O primeiro, o mais importante, o ato de apreciação mais decisivo que um homem de Estado ou um comandante-chefe executa, consiste na apreciação correta do tipo de guerra que leva a efeito, a fim de não a tomar por aquilo que ela não é e não querer fazer dela aquilo que a natureza das circunstâncias lhe impede que seja. – Clausewitz
Doze de novembro de 2014, manhã de sol na cidade do Rio de Janeiro. O dia começou calmo na Vila dos Pinheiros – uma das 16 comunidades que fazem parte do complexo de favelas da Maré.
O comandante do destacamento olhou para o relógio: 8 horas em ponto, conforme o planejado. Por enquanto, tudo parecia seguir sua rotina. As crianças que estudavam no período matutino já se encontravam “seguras” dentro das salas de aula e o fluxo de moradores pelas ruas correspondia ao movimento habitual, indício de que não havia nenhum confronto eminente.
Soldados do 28º Batalhão de Infantaria Leve (BIL) já estavam em suas posições, a menos de 200 metros da Linha Vermelha, uma das principais artérias de circulação da capital fluminense. Com uma companhia de fuzileiros, eles guarneciam os perímetros de segurança que lhes haviam sido determinados durante o briefing do dia anterior. Sua missão, naquela manhã, era simples: apoiar a execução de dois mandados de busca e apreensão a cargo da Polícia Federal.
Enquanto os homens do “vinte e oito” se mantinham responsáveis pelo isolamento da área, equipes de operações especiais do Exército e da Marinha foram incumbidas de realizar a segurança aproximada dos policiais, bem como auxiliá-los nas revistas no interior dos imóveis a serem diligenciados. Por fim, um helicóptero HA-1 Esquilo, da aviação do Exército, equipado com termovisor eletro-óptico para a geração de imagens em tempo real, estaria disponível, orbitando a 2.000 pés de altitude.
Desde a primeira semana de abril, quando teve início a ocupação do complexo da Maré, membros das Forças Armadas e policiais federais vinham trabalhando em conjunto, sobretudo, por meio da troca de informações. Também, haviam dado cumprimento a uma série de mandados judiciais. No dia 4 de maio, lograram capturar um dos principais líderes do tráfico local, em uma ação que contou com o envolvimento direto de ambas as instituições.
Apesar da aparente tranquilidade, os procedimentos operacionais eram seguidos com cautela, de acordo com um meticuloso planejamento, uma vez que pequenas escaramuças irrompiam com frequência. A maior preocupação da tropa era o risco de danos colaterais incidirem sobre a população civil. Em uma área de elevada densidade demográfica, qualquer tiroteio tornava-se potencialmente perigoso para os habitantes locais.
Os militares habituaram-se a receber alertas de moradores bem-intencionados e de boa índole. Eram homens e mulheres, quase sempre de idade mais avançada, que procuravam ser discretos, pois temiam sofrer represálias dos criminosos. Evitando fitar diretamente os soldados a fim de passarem despercebidos, murmuravam de cabeça baixa: “Cuidado, meu filho, tem um monte deles espalhados por aí, tudo de olho em vocês”; ou simplesmente “Deus te abençoe, meu filho”.
Porém, naquele dia, as advertências não foram necessárias.
A equipe da Polícia Federal chegou em duas viaturas blindadas de transporte de tropa, acompanhada por um pequeno destacamento do comando de operações especiais do Exército. Simultaneamente, um grupo de comandos anfíbios da força de fuzileiros da esquadra aproximou-se da casa que lhe havia sido designada como “objetivo”. Tão logo policiais e militares iniciaram a execução do primeiro mandado, os soldados do 28º BIL, encarregados de isolar a área, foram alvejados por tiros esparsos de pistola vindos das adjacências, com o propósito aparente de inquietá-los. Mantiveram-se abrigados em suas posições, sem responder ao fogo, pois o fluxo de transeuntes ainda era considerável.
O alvo da primeira diligência era um jovem desafortunado, cujas postagens em redes sociais não deixavam dúvidas acerca do seu envolvimento com o crime organizado. Embora ele tenha sido surpreendido em sua cama, os policiais não dispunham de mandado de prisão. Mesmo depois de uma minuciosa revista, nada foi encontrado que justificasse sua condução para o prédio da superintendência da Polícia Federal no centro da cidade. Agindo estritamente em conformidade com a lei, a delegada responsável lamentou não ter se deparado com nenhum ilícito, reuniu sua equipe e seguiu para o próximo domicílio, já ocupado pelos fuzileiros navais, a menos de 100 metros naquela mesma rua.
O capitão Trindade, comandante do 3º Destacamento Operacional de Forças Especiais do Exército (DOFEsp), e quatro de seus subordinados acompanharam os policiais nesse curto trajeto. O local estava seguro, guarnecido pelos comandos anfíbios. Pelo visto, também não havia nada de comprometedor ali. Ainda assim, a delegada e seus agentes deveriam dar cumprimento à decisão judicial, executando as buscas constantes do mandado.
Estacionados próximos a casa, havia dois veículos blindados de dotação do corpo de fuzileiros navais. Eram robustos Mowag Piranha III C, 8×8, de fabricação suíça. Alguns soldados encontravam-se embarcados, vigiando o perímetro externo, como de praxe. Um deles chamou o capitão Trindade e lhe apontou um indivíduo que passava ao longe: “Aquele sujeito realizou disparos de pistola contra a tropa. Agora, está nos observando”.
O capitão Trindade reuniu prontamente os quatro homens do seu destacamento que estavam à sua volta, enquanto dava ciência aos demais, pelo rádio, que iria à frente esclarecer a situação. A despeito do efetivo reduzido, a equipe iniciou uma progressão dinâmica e bem sincronizada, conforme preconizam as modernas técnicas de combate urbano.
Em pouco tempo atingiram a via que circunda o sopé do morro dos Macacos – uma pequena elevação arborizada, que sobressai em meio ao terreno plano e edificado da Vila dos Pinheiros. Subitamente, parecia haver menos pessoas nas ruas. O suspeito evadira-se e novos disparos de pistola puderam ser ouvidos.
O capitão continuou avançando com seus homens, ocupando posições abrigadas. Ao passarem ao lado de um trailer de sanduíches, que se encontrava fechado em virtude do horário, recomendaram a um casal de moradores que voltasse para casa e aguardasse por lá, até a situação se normalizar. “Porra! Qual é a desses caras? Não sei pra que ficar atirando em vocês”, resmungou o rapaz.
Um pouco mais à frente, receberam, pelo smartphone, uma mensagem de texto enviada pela equipe de inteligência da Polícia Federal, que permanecera no centro de operações monitorando radiofrequências: “Interceptamos essa conversa: tem cinco periquitos perdidos aí, pode largar o dedo neles”.
De fato, eles haviam se distanciado do grosso da tropa e, naquelas circunstâncias, poderiam ser colocados, sem muita dificuldade, sob fogo cruzado. Porém, retrair não era uma opção naquele momento. Dificilmente um militar das forças especiais do Exército aceitaria romper contato depois de ser deliberadamente atacado por “soldados do tráfico”. Após uma rápida avaliação do terreno ao seu redor, o capitão tomou uma série de decisões táticas que se mostraram corretas e oportunas.
Pelo rádio, solicitou que um blindado Urutu avançasse até sua posição, a fim de compor o “binômio infantaria-carro” e, assim, garantir a continuidade de sua progressão. Em seguida, entrou em contato com o comandante de companhia do 28º BIL e, designando o morro dos Macacos como um “objetivo de segurança”, pediu-lhe que ocupasse aquelas alturas, com o propósito de cobrir seu flanco direito, que se encontrava completamente exposto. Outro pelotão deveria contornar o sopé da elevação pelo oeste, enquanto uma terceira fração de tropa deveria progredir à esteira de sua própria equipe, avançando pelo leste. Por fim, enviou uma mensagem ao centro de operações, solicitando que a aeronave Esquilo realizasse um sobrevoo, com o intuito de identificar ameaças posicionadas sobre as lajes das edificações à sua frente.
Todas as medidas foram adotadas com presteza. A tropa do 28º BIL, em particular, portou-se com extrema eficiência. Ao retomarem sua progressão, caminhando ao lado do Urutu, os homens do comando de operações especiais puderam observar os infantes investindo em linha até atingirem a crista topográfica do morro dos Macacos. Um sargento foi à frente e ligou-se com um dos membros da equipe do capitão Trindade para receber instruções sumárias:
Mantenha sua progressão à nossa retaguarda, mas cuidado para não entrar no mesmo compartimento do terreno. Se formos engajados pelo fogo, você deve estar a uma distância segura que lhe permita manobrar com liberdade. Entendeu?
Sim, senhor!
E não se esqueça: estamos à sua frente. Cuidado pra não atirar em nós! Não estou a fim de ser vítima de “fogo azul”.
Com esse arranjo, taticamente bem elaborado, o capitão retomou o movimento, determinado a neutralizar toda e qualquer forma de resistência armada que se antepusesse às tropas do Exército.
Novos disparos ecoaram à frente do Urutu. Pelo forte estampido, certamente eram fuzis. Os fogos se avolumavam à medida que o destacamento avançava a pé, utilizando o blindado, que se movia lentamente como proteção. Os homens ouviam o som dos projéteis cortando o ar um pouco acima de suas cabeças. O chão ao seu redor, os muros das casas e até um automóvel, que se encontrava estacionado, foram atingidos pelos impactos. Ainda assim, eles mantinham seus dedos fora do gatilho, pois não haviam localizado as posições de tiro dos traficantes. Abrir fogo aleatoriamente, isto é, sem fazer a identificação positiva de qualquer ameaça, colocaria a população local em risco, contrariando a meta estipulada de nenhum dano colateral.
Sobreveio uma rajada. Ninguém foi capaz de observar sua origem. Os homens tentavam, em vão, descobrir de onde partiam os tiros. Todavia, a lógica que os guiava era simples: se a resistência aumentava, estavam progredindo na direção certa.
Em um dado momento, o capitão Trindade observou a fumaça branca proveniente do cano de uma arma em um muro de esquina. Não obstante o imaginário criado pelos filmes de ação, em um engajamento tático, sobretudo em terreno urbano, o soldado consegue identificar seu oponente em raras ocasiões. Os alvos são muito fugazes, limitando-se, na maioria das vezes, à extremidade do cano de um fuzil que sobressai pela fresta de uma janela, de uma porta entreaberta ou de um telhado, expondo-se, apenas, por uma breve fração de segundo.
Pela primeira vez naquela manhã, a tropa respondeu ao fogo. O capitão buscou enquadrar o canto do muro com a mira holográfica de seu fuzil de assalto HK 416 e realizou um disparo. Melhor seria se o sargento P. André, com seu fuzil de precisão M 110, pudesse atirar também. Mas, da posição em que se encontrava, progredindo à esquerda do blindado, não dispunha de ângulo para fazer a pontaria.
O cabo Silva Júnior correu para a direita, colocando-se em perigo para progredir junto às paredes das casas. Sua intenção era conseguir uma boa visada: “Achei! Ali no canto!”, ele gritou.
O cabo ajoelhou-se e, esmerando-se na pontaria do seu Colt M4, realizou alguns disparos intermitentes, antes de retomar o deslocamento. Avançou um pouco, ajoelhou-se mais uma vez e realizou novos disparos. O capitão também abriu fogo. Com isso, militares e traficantes estavam, efetivamente, engajados em uma troca de tiros a curta distância.
Uma longa e cadenciada rajada de AK 47, vinda em sua direção, fez o capitão Trindade pensar que a metralhadora MAG instalada na torre do blindado estivesse atirando. Por suas características, o uso dessa arma, naquele momento, aumentaria, sobremaneira, a probabilidade de ocorrência de algum eventual dano colateral. Assim sendo, ele imediatamente interveio junto à guarnição do carro: “A MAG atirou? Quem deu ordem? Não é pra essa porra atirar agora!”, exclamou. “Não, senhor! Ninguém atirou”, responderam. Então, de súbito, o motorista do blindado pisou no freio. “Segue! Segue! Segue, Urutu!”, gritou o cabo Silva Júnior, gesticulando com a mão esquerda em riste, enquanto corria corajosamente pelo canto direito da calçada.
O blindado reiniciou o movimento, mas, cerca de 20 metros à frente, foi obrigado a parar, em virtude do estreitamento da rua. Estavam bem próximos agora. Entretanto, os possíveis itinerários de fuga dos criminosos não haviam sido bloqueados. Dificilmente, eles estariam dispostos a continuar lutando para manter suas posições. Em situações como essa, realizavam ações evasivas, quase sempre correndo ou em motocicletas. Valiam-se tanto do profundo conhecimento do terreno quanto da plena liberdade de locomoção no interior da comunidade, pois ignoravam deliberadamente a propriedade alheia. Sempre que julgavam necessário, pulavam muros, ocupavam lajes e adentravam em domicílios à revelia dos moradores.
A equipe de operações especiais continuou seu avanço, forçando, assim, os criminosos a fugirem pelos becos e vielas. O capitão Trindade, pelo rádio, pediu aos soldados do 28º BIL que fossem à frente estabelecer um novo perímetro de segurança, para que ele e seus homens adentrassem na casa de três pavimentos que servira de base de fogos aos traficantes. Cartuchos vazios de fuzil nos calibres 7,62 mm e 5,56 mm, espalhados pelo chão, davam ideia do vigor do tiroteio e do número de disparos realizados contra os militares do exército. O sentimento de frustração por não haver impedido a fuga de seus adversários era plenamente compensado pelo fato de que nenhum soldado ou civil inocente fora ferido.
Pouco depois, chegou ao local o pelotão de infantaria que circundou o morro dos Macacos pelo oeste, como lhe fora determinado. Outro blindado também se aproximou, trazendo consigo os policiais federais e o restante do 3º DOFEsp.
Após certificar-se de que, finalmente, as ameaças haviam cessado, o capitão coordenou a reorganização de toda a tropa e iniciou o retraimento para o posto de bloqueio nº 8 – uma posição barricada próxima à Linha Vermelha. Durante o trajeto, uma senhora negra de idade bastante avançada foi vista na porta de sua casa, acenando efusivamente para os soldados. Ela ergueu os braços para cima e deu graças a Deus por alguém, enfim, se predispor a fazer algo diante daquele lastimável estado de coisas. Em contrapartida, um pequeno grupo de adolescentes, sentado na calçada, mostrava-se indiferente a tudo aquilo. Porquanto, os moradores locais assumiram uma postura ambivalente em relação à presença militar.
***
A narrativa envolvendo o capitão Trindade e sua equipe, na manhã do dia 12 de novembro de 2014, não foi uma experiência única. Episódios como esse se repetiram inúmeras vezes ao longo de mais de 14 meses de atuação das Forças Armadas no interior do complexo de favelas da Maré. Atos hostis contra a tropa, perpetrados por traficantes com o uso de armas de fogo, totalizaram 1.153 incidentes, desde a realização de disparos isolados até a ocorrência de confrontos de maior intensidade.
Durante todo esse período, os oficiais e sargentos das forças especiais mantiveram por hábito despender longas horas na avaliação de suas performances. Diversas conjecturas e ilações surgiram desses debates. As discussões, quase sempre, suscitavam uma série de questionamentos plausíveis.
O primeiro deles dizia respeito à própria natureza da missão. O senso comum interpretava essa forma de emprego circunscrita ao escopo da segurança pública e, portanto, limitada, tão somente, à esfera das instituições policiais, representando uma grave distorção das verdadeiras atribuições que competem às Forças Armadas. Se assim fosse, como explicar o uso recorrente de manobras militares calcadas em preceitos táticos consagrados, como o evento acima descrito? Quais polícias ao redor do mundo dispunham de tais capacidades e estariam, de fato, aptas a atender esse tipo de “ocorrência”?
O tráfico de drogas é um mal que aflige, indiscriminadamente, toda e qualquer nação do globo, a despeito do seu grau de desenvolvimento socioeconômico. Porém, seria razoável admitir que grupos armados organizados exercessem o controle efetivo sobre espaços urbanos densamente povoados, usurpando a própria soberania do Estado?
Decerto, aquele cenário estava em desacordo com a visão ortodoxa da guerra, conforme preconizada nas escolas militares. Possivelmente, se aproximava mais de um quadro de guerra irregular, isto é, um conflito protagonizado por atores armados não estatais, como as guerrilhas ou as insurgências, por exemplo. Entretanto, não havia nenhuma orientação política, como requeriam os manuais de campanha das forças armadas. As ameaças não eram provenientes de organizações terroristas ideologicamente motivadas, apenas quadrilhas armadas impelidas pelo lucro de atividades ilícitas e práticas criminosas.
Dissimulado sob um enorme contingente populacional, o “inimigo” tornara-se invisível. Na verdade, ele próprio era um subproduto daquele ambiente pernicioso, pois fora gerado a partir de um triste conjunto de chagas sociais e dívidas históricas não quitadas.
Um arcabouço rígido de restrições legais, os riscos de se vitimarem civis inocentes e a contínua pressão da opinião pública impunham severas limitações ao uso da força. Nem mesmo toda moderna tecnologia disponível era capaz de oferecer aos militares uma vantagem decisiva sobre seus oponentes.
A todo momento do dia ou da noite, os soldados levavam consigo apenas duas certezas: encontravam-se sob a mira de uma arma e estavam sendo filmados. Qualquer violação de conduta ou outra falta grave seria, instantaneamente, veiculada pela internet, tornando-se passível de condenação pela comunidade internacional. Dessa forma, os riscos políticos que envolviam o emprego de tropas se tornavam potencialmente maiores do que seus riscos físicos.
Durante todo o período de permanência na área de operações, os comandantes militares foram assediados pela mídia, organizações não governamentais e líderes comunitários. Seu trabalho não podia prescindir da colaboração de forças policiais, órgãos públicos e agências civis de desenvolvimento socioeconômico. Afinal, as ditas “ações cinéticas”, isto é, o uso deliberado do poder de combate, por si só, não auferiam resultados definitivos e, por vezes, se mostravam contraproducentes.
Ademais, em virtude de um ambiente extremamente complexo e ambíguo, não existia consenso, nos diferentes níveis decisórios, acerca do que poderia ser entendido e aceito como vitória. Tampouco estavam claras as condicionantes de emprego do poderio bélico ou quais eram os objetivos fundamentais da missão.
Mesmo atuando dentro do território nacional, soldados de outras regiões do país se defrontavam com barreiras culturais significativas. Porquanto, o respeito à diversidade traz consigo um conjunto de idiossincrasias, cujas implicações não podem ser ignoradas.
Surpreendentemente, nada disso se deu em uma remota área de selva ou de montanha, oculta em alguma fronteira distante e desassistida, onde tradicionalmente guerrilheiros estabelecem seus “santuários”. Tudo aconteceu a poucos quilômetros do centro de poder político e econômico de uma das maiores metrópoles brasileiras. Enquanto tropas a pé apoiadas por blindados se digladiavam contra grupos armados organizados em um tipo, particularmente, difícil de combate urbano, a vida seguia seu curso normal em outros bairros da cidade.
Porém, o aspecto crucial é que todos esses dilemas jamais foram uma prerrogativa exclusiva dos militares que atuaram na imposição da lei e da ordem na cidade do Rio de Janeiro. Soldados que se sacrificam nas áreas conflagradas ao redor do globo são acometidos das mesmas dúvidas e se defrontam, basicamente, com os mesmos desafios e contradições. Afeganistão, Iraque, Síria, Palestina, Ucrânia, México, Colômbia ou Peru, por exemplo, reproduzem, em sua essência, a mesma problemática e instigam-nos às mesmas reflexões.
Afinal, seriam esses os traços determinantes da guerra nas primeiras décadas do século XXI? Como interpretar a desordem e a barbárie reveladas diariamente nos noticiários de TV? A estrutura conceitual que orienta o Estado na promoção de segurança e defesa atende, satisfatoriamente, às legítimas demandas da sociedade? Os tradicionais preceitos teórico-doutrinários que direcionam o preparo e regem o emprego das forças armadas, agências de inteligência e instituições policiais, ainda, são capazes de oferecer respostas apropriadas a todo tipo de ameaça? Como o terrorismo contemporâneo, o crime organizado transnacional, a proliferação de armas de destruição em massa, os ataques cibernéticos e a violência extremista se inserem na agenda internacional e, sobretudo, como podem ser combatidos e erradicados?
A análise de tais questões constitui o objeto deste livro.
Pretendemos, nestas páginas, delinear o perfil dos conflitos armados que emergem de um contexto histórico profundamente afetado pela revolução digital, contrapondo-se ao estereótipo da guerra consagrado pelas sociedades industriais. Para tanto, buscaremos comparar ambos os modelos de beligerância, a fim de apontar uma série de incongruências no atual uso do instrumento militar.
Infelizmente, o mundo ainda está distante de ser um lugar pacífico e seguro. A incompreensão das nuances das guerras pós-industriais e o excessivo apego a uma visão ortodoxa dos conflitos armados têm contribuído, sobremaneira, para agravar a desordem e o sofrimento que afligem os povos que habitam esse planeta. Interpretar a violência sob uma nova óptica, possivelmente, oferecerá novas perspectivas para a paz.
De fato, desde o fim da Guerra Fria, em 1991, surgiram inúmeras proposições doutrinárias visando a oferecer uma alternativa conceitual ao arquétipo de conflito sancionado pelas sociedades industriais. Porém, diferentes visões sobre o tema e abordagens dissonantes têm levado, de forma recorrente, a um perigoso desalinhamento entre as expectativas da opinião pública, a intenção dos decisores no nível político nacional e a percepção dos comandantes militares acerca dos objetivos, da efetividade e da própria natureza do emprego das forças armadas.
Não obstante, sem um claro entendimento da guerra, livre do rígido dogmatismo que tem orientado as tradicionais formas de beligerância, dificilmente seremos capazes de decifrar a dinâmica do mundo atual, identificar as verdadeiras ameaças à sociedade ou, tampouco, encontrar soluções duradouras para questões complexas que evolvem segurança e defesa. Em um período da história no qual o tempo e as distâncias foram virtualmente abolidos pela tecnologia da informação, o crescente valor atribuído à opinião pública tem revelado a capacidade de transformar cada indivíduo, onde quer que se encontre, em um protagonista que, muitas vezes, desconhece sua própria relevância. Portanto, esperamos, com esta obra, oferecer subsídios para que o leitor, seja ele civil ou militar, amplie sua compreensão acerca da violência armada nestas primeiras décadas do século XXI.
Alessandro Visacro é coronel do Exército Brasileiro. Foi declarado aspirante a oficial da arma de infantaria pela Academia Militar das Agulhas Negras no ano de 1991. Possui o curso de Altos Estudos Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Dentre suas principais comissões, destacam-se: comandante da 3ª Companhia de Forças Especiais, comandante do 1º Batalhão de Forças Especiais, oficial de operações do 2º Batalhão de Força de Paz no Haiti e chefe do Estado-Maior do Comando de Operações Especiais. É autor de Guerra irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história e Lawrence da Arábia, ambos publicados pela Contexto.