Ainda criança, em Sorocaba, aprendi duas línguas diferentes. Jogando bolinha de vidro (não se usava a palavra gude, que aprendi bem mais tarde) com meus amigos na Vila Gagliardi, então um beco sem saída, falávamos o português praticado em todo o interior paulista, com “nóis vai” e “nóis fica”, com total desprezo pela consoante final de palavras terminadas em erre (falá em vez de falar), com a troca do éle pelo erre (parco em vez de palco), e assim por diante. Meus amigos falavam assim. Zezé falava assim, Neu falava assim, Tufi falava assim. Pelo rádio ouvíamos uma língua muito diferente, mesmo nas emissoras locais, desde a pioneira PRD7, Rádio Clube de Sorocaba até a Rádio Cacique e, mais tarde, a Vanguarda. Mas rádio não era algo real, palpável, e achávamos razoável que lá se falasse uma língua distinta da nossa.
Já em casa, falava-se uma língua muito diferente. Meus pais ainda estavam se aculturando à cidade, falavam português com sotaque e preferiam conversar conosco em iídiche, a língua falada pelos judeus europeus, os ashkenazim. Quase toda noite, quando íamos dormir, meu pai ou minha mãe entravam no nosso quarto portando um livro nessa língua e liam um conto, ou três páginas de um romance, de escritores como Sholem Aleichem, autor de Violinista no Telhado. Essa rotina se manteve por muito tempo, enquanto éramos apenas dois filhos, Cecília e eu, ela dois anos mais velha. Ficávamos encantados com o mundo que emergia daqueles livros grossos, com capa dura, importados dos EUA ou da Argentina e vivíamos a vida dos personagens como se fossem gente da casa ao lado.
Mas aí descobrimos a chave que abria uma porta que ficava nos fundos da loja. A instituição que alugou o espaço para a loja do meu pai tinha tido uma biblioteca circulante, que fora desativada, e o acervo fora empilhado, de forma desorganizada, em uma pequena sala a que essa chave dava acesso. Eram milhares de obras, principalmente para crianças, histórias de fadas e princesas, e reis com longas barbas que passavam o dia com suas coroas na cabeça, e bruxas cruéis, especializadas em venenos e comida que deixava as pessoas dormindo durante décadas. Eram obras escritas havia muito tempo e traduzidas em um português que não se falava mais, se é que algum dia se falou, mas que continuava a encantar.
Cecília, com 7 anos, já lia e muito bem. Ela se sentava e lia em voz alta, eu me sentava atrás dela para enxergar de onde e como ela tirava tantas maravilhas de simples manchas incompreensíveis de tinta que ela chamava de letras. Às vezes eu pedia para ela repetir uma passagem, particularmente deslumbrante e reveladora, o que ela fazia, resmungando, mas fazia. Quando se esquecia de apontar para a palavra lida eu protestava com veemência, pois não conseguia estabelecer conexão entre o lido por ela e o ouvido por mim.
Em pouco tempo já me senti apto a decodificar alguns sinais gráficos e minha santa irmã aceitou corrigir minhas falhas, não sem aproveitar para me chamar de pirralho ignorante. Meu orgulho aceitava pagar o preço do ensinamento que ela me proporcionava. O mundo novo que eu vislumbrava valia cada risinho sarcástico dela. O importante era continuar e conquistar cada palavra, uma por vez.
Quando me dei conta, sabia ler! Sinceramente, não poderia precisar quanto tempo levei para notar que já não precisava dela. Ou melhor, quase não precisava. Passei a ir sozinho até o depósito. Agora não dividia o ar empoeirado com ninguém, a não ser as princesas e os reis e os bandoleiros, e o irmão do príncipe, (esse era mau caráter), todos nós juntos, ficção e realidade se misturando, como precisa acontecer quando lemos com paixão.
Aí, me dei conta de que estava tendo acesso a uma nova linguagem, que não era a que falavam meus pais, nem a que eles liam, nem aquela praticada pela minha turma de bolinha de vidro, mas a língua dos livros velhos e empoeirados, língua distante do meu dia a dia, língua contraditoriamente arcaica e inovadora, pois mesmo vindo de livros usados estava abrindo novos horizontes e (isso eu não sabia, mas sei agora) desenvolvendo meu cérebro no processo de leitura, como ensina Maryanne Wolf.
Quando, no ano seguinte, entrei na escola regular e a professora começou a ensinar letras e palavras e frases e, mais tarde, pequenas historietas, eu já sabia ler e levava um jornal (A Gazeta do dia anterior, comprada a pedido do meu tio na véspera, e herdada por mim) para a sala de aula.
Quando o diretor da escola entrou na sala de aula e perguntou à professora como ia a alfabetização da turma, ela não teve dúvidas; disse ao diretor que a turma ia muito bem e até um menino que se sentava atrás estava alfabetizado. Era eu! Achei que ela estava se apropriando de créditos que pertenciam à minha irmã, mas não vi como consertar isso.
Mas agora estou contando pra todo mundo, Cecília!
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.