Por Marcos Guterman, na introdução do livro “Nazistas entre nós“
Grande parte dos ex-nazistas que se estabeleceram na América do Sul estava muito à vontade. Walter Rauff, o inventor das câmaras de gás móveis, não achou necessário nem mesmo mudar seu nome. Trabalhando para o BND, o serviço secreto alemão-ocidental, que sabia perfeitamente quem ele era e o que havia feito, Rauff tornou-se muito próximo de Klaus Barbie, o Açougueiro de Lyon, tornando-se seu amigo e parceiro de negócios no Chile e na Bolívia. Morreu tranquilamente em Santiago do Chile, em 1984, aos 77 anos, sem ter sido importunado pela Justiça alemã.
Nos anos 1960, outros próceres do regime hitlerista chegaram a se juntar, como sócios, para realizar empreendimentos de porte considerável na América Latina, com grande visibilidade e com relações estreitas com os governos locais.
Um desses empreendimentos foi a companhia La Estrella, representante da Merex AG, empresa alemã que vendia armamentos e funcionava igualmente como um braço do BND no exterior. Em apenas um ano, entre 1963 e 1964, a Merex havia constituído escritórios na Europa, na Ásia, no norte da África e na América Latina, inclusive no Rio de Janeiro.
Os contatos da Merex na América Latina foram conduzidos por um ex-general do Exército nazista, Walter Drück, que era agente do BND. No Paraguai, Drück fez contato com o ex-piloto Hans-Ulrich Rudel, o mais condecorado militar nazista. Rudel tornou-se um bem-sucedido empresário depois da guerra e também ajudou a desenvolver a La Estrella. Foi Rudel quem apresentou Drück a outro ex-nazista notório, o falsário Friedrich Schwend, que havia sido responsável pela execução do plano de Hitler de inundar a Grã-Bretanha com dinheiro falso durante a guerra. Schwend – que colaborou com o serviço de contraespionagem americano na Áustria e na Itália depois da guerra e usou a Ratline para chegar à América Latina – abriu as portas dos serviços de inteligência do Peru, onde vivia, para Drück e a Merex. Na mesma época, Drück fez contato com Klaus Barbie, que vivia na Bolívia, transformando-o em representante da Merex naquele país.
Todos esses ex-nazistas se associaram para transformar a La Estrella em fachada para as ações clandestinas da Merex na América Latina, por meio das quais foram abastecidos de armas a Bolívia e o Peru – que chegou a receber dela 14 aviões de guerra, em 1966. Foram os tanques vendidos pela Merex aos bolivianos que serviram aos militares para dar ao menos dois golpes de Estado, em 1971 e em 1980.
Na Argentina, o representante da Merex era o ex-oficial da SS Wilhelm Sassen, que também trabalhava para o ditador paraguaio Alfredo Stroessner. A Merex também forneceu armamentos para o general chileno Augusto Pinochet antes que este se tornasse ditador, em 1973.
Sassen igualmente se associou à La Estrella, assim como Otto Skorzeny, o coronel da SS especialista em fugas e resgates – seu nome se tornou uma lenda ao libertar o ditador Benito Mussolini das mãos dos Aliados após a rendição da Itália, em 1943. Skorzeny foi muito útil no recrutamento de espiões para a organização que serviu como embrião do BND e, embora vivendo na Espanha, teve grande influência na Argentina, onde estabeleceu sólidas relações com Juan Domingo Perón e, assim como Barbie e outros, pretendia plantar no continente a semente de um “Quarto Reich”.
Esse sonho delirante pareceu real quando os nazistas encontraram em Perón um grande simpatizante. Perón transformou a poderosa Argentina em um refúgio ideal para os egressos do Terceiro Reich, não só em razão do perfil europeu do país, mas principalmente pela disposição do governo peronista de ajudá-los, por afinidade ideológica e também por interesse em obter de alguns deles a expertise necessária para modernizar as Forças Armadas argentinas – e, quem sabe, obter a bomba atômica.
Em razão disso, a Argentina permitiu a entrada de ao menos 32 notórios criminosos nazistas – alemães e austríacos – depois da guerra. O historiador americano Uki Goñi fala em até 280 nazistas.
E não eram nazistas quaisquer. Este livro trata especificamente, por exemplo, de Adolf Eichmann, o responsável pela arquitetura do genocídio dos judeus europeus, por seu papel na guerra e porque sua história no exílio, culminando em seu sequestro por um comando do Mossad, o serviço secreto israelense, para ser julgado em Israel, é digna de romance de espionagem. Mas vários outros nazistas importantes, pivôs de terríveis atrocidades, desfrutaram da segurança e das oportunidades políticas e de negócios na Argentina.
Um exemplo é o de Erich Priebke, capitão da SS que liderou o massacre das Fossas Ardeatinas – em 24 de março de 1944, com a guerra já praticamente perdida, Priebke ordenou que seus subordinados fuzilassem 335 civis italianos em Roma, como represália a um ataque a soldados nazistas. Preso pelos americanos depois da guerra, nunca escondeu nem seu nome nem o que havia feito. Conseguiu fugir para a Argentina pela Ratline.
Na Argentina, sempre usando seu nome verdadeiro, passou vários anos na tranquilidade de Bariloche, cidade com ares bávaros que tinha grande número de alemães e de nazistas. Foi lá que Priebke acabou encontrado, em 1994, por uma equipe da TV americana ABC, que fez com ele uma reportagem reveladora. Priebke admitiu os crimes, mas deu a desculpa de todos os nazistas: estava apenas cumprindo ordens, e aquilo, afinal, era uma guerra, em que coisas terríveis sempre acontecem. “Nós não cometemos um crime”, diz ele na reportagem, em que comenta com perturbadora tranquilidade suas ações naquele dia.
Somente dois anos mais tarde, em 1996, Priebke foi extraditado para ser julgado na Itália. Ele contou com uma grande equipe de advogados, bancados por uma rede de assistência tocada por neonazistas europeus, e chegou a processar veículos de comunicação e jornalistas que se dedicaram a destrinchar sua história. Em 1998, foi condenado à prisão perpétua, mas cumpriu a pena em casa, em razão de sua idade avançada. Quando morreu, em outubro de 2013, aos 100 anos, nenhum país aceitou enterrá-lo. Após semanas de discussão, Priebke finalmente foi sepultado no jardim de uma prisão italiana não identificada.
Priebke viveu muito bem na Argentina até que um motivo fortuito, acidental, acabou com sua tranquilidade. Sua história é muito parecida com a de vários outros nazistas no país, que não foram incomodados porque uma parte expressiva da sociedade argentina demonstrou, naquela época, notável tolerância – para não dizer admiração – pelo fascismo, antes ainda que Perón chegasse ao poder. E demonstrou também natural inclinação ao antissemitismo, sob os auspícios de importantes representantes da Igreja Católica argentina. Um deles foi o padre Julio Meinvielle, autor de vários livros de sucesso, entre os quais O judeu no mistério da História, de 1936. Nessa obra, que teve diversas reedições, com o imprimatur da Igreja até pelo menos 1976, e que continua a ser publicada na Argentina, Meinvielle faz críticas ao paganismo nazista, mas considera que os judeus formam um povo pérfido, que deveria ser alijado da sociedade argentina, exatamente como estavam fazendo os nazistas: “Os cristãos, que não podem odiar os judeus, que não podem persegui-los nem impedir que eles vivam […], devem, não obstante, precaver-se contra a periculosidade judaica. Precaver-se como quem se precavê dos leprosos.” Esse pensamento de Meinvielle nem de longe era exceção na Argentina.
A atitude da Argentina em relação ao Terceiro Reich era, portanto, pelo menos ambígua e permitiu que, ao longo da guerra, com participação de gente do governo, fosse preparada a rota de fuga dos nazistas para o país. O pivô dessa aproximação foi Juan Carlos Goyneche, um nacionalista católico que tinha bom trânsito na alta cúpula nazista. Mas o operador do esquema foi Carlos Fuldner, um ex-capitão da SS, argentino filho de imigrantes alemães. Fuldner foi chamado pela cúpula nazista remanescente, perto do final da guerra, para ajudar a organizar a fuga dos hierarcas. Em abril de 1945, documentos falsos já estavam sendo providenciados para salvar a maior parte dos chefes do Terceiro Reich. Eles contavam com a estrutura montada por Fuldner e seus comparsas, auxiliados por sacerdotes da Igreja Católica, tanto no Vaticano quanto na Argentina, e por gente do governo de Perón – com pleno conhecimento e eventual participação do próprio caudilho.
Uma vez no poder, Perón tratou de estreitar os laços com os nazistas. A ideia era criar, a partir da Argentina, um bloco de nações sul-americanas pró-Hitler para fazer um contraponto ao Brasil, então alinhado com os Estados Unidos. Uma mensagem para o GOU (Grupo de Oficiais Unidos, uma organização secreta criada dentro do Exército argentino), atribuída a Perón, em 1943, diz que “a luta de Hitler na paz e na guerra nos servirá de guia”. Não está claro se se tratava de uma confissão de afinidade ideológica com o nazismo ou se Perón, ali, expressava sua admiração, de resto disseminada nas diversas Forças Armadas latino-americanas, pela disciplina e a determinação do Exército alemão, representado naquela ocasião pelos nazistas.
Seja como for, essa e outras manifestações favoráveis ao Terceiro Reich ajudaram a consolidar a imagem de um regime que, se jamais fez um acordo explícito com Hitler, não fez nada para impedir que estivesse identificado fortemente com ele. E que só rompeu definitivamente com o Terceiro Reich em 26 de janeiro de 1944, quando a guerra já estava perdida para a Alemanha, e só declarou guerra ao Eixo em 27 de março de 1945, um mês antes da morte de Hitler.
Em gravações que fez a título de preservar sua memória, Perón disse que ajudou os nazistas em razão de seu sentido de “justiça”, uma forma de desagravo àqueles que, em sua visão, estavam pagando por crimes que todos, inclusive os Aliados, haviam cometido na guerra. Declarou Perón: “Em Nuremberg, realizou-se então algo que eu, a título pessoal, julgava como uma infâmia e como uma funesta lição para o futuro da humanidade. E não só eu, mas todo o povo argentino. Tive a certeza de que os argentinos consideravam o processo de Nuremberg como uma infâmia, indigna dos vencedores, que se comportavam como se não fossem. Agora estamos nos dando conta de que mereciam ter perdido a guerra. Quantas vezes, durante meu governo, pronunciei discursos contra Nuremberg, monstruosidade que a História não perdoará!”
Foi com essa mentalidade que, uma vez vencedor das eleições de 1946, Perón autorizou a imigração de dezenas de nazistas, para protegê-los de julgamentos que o caudilho considerava intrinsecamente injustos. Perón ordenou que os processos de imigração desses oficiais, muitos deles rematados criminosos de guerra, fossem agilizados – isso tudo a despeito do fato de que a Argentina havia firmado a Ata de Chapultepec (1945), por meio da qual os países signatários se comprometiam a barrar a entrada desses criminosos.
É bem verdade que a Argentina estava sob intensa pressão dos Estados Unidos não só para aderir ao tratado como para declarar guerra ao Eixo. Como calculou que ali se apresentava uma chance de romper o isolamento argentino imposto pelos americanos, Perón aceitou as condições – mas é evidente, como mostra seu comportamento posterior, que a assinatura de seu representante na Ata de Chapultepec tinha escassa validade. Ademais, os próprios americanos sabiam que a Argentina estava considerando a ata, na prática, como letra morta, mas fizeram vista grossa –, entre outras razões porque os Estados Unidos, na sua guerra contra o mundo comunista, também estavam importando seus nazistas.
E não eram apenas nazistas alemães que estavam encontrando guarida na Argentina. Havia criminosos de guerra de diversas nacionalidades europeias, todos dedicados colaboradores do Terceiro Reich – e todos dispostos a lutar contra as democracias e os comunistas numa Terceira Guerra que eles consideravam iminente.
A comunidade formada pelos nazistas na Argentina viveu muito bem, especialmente no elegante bairro de Palermo Chico, em Buenos Aires, e chegou a ter uma revista mensal para difundir suas ideias, a Der Weg (O Caminho). Editada por Eberhard Fritsch, outro asilado nazista sob os auspícios de Perón, a Der Weg publicava artigos que, em resumo, defendiam que o Terceiro Reich foi mal compreendido e merecia uma segunda chance. Um dos expoentes da revista era Hans-Ulrich Rudel, o já citado herói de guerra nazista, responsável, a partir de 1947, pelo tom mais raivoso da publicação. Mas a revista tinha vários outros importantes colaboradores, inclusive de fora da Argentina, como o líder fascista britânico Oswald Mosley.
A Der Weg circulava livremente na Alemanha e somente em 1949 o governo a baniu – mas ela continuou a chegar de forma clandestina às mãos de seus 3 mil assinantes alemães. A editora da Der Weg, Dürer Verlag, de Buenos Aires, publicou também o livro de Hitler, Mein Kampf, e as memórias de diversos veteranos nazistas.
Como se vê, os nazistas se sentiam em casa em vários lugares da América Latina, nutrindo até mesmo planos para a redenção do Terceiro Reich, além de organizar-se para colaborar com as ditaduras da região e, eventualmente, ganhar dinheiro e poder traficando armas e ensinando os militares a perseguir e torturar seus oponentes. Foi o encontro perfeito entre a mentalidade totalitária dos discípulos de Hitler – cujos crimes os credenciavam como eficientes executores do serviço sujo demandado pelos militares da região – com a obsessão da luta contra o comunismo. Poucas vezes a história latino-americana atingiu um ponto tão baixo, mas é bom que se frise: como já é possível perceber, a América Latina não foi, nem de longe, o único lugar em que esse conluio espúrio se realizou. Como veremos nos capítulos a seguir, muitos nazistas, autores de monstruosas atrocidades, não apenas evitaram o devido julgamento pelo que fizeram, mas também encontraram paz e tranquilidade no exílio, escarnecendo da humanidade que eles tanto aviltaram.