Há cerca de dois séculos, regentes e músicos de orquestra lutam para realizar os frenéticos andamentos indicados pelo grande compositor clássico. Dois pesquisadores espanhóis parecem ter encontrado a solução do problema.
Sucessos da música pop obedecem a um sistema simples, porém engenhoso: os produtores sabem que andamento uma melodia deve ter, o efeito dos modos menor e maior sobre as emoções dos ouvintes, qual a duração máxima e mínima de uma canção.
Por trás das canções mais populares de Britney Spears está toda uma fábrica de hits, cujos perfis seguem sempre as mesmas fórmulas. O que se posiciona nas paradas dificilmente foi parar lá por acaso, graças à previsibilidade da percepção humana.
Por sorte, porém, numa forma artística emocional nem tudo pode ser planejado e controlado de antemão. Quando Peter Gabriel gravou seu terceiro álbum solo, em 1979, com o colega da banda Genesis Phil Collins à bateria, uma nova técnica de gravação foi inventada por acaso.
Do teto do estúdio pendia um microfone pelo qual os músicos se comunicavam com os técnicos de som durante as pausas dos takes. Então alguém o esqueceu ligado durante a gravação, e o compressor eletrônico reduzia os sons altos e reforçava os baixos, criando uma reverberação seca, abafada abruptamente. E assim nasceu um novo som de bateria que marcaria os anos 1980.
A força de uma novidade
Mas o que isso tudo tem a ver com Beethoven? Uma prova de que não se deve subestimar o papel do acaso na história da música, popular ou erudita, é o recente reaquecimento de um velho debate: como explicar os andamentos frenéticos nas partituras das sinfonias de um dos maiores compositores da história? Será que foram fruto de um azar? E talvez de uma certa inépcia para lidar com novas tecnologias?
Ludwig van Beethoven (1770-1827) foi um dos primeiros compositores a abraçarem a novidade que foi o lançamento do metrônomo, em 1815, pelo inventor Johann Nepomuk Mälzel. O dispositivo permitia fixar com precisão a velocidade em que a música devia ser executada, através de um pêndulo que marcava as divisões exatas do minuto. Essas eram indicadas na partitura com a abreviatura “MM” (Mälzels Metronom), seguida de um número.
O músico nascido em Bonn ficou entusiasmado, pois as tradicionais indicações de andamento (em italiano: tempo) – Adagio, Allegro, Presto, etc. – lhe eram imprecisas demais. Apesar de suas primeiras oito sinfonias serem anteriores ao invento de Mälzel, ele até forneceu a posteriori os números de metrônomo para cada um de seus movimentos.
Hoje os metrônomos são digitais, e um mostrador indica a quantidade de batidas por minuto. Nos antigos modelos mecânicos, que ainda se encontram em cima de um ou outro piano, o compositor devia contar o andamento ou lê-lo no aparelho. Era isso que Beethoven, surdo em seus últimos de vida, tinha que fazer. Como o aparelho e a tecnologia eram novos, ele pode ter cometido um erro de manuseio.
Absolvidos de heresia musical
Os pesquisadores espanhóis Almudena Martin-Castro e Iñaki Ucar desenvolveram um modelo matemático correspondente ao metrônomo do compositor alemão. Além disso, analisaram os andamentos de 36 gravações de suas sinfonias por 36 regentes diferentes.
Uma das conclusões, publicadas na revista científica online Plos One, é que mesmo os maestros que se comprometem a seguir exatamente as indicações na partitura regem as sinfonias beethovenianas em andamento mais lento do que o anotado. Contudo Ucar e Martin-Castro também deduzem que Beethoven lia errado os números do metrônomo, abaixo do peso no pêndulo, em vez de acima.
O que lhes trouxe essa inspiração foi o manuscrito da Sinfonia nº 9, a única composta após o lançamento do aparelho: no primeiro movimento, o compositor anota “108 ou 120 Mälzel”, indício de que não estava totalmente seguro quanto às próprias indicações metronômicas.
Há cerca de dois séculos maestros e músicos vêm se esfalfando para realizar os quase impossíveis andamentos ditados pela pena beethoveniana, e para eles o estudo dos espanhóis deverá ser um bálsamo para a autoconfiança musical. Embora na prática tenham mesmo tocado as sinfonias do gênio da música clássico-romântica mais lento do que o indicado, agora têm, preto no branco, a confirmação de que não cometeram nenhuma heresia.
Fonte: DW Brasil