Fechar

Antiquado, eu? | Rubens Marchioni

Tomar decisões pode ser um santo remédio. Ou não. Uma pessoa despreparada e com iniciativa pode significar perigo rondando e causando apreensão.

Parece-me que este foi o caso de Renato. O jovem estava no segundo ano do curso de Direito quando, com medo de ser visto como antiquado, decidiu comprar um novo computador, bem mais potente. Também desejava colocar uma mesa com cadeira giratória no quarto que dividia com um guarda-roupa caótico. A ideia tomava forma. Teimosa, queria se transformar em prática.

Antiquado, eu? | Rubens Marchioni

Seu irmão mais velho já atuava na área, mais propriamente no departamento jurídico de uma grande empresa. Ali ele cuidava de questões tributárias. Na adolescência, aproveitando-se da idade, criou, divulgou e grudou em Renato um apelido pouco lisonjeiro, “Orelha”. A maldade se deveu às constantes dificuldades que o irmão revelava durante os estudos.

Na choperia, onde se encontrava regularmente com amigos e bebia com moderação para não violentar o saldo bancário, Renato falou da decisão com um amigo, que lhe deu algumas sugestões quanto à marca e modelo do equipamento que desejava comprar.

 – Fácil, já que você vai gastar, compra logo um… Ele já vem equipado com… – disse o amigo.

 – Sei, é claro, esse deve ser o melhor – disse Renato. Mas você se esquece do principal: meu dinheiro não tem força pra tudo isso, cara.

Renato, sempre animado e brincalhão, agora baixou a cabeça e sentiu o peso de certa desesperança. Tinha medo de se tornar anacrônico e mesmo de ver as pesquisas acadêmicas comprometidas pela dificuldade imposta por um antigo computador que vivia dando problemas técnicos.

Na semana seguinte, Renato falou com vendedores e ouviu propostas de modelos, preços, formas de pagamento, facilidades, benefícios, afagos…

Mas a decisão do futuro advogado implicava a reorganização do próprio caixa, e isso era algo pra lá de sensível quando se trata de um autônomo de improviso tentando sobreviver a uma crise de inflação alta e desemprego. Seu caixa era pequeno demais, e insistir num remanejamento significava um alto risco de comprometer toda a sua frágil estrutura.  

Assertivo e com autoconfiança, muniu-se de atitude. Saiu do quarto, onde passava horas entre livros e revistas técnicas, ou obras de Agatha Christie, e em momentos de descuido e cansaço cochilava no beliche desorganizado.

Foi até a cozinha. No caminho, conversou novamente com uma planta. E depois falou com os pais sobre o seu propósito. Pediu o dinheiro suficiente para pagar a vista o computador. Mas o pedido de uma verba suplementar foi indeferido “sine die”. Eles não quiseram nem mesmo fixar uma data futura. Assim, seu projeto ficou ameaçado. Quem sabe na décima instância Renato tivesse mais sorte.

Sua necessidade frustrada de apreciação podia torná-lo agressivo em alguns momentos, sobretudo quando via obstruído o caminho para atingir suas metas. Que o diga o pequeno aquário, presente da namorada. Em silêncio na sala, a peça que exibia uma luz azulada que iluminava pequenos peixes ornamentais, foi reduzida a pedaços. Tudo por causa de uma trombada que bem poderia ter sido evitada – o gato não se queixou. A gaiola vazia, decorativa, quieta em outro canto e num lugar alto, não entendeu nada, e respirou com alívio por estar em outra parede. Mas essa é outra história.

Naquele dia o estudante estava determinado. Com iniciativa e comprometimento, enxergou uma saída para conseguir o valor que faltava a fim de bancar a compra do novo equipamento. Mesmo sem dispor de certas habilidades, indispensáveis em algumas situações que envolvem risco de acidente, Renato se propôs a fazer pequenos serviços em troca de dinheiro.

Sem dinheiro disponível no momento, o pai, um operário aposentado, concordou com a proposta do filho – ele daria um jeito. Fecharam um contrato verbal que prometia uma troca de benefícios entre os dois. Mas era possível perceber uma ponta de conflito em sua decisão. Renato não estava bem certo quanto à maneira de administrar e decidir sobre o assunto. Afinal, o que significa pequenos serviços para o operário e a dona de casa?

E foi então que chegou o momento de iniciar um trabalho também adiado: a pintura da velha casa, que agendou para os finais de semana. Para realizar a tarefa, numa parceria, Renato deveria se equilibrar sobre uma escada alta o suficiente para levá-lo até o telhado. Tudo com a costumeira ausência de equipamento de proteção.

Quase tudo ia mais ou menos bem. Até que, distraídos, os olhos do pintor improvisado correram muito rapidamente de baixo para cima, e para baixo, mirando o chão e focando no perigo em forma de cimento bruto. O medo, seu antagonista nessa história, revelou uma presença forte e ameaçadora.

Renato esboçou movimentos incertos com as mãos. O corpo dançou sobre os degraus estreitos. A escada seguiu a coreografia do corpo incerto. Coreografia sem ritmo, nem harmonia, em direções opostas e confusas. Em segundos seu corpo beijou o chão frio e sujo, enquanto, sem nenhuma cautela e em queda livre, a escada encontrava seu braço direito. A pele sardenta, o nariz comprido, o boné, tudo foi coberto por uma tinta cor de cinza escura. Quanto aos cacos do vaso de dente-de-leão, soube-se que eles descansam em paz numa caçamba recheada de entulhos públicos. E a planta ainda recebe alguns cuidados especiais.

No pronto-socorro, médico e enfermeiros se apressaram. Passado o período de observação, Renato voltou para casa. Na bagagem, levou curativos em ferimentos que não pôde evitar, além do gesso incômodo no braço esquerdo. Em casa, encontrou o também inevitável sentimento de culpa no pai, que desejou fazer o melhor. Isso, além do susto e do propósito de nunca mais se aventurar sobre uma escada com essa altura e segurança zero. Porque a vida é feita de subidas e descidas, mas tomar decisões com segurança e saber administrar os pontos altos faz parte de todo processo, quando se pretende atingir os melhores resultados.

Mas Renato não queria desistir daquela obra, que financiaria, em parte, o seu projeto. Com todos os cuidados e munido de equipamentos de segurança, retomou o trabalho e concluiu o que se propôs executar.

Ele certamente nunca seria contratado por terceiros para o mesmo serviço. Mas o novo computador chegaria na próxima semana.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.