores e suas lutas o foco deste livro. Ele busca compreender como os diversos grupos sociais em que se dividia a sociedade paulista reagiram àquele acontecimento tão poderoso e surpreendente.

Durante a greve, ao contrário do que se poderia esperar, os jornais da cidade se manifestaram de forma inequívoca a favor da causa dos operários. A Gazeta, já no início do movimento, sintetizou a opinião que se tornou corrente nos dias seguintes:
A Capital Paulista Ameaçada de Uma Greve Geral
A gravíssima situação originada pela resistência que os industriais paulistas
oferecem às justas pretensões dos operários degenerou num colossal
movimento que ameaça perturbar integralmente a vida econômica da
cidade e afetar diretamente a população da capital.1
Ao examinarmos o conjunto das publicações produzidas pelos jornais de São Paulo, expressão das suas elites, durante o período da greve, fica patente que elas nunca pretenderam estabelecer uma aliança com os industriais, em choque com os seus operários.
Caminhando para trás, para melhor compreender a gênese dos grupos que se tornaram, econômica e depois politicamente, hegemônicos em São Paulo, constata-se que a sua formação é mais complexa e os seus interesses mais amplos e matizados do que habitualmente se considera.
A ascensão das elites paulistas foi resultado de um longo processo que se completou no final do Império. Nas últimas três décadas do século XIX, São Paulo passou por um período de transformações profundas.
Nos primeiros anos da década de 1870, já era evidente que a escravidão tinha os dias contados, e que o surto de expansão da economia cafeeira e os novos investimentos que estavam sendo realizados dependiam da continuidade do alargamento da fronteira agrícola e das receitas advindas da produção e da comercialização de safras crescentes de café, que exigiam cada vez mais mão de obra.
O fim da escravidão foi enfrentado de maneiras diversas. Por um lado, muitos membros da elite se envolveram diretamente na mobilização antiescravagista, de que o grupo abolicionista dos Caifazes, liderado por Antônio Bento – herdeiro de Luiz Gama e que teve Júlio Mesquita como um dos seus mais ativos participantes –, representava a face mais radical. Mas, se parte dos filhos da elite paulista, principalmente os mais jovens, se mobilizou para libertar o maior número de escravos possível, outros trataram de organizar o trabalho livre, visto desde muito cedo como essencial para a continuidade da vida econômica de São Paulo. Já em 1871, fazendeiros e empreendedores paulistas constituíram, em estreita sintonia com o governo provincial, a Associação Auxiliadora da Colonização e Imigração, destinada a auxiliar os fazendeiros – com o apoio de verbas do orçamento provincial – a obter trabalhadores necessários para seus empreendimentos. Mais tarde, em 1886, a Sociedade Promotora da Imigração buscou, com sucesso, ampliar o fluxo de imigrantes, através da propaganda e do subsídio direto.
A rápida organização da imigração fez com que um enorme fluxo de trabalhadores livres estrangeiros se dirigisse para São Paulo. Como veremos adiante, além de prover braços para a lavoura em permanente expansão, fez também crescer a capital num ritmo que não se imaginava possível até então. Na última década do século XIX, a cidade se expandiu a uma taxa média de incríveis 14% ao ano, passando de 64 mil em 1890 para 240 mil habitantes em 1900. Esse crescimento, produto do desenvolvimento geral da economia cafeeira e das mudanças ocorridas no período final do Império e de implantação do regime republicano, foi o estopim de grandes transformações. Entre elas se destacam o firme crescimento da indústria e o aparecimento de um novo personagem, desconhecido até então: o operário imigrante.
Além dos operários e da sua contraparte, o industrial, também predominantemente imigrante, o crescimento fez surgir uma série de novos protagonistas, típicos do meio urbano, frutos da ampliação do comércio, dos serviços e da intermediação financeira, sem a qual nenhuma dessas grandes transformações seria possível.
O objetivo central desta obra é o de conhecer melhor as articulações internas das elites paulistas, que estiveram à frente da política e dos negócios nesse período de grandes mudanças. Procura compreender a sua constituição e evolução e, por conseguinte, as suas convergências e divergências, que ficam todas muito evidentes durante a greve de 1917.
Para alcançar esse objetivo, buscou-se ver nos jornais da cidade como os diversos atores sociais se expressavam. Nessas publicações, podem-se observar com grande detalhe os debates que antecedem e acompanham o desenvolvimento da greve, principalmente do ponto de vista das elites de São Paulo, cuja voz se ouve claramente através da imprensa.
Para maior abrangência e um melhor ângulo de visão foram analisados, especialmente, mas não exclusivamente, os grandes diários – Correio Paulistano, O Estado de S. Paulo, A Gazeta e O Combate. Esses quatro periódicos abarcam, ainda que grosso modo, a maior parte do espectro de visões de mundo e da realidade brasileira em vigor nos meios cultos daqueles anos, desvelando, como se verá adiante, as várias faces das elites locais. Foram examinados também várias revistas e semanários, que representam, por seu lado, os diversos nichos de opinião que se abrigam na cidade. Não se examinou, a não ser como contraponto, a ativa imprensa operária publicada nesses anos de grande agitação social e mudanças profundas.
A leitura atenta dos jornais desse período permite perceber com clareza que as elites tradicionais e os seus porta-vozes habituais viam o movimento dos operários com grande condescendência e, em vários momentos, com um certo incentivo. As críticas veiculadas pelos grandes jornais paulistanos nos primeiros dias do movimento grevista centravam- se nos casos de distúrbios e depredações ocorridos pontualmente. Quando, no final, a greve fugiu ao controle – a cidade parou e a violência se espalhou –, os veículos da grande imprensa passaram a criticar com mais intensidade os “extremismos” e “a radicalização”, considerados injustificados, dada a simpatia da sociedade paulistana pela causa dos operários. Foi com o agravamento dos distúrbios e a radicalização do movimento que se buscou uma intermediação entre as partes em conflito, consideradas sempre como sendo “os industriais e os seus operários”, intermediação essa que, finalmente, se deu através da imprensa, e não pelos mecanismos de Estado. A presumível aliança entre as elites paulistas e os industriais afetados diretamente pela mobilização operária nunca se concretizou, e eles, até o fim do movimento, foram sempre classificados como os principais responsáveis nesses eventos.
Pela leitura dos testemunhos desse período sobre a greve, fica claro que o uso do aparelho de Estado não chegou a ser considerado como alternativa para defender os interesses dos industriais. Isso não quer dizer que não tenha havido repressão aos grevistas, como também se verá adiante, inclusive com a ameaça de uso das Forças Armadas caso os distúrbios não fossem contidos. No entanto, o poder público não foi agente de intervenção, a não ser na manutenção da ordem, e os industriais em vários momentos se queixaram da inércia do Estado, acusando-o de ter simpatia pela causa dos operários. Esse panorama mudou muito rapidamente depois da greve de 1917, e essas mudanças também devem ser compreendidas na sua dinâmica, embora não sejam o objeto deste trabalho. Essas constatações que partem de uma base empírica – as centenas de textos publicados na imprensa paulista – e que, com pequenas variações, seguem na mesma direção podem apontar para um novo horizonte de pesquisa para a compreensão da Primeira República e, sobretudo, para o papel que São Paulo teve nela e na formação do Brasil dos anos posteriores.
As longas transcrições de textos jornalísticos e de autores que escreveram no tempo em que se passam os acontecimentos narrados não estão aqui por acaso. É preciso ouvir o passado e prestar a máxima atenção aos testemunhos que ele nos deixou. É muito comum hoje em dia e frequente nos cursos de História reforçar-se a ideia de que o documento deve ser criticado, visto sob um olhar criterioso para que revele aquilo que se oculta sob a superfície. A prática sem dúvida é útil, porém isso não deve permitir que as vozes do passado sejam obscurecidas pela nossa visão do presente.
Ao analisar a visão de mundo que orienta os jornais daquele período, é preciso também notar que eles dispõem de um arsenal limitado de ideias, e estas não são as mesmas do nosso tempo. Elas não podem ser confrontadas com as nossas, mas compreendidas de acordo com a sua época. Como lembrou Thompson, referindo-se aos trabalhadores do período de formação da classe operária inglesa, “eles viveram aqueles tempos, nós não”. É muito necessário e esclarecedor ouvir essas vozes, tal como elas são, com seus maneirismos, suas idiossincrasias, seus preconceitos e seus enganos. Elas nos dão pistas sobre uma certa visão de mundo, ou seja, sobre uma forma específica de compreender a realidade, que é sempre histórica e marcada pelo seu tempo.

Entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século seguinte, São Paulo deixou de ser uma pequena e pouco importante capital provinciana e se integrou progressivamente ao mundo moderno, que trouxe para a cidade o impacto das mudanças sociais e culturais que foram a marca do século XX.
Nesse canto perdido nos confins da América do Sul, na periferia de uma economia periférica, aquele modo de crescimento acelerado, sustentado pela expansão cafeeira, transformou não só a cidade, mas também as bases sobre as quais ela se assentava, dando início a um prolongado ciclo de crescimento que iria transformá-la em uma grande metrópole, que influenciaria decisivamente o desenvolvimento futuro do país.
José Roberto Walker é historiador, escritor e produtor cultural. É o autor de Neve na manhã de São Paulo, um romance de não ficção, baseado nos documentos deixados por Oswald de Andrade, que narram a história de seu caso de amor com uma jovem normalista, na garçonnière do escritor, na rua Líbero Badaró, em 1918. O livro, editado pela Companhia das Letras, foi escolhido como finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Rio de Literatura.
Também é coautor dos livros Theatro São Pedro: resistência e preservação, Sala São Paulo: café, ferrovia e a metrópole, O presépio napolitano de São Paulo e Ferrovias, um projeto para o Brasil.